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1. Qual Nativo?

1.2. Caieira da Barra do Sul: inserção no debate

Apesar de haver uma associação das populações do interior da Ilha com os imigrantes açorianos do século XVIII, associação esta nascida da necessidade de positivação da figura do manezinho – que a população da Caieira era representativa por excelência, já que se enquadrava no perfil do homem do campo que vivia isolado e não conhecia a cidade – no próprio bairro esta identidade não era reivindicada.

Os moradores da Caieira não se identificam como açorianos, não reivindicam identidade açoriana, não fazem referência à antepassados provenientes do arquipélago de Açores. Nunca ouvi da parte de algum morador da Caieira algo como “eu sou açoriano”. Quando eu perguntava pela origem de seus pais e avós me respondiam: eles eram daqui, seus pais também eram daqui, e seus pais também46. Lembrei de uma anedota que Geertz (1988:39) faz referência no seu texto Por uma teoria interpretativa da cultura:

“Há uma história indiana (…) sobre um inglês a quem contaram que o mundo repousava sobre uma plataforma apoiada nas costas de um elefante, o qual, por sua vez, apoiava-se nas costas de uma tartaruga, e que indagou (…), e onde se apóia a tartaruga? Em outra tartaruga. E essa tartaruga? “Ah, “Sahib: depois destas são só tartarugas até o fim””.

Assim é geralmente a referência que na Caieira se faz aos antepassados. Buscar ir mais fundo nas genealogias é infrutífero, são daqui assim como sempre o foram. Vive-se hoje como sempre se viveu. As mudanças são minimizadas, os conflitos são diminuídos, as emoções são controladas. Esta é a forma boa de se viver. Se hoje eles são “daqui” é porque sempre foi assim.

Mesmo que a arquitetura mostre as marcas da colonização açoriana, a identidade açoriana não é apropriada como uma auto-identificação pelos moradores nativos da Caieira da Barra do Sul. As referências a aspectos da cultura açoriana não são base para reivindicação de identidade pelos moradores “daqui” da Caieira. Esta é uma especificidade do contexto

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Alguns que tiveram antepassados de fora diziam que seu avô era de família da Enseada do Brito, ou de outras localidades próximas. Apenas um senhor com quem conversei disse-me que seu bisavô (ou trisavô, nem ele sabia precisar) era austríaco. Esta era uma espécie de lenda familiar, que ele recorria para Ilustrar a idéia de que foram muitos os náufragos que ficaram na região, casaram com filhos “daqui” e fundaram famílias.

etnográfico estudado, já que outras localidades da Ilha de Santa Catarina, que compartilham com Caieira elementos históricos da colonização por famílias provenientes do arquipélago dos Açores, costumam requerer para si uma auto-identificação como açorianos47. A identidade açoriana é remetida aqueles que são considerados os legítimos descendentes dos primeiros açorianos que colonizaram o litoral catarinense. E em alguns contextos considerados semelhantes – devido a base da colonização – esta é uma identidade requerida pelos próprios moradores.

Quando nos guias turísticos, nos jornais locais, nos debates políticos ou em trabalhos acadêmicos sobre o distrito do Ribeirão e por extensão à Caieira da Barra do Sul se faz referência à identidade açoriana, não se está simplesmente inventando um processo identitário, mas se está aplicando a esta população uma mesma lógica que serve em outras comunidades da Ilha. No contexto da cidade a população da Caieira da Barra do Sul é considerada como descendentes de açorianos48, e portanto, açorianos. Esta identificação é exterior à Caieira da Barra do Sul, e assim, a discussão que os insere como atores políticos importantes na cena da cidade passa por fora da realidade de suas vidas cotidianas.

No contexto de discussões políticas que vigora na cidade de Florianópolis é privilegiada a dicotomia nativos/estrangeiros, manezinhos/de fora. Na Caieira a dicotomia daqui/ de fora, que poderia ser pensada de forma semelhante, porque se refere a uma diferença entre os nascidos no lugar e os que chegaram depois. No entanto, ali ela tem outro significado. Enquanto Fantin acusa o valor político associado ao termo nativo ou estrangeiro como aquele de reivindicação política de uma cidade cosmopolita ou provinciana, na Caieira a dicotomia classificatória refere-se à vida cotidiana nas casas e na comunidade. Refere-se ao perfil e as atitudes esperadas de cada um que se encontra no bairro.

Diferente da relação potencialmente conflituosa que há em outros contextos da cidade, os moradores “daqui” da Caieira não têm com os “de fora” uma relação de tensão definida a priori, que se poderia supor ao se inteirar da cena política de Florianópolis, ou ao se olhar para as relações entre nativos e “de fora” estabelecidas em outros bairros, como a Lagoa da

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Em um debate promovido pelo programa de pós-graduação da UFSC sobre perspectivas do turismo em Florianópolis (em março de 2003) foram convidados a palestrar personagens envolvidos com a questão do desenvolvimento da cidade. Um morador nativo da Lagoa da Conceição, que por duas vezes foi eleito vereador de Florianópolis, formulava um discurso em que referia-se a si próprio – e por extensão, à população da Lagoa da Conceição – com açoriano. Dizia em meio aos argumentos favoráveis à promoção do desenvolvimento turístico da Ilha: “eu sou açoriano”.

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Conceição, por exemplo. As brigas e tensões que ocorrem na Caieira da Barra do Sul são geradas, geralmente, nas divergências do cotidiano. O que a distinção classificatória “daqui” e “de fora” aponta é muito mais para uma relação de poucos contatos, ou de contatos hierarquizados e formais, do que para tensão. Na realidade se briga muito mais com os conhecidos e parentes, com quem se convive, do que com os “de fora”, que não participam de suas vidas. Na Caieira a vida cotidiana é a que tem valor, é sobre isso que se fala, que se preocupa. E como a relação estabelecida com os de fora é de relativo isolamento e pouco contato, não são estas relações tensas por excelência. Durante a pesquisa de campo eu entrei em contato com vários conflitos e tensões. A maior parte ocorria entre familiares por causa dos netos, do cuidado com os velhos, da forma como a esposa trata o marido. Fui informada de apenas uma situação de conflito entre um novo morador e alguns moradores “daqui”. Brigaram por causa de um contrato de arrendamento por cinco anos de um bar na propriedade do morador “de fora”. O dono da propriedade insatisfeito com o barulho promovido pelos freqüentadores do bar durante as madrugadas quis reduzir o tempo do arrendamento, o que produziu uma grande desavença entre o dono da propriedade e vários parentes e vizinhos do arrendatário que entraram na disputa para defender o “filho de dona Mariana que vivia do bar”. Como haviam assinado um contrato, o proprietário não conseguiu seu intento e para forçar o não funcionamento do bar cortou em pedacinhos toda a mangueira que trazia água da cachoeira e que passava por sua propriedade.

Geralmente não há da parte dos moradores da Caieira uma atuação política que extrapole os limites da própria comunidade. Suas relações políticas circunscrevem-se ao cotidiano. Isto não é bem visto por moradores “de fora” que freqüentam o bairro. Dona Laura49, uma veranista freqüentadora da Caieira há mais de 20 anos acusa-os de serem muito “parados”. Conta um caso ocorrido há três anos quando alguns barcos de pesca passaram a atracar na Caieira durante a noite para se proteger do alto mar. Segundo a veranista os barcos jogavam dejetos, lixos e combustível na água do mar, deixando a praia suja. Como os moradores nativos não se manifestaram para que os barcos fossem proibidos de atracar naquelas praias, um veranista promoveu um abaixo assinado para reivindicar junto a marinha para que fosse proibido a permanência dos barcos nas praias da Caieira. Os moradores

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assinaram e desta forma a marinha proibiu a permanência dos barcos de pesca. Segundo dona Laura,

“por eles os barcos ainda estariam aí. Se não fosse meu marido fazer o abaixo assinado… O povo daqui é muito parado, aceitam tudo que é feito com eles. Tem que vir alguém de fora para dizer isso ou aquilo não está certo. Eles por eles vão aceitando tudo”.

Eles no caso são os moradores “daqui” da Caieira, que não se mobilizaram para reivindicar que não houvesse agressão ao meio ambiente. Procurei a versão de algum morador “daqui” sobre o assunto, e uma senhora explicou-me que o Fulano fez o abaixo assinado, todos assinaram, mas os barcos não os incomodavam. Isto porque a praia para os moradores daqui não tem o caráter lúdico que tem para os veranistas. Para esses moradores mais antigos a praia serve para pescar, limpar peixes, consertar redes, é local de trabalho, e além disso, a praia é considerada de uso público. E sendo assim, os barcos de pesca estavam utilizando o mar para facilitar seu trabalho.

A relação estabelecida entre moradores nativos e demais freqüentadores / moradores é um dos elementos que compõem pertença ao bairro.