É vulgar dizer que Heidegger formulou uma crítica devastadora à metafísica ocidental ou que colocou de novo a questão ontológica; contudo também seria correcto dizer-se que os seus últimos escritos se relacionam virtualm ente com o processo hermenêutico pelo qual o homem, no pensamento «essencial» ou noutros tipos de pensa mento, constrói a fronteira entre o ser e o não ser. A questão cru cial relativamente ao ser não é apenas a da natureza do ser mas sim a de como pensar o ser, a de como é que o ser aparece; dá-se m uita importância, por exemplo, à situação do homem neste evento herm enêu^co em que o ser se coloca ou se torna «compreendido» de um certo modo. T entar traçar o tema do «pensamento» seria um esforço complexo e multifacetado, um esforço que já foi feliz mente realizado em inglês, pelo Padre W. J. Richardson ("). Basta aqui realçar o carácter geralmente hermenêutico de um tal tema, e tocar apenas em alguns dos seus aspectos que tenham um signi ficado especial para a hermenêutica.
É significativo que no diálogo com um japonês e precisamente no ponto a que acima nos referimos, Heidegger defenda que o ho mem se coloca num a «relação hermenêutica» (ein hermeneutischen
Bezug) em que ele é o mensageiro, aquele que enuncia o ser (“ ).
O homem é o ser que constrói a ponte entre o ser que se' esconde e o que se revela, noutras palavras, entre o não ser e o ser. O homem, ao falar, interpreta o ser. O pensamento verdadeiro é definido por Heidegger não como manipulação daquilo que já foi revelado, mas como revelação do que estava escondido. Contudo, no texto dito
(13) VA 180.
( ” ) Ib id .
por um grande pensador ou por um grande poeta, muito fica ainda oculto e por dizer; portanto, um diálogo pensante com o texto acarretará uma nova desocultação. Isto torna-se hermenêutica no seu sentido mais tradicional (e os escritos de Heidegger contêm mui tos destes diálogos). Contudo, este acto secundário de interpretação tem que recuar continuam ente para uma repetição amorosa da desocultação original, tem que se m anter na fronteira entre aquilo que se esconde e o que é revelado.
Como se processa um diálogo criativo com o texto? Nos últimos escritos, ao longo dos anos quarenta e cinqüenta, tais como por exemplo Gelassenheit (15), «Carta sobre o Humanismo» e «A que se chama pensar»?, a posição do homem é uma espécie de passividade devota que se abrirá totalm ente à luz do ser. Contudo, em «Intro dução à Metafísica», anterior a estas obras, há uma discussão signi ficativa do ponto de vista hermenêutico, sobre a natureza da inter rogação quando procura ser criativa, uma discussão que unifica uma série de aspectos relevantes do pensamento do último H ei degger.
A «Introdução à Metafísica» começa com uma pergunta. Para Heidegger, perguntar não precisa de ser uma mera investigação, podendo ser um meio de revelação. A pergunta inicial do ensaio — «Porque há o ser e não o nada?» leva a uma segunda questão que se dirige àquele que interroga: «Como se coloca o ser»? Aquele que pergunta vê-se imediatamente transportado para um ponto de vista diferente daquele que a questão inicial colocara pois a questão é de modo a voltar-se para quem pergunta. No processo de colocação de uma questão deste tipo, diz-nos Heidegger, «parece que perten cemos inteiramente a nós próprios. Contudo é este perguntar que nos abre caminho desde que, ao interrogar, se transform e (o que faz toda a verdadeira interrogação) e estabeleça um novo espaço sobre todas as coisas e em todas as coisas» (” ).
Interrogar é pois algo com que o homem se defronta obrigando o ser a mostrar-se. Une a diferença ontológica entre o ser e o ser dos seres. A interrogação que se m antém simplesmente ao nível do ser dos seres e não faz qualquer tentativa de se dirigir para o fun dam ento (negativo) de um tal ser não é uma interrogação verdadeira mas antes manipulação, cálculo, explicação. É típico de Heidegger afirm ar: «Há m uito que existe em nós uma paralisia de toda a paixão dc in te rro g a r... A interrogação como elemento fundam ental da existência histórica, desapareceu (n ).
A essência da mundancidade do homem é precisamente o pro cesso hermenêutico dc interrogar, um tipo de interrogação que na
(*•) Trad. como DT. ('*) IM 29-30. (" ) Ibid., 143.
sua verdadeira forma alcança o ser que não se manifestou c que o faz revelar-se numa ocorrência concreta, histórica. Através dit interrogação, o ser torna-se então história. A inter-relaçüo cntrc o ser, a história e a personalidade torna-se clara na seguinte passagem de Introdução à Metafísica:
1 — A determinação da essência do homem nunca é uma res posta mas essencialmente uma pergunta.
2 — O colocar desta pergunta é histórico, no sentido essencial de que este interrogar cria primeiro a história.
4 — Só há história quando o ser se revela na interrogação e com a história surge o ser do homem.
6 — O homem só se torna ele próprio enquanto ser interrogante
e
histórico; só deste modo ele é um «eu». A personalidade humana tem este significado: o homem tem que transform ar o ser que se lhe revela na história e tem que se colocar na história.Nos últimos escritos dá-se relevo não tanto à interrogação feita pelo homem como à necessidade de uma abertura atenta relativa mente ao ser. O ser ainda ê histórico, mas a sua ocorrência é uma dádiva que parte do ser, mais do que produto de uma inquirição c capíação feitas pelo homem (**).
Contudo, devemo-nos precaver, não vendo aqui qualquer tran sição radical ou qualquer viragem, pois Heidegger não está a con tradizer-se; antes completa a sua posição anterior; nos últimos tra balhos tenta dar ênfase a uma posição não centrada no sujeito, e por essa razão a imagem afasta-se de uma visão do homem «lutando» inquisitivamente com o ser, para uma visão do homem como «pastor do ser». Contudo, mesmo enquanto pastor do ser, a tutela do ho mem é referida em termos de «pensar» e «poetizar»; ambas são acções por parte do homem, se bem que respondendo ao ser, e ambas mantém o seu caracter histórico. Na «Carta sobre o H um a nismo» Heidegger afirma:
«Na medida em que o pensamento, enquanto historicamente ponderável, atende ao destino do ser, já se ligou àquilo que é fatal, que se mede pelo destino ... O carácter fatal (Geschichlichkeit) do dizer do ser enquanto dádiva da verdade — nisto e não em regras lógicas, consiste a primeira lei do pensamento ... O ser é como que a ocorrência fatal (Geschick) do pensamento. Este evento é em si mesmo histórico. A sua história já se tornou linguagem no acto de
dizer, realizado por aquele que pensa.» (l>)
Como pastor do ser, o homem perde o carácter prometeico sugerido em Sófocles, na «Ode ao homem» (antígona) (” ) sobre a
(>•) Ibid. (") PL-BH 118. (M) IM 146-165.
qual Heidegger se debruça na «Introdução à Metafísica»; em Ge-
lasser.heit Heidegger diz mesmo que «não deveríamos fazer nada,
apenas deveríamos esperar» (” )•
Em «O que se cham a pensar» o pensamento é descrito como um a resposta ao cham am ento e às imposições do ser. É algo que vem do mais íntim o do homem, no qual «tudo o que fica para ser pensado é ocultado e escondido» (” ). A palavra chave não é per guntar mas sim responder. E no entanto o homem ainda é o ser que, na resposta, chega à negatividade do ser, ao seu carácter não revelado, misterioso.
A discussão da interrogação conduziu a alguns dos temas mais importantes do último Heidegger: a historicidade, a diferença onto lógica, a poesia e o pensamento, a atitude de receptividade neces sária que nos permite orientar para o «Aberto», que possibilita a interpelação. Tudo isto sugere uma postura hermenêutica radical m ente diferente da atitude objectiva que é conseqüência de um a consideração da interpretação como acto conceptual primitivo, como uma espécie de análise.