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A caminho do pensamento

No documento Richard Palmer Hermeneutica (páginas 151-154)

É vulgar dizer que Heidegger formulou uma crítica devastadora à metafísica ocidental ou que colocou de novo a questão ontológica; contudo também seria correcto dizer-se que os seus últimos escritos se relacionam virtualm ente com o processo hermenêutico pelo qual o homem, no pensamento «essencial» ou noutros tipos de pensa­ mento, constrói a fronteira entre o ser e o não ser. A questão cru­ cial relativamente ao ser não é apenas a da natureza do ser mas sim a de como pensar o ser, a de como é que o ser aparece; dá-se m uita importância, por exemplo, à situação do homem neste evento herm enêu^co em que o ser se coloca ou se torna «compreendido» de um certo modo. T entar traçar o tema do «pensamento» seria um esforço complexo e multifacetado, um esforço que já foi feliz­ mente realizado em inglês, pelo Padre W. J. Richardson ("). Basta aqui realçar o carácter geralmente hermenêutico de um tal tema, e tocar apenas em alguns dos seus aspectos que tenham um signi­ ficado especial para a hermenêutica.

É significativo que no diálogo com um japonês e precisamente no ponto a que acima nos referimos, Heidegger defenda que o ho­ mem se coloca num a «relação hermenêutica» (ein hermeneutischen

Bezug) em que ele é o mensageiro, aquele que enuncia o ser (“ ).

O homem é o ser que constrói a ponte entre o ser que se' esconde e o que se revela, noutras palavras, entre o não ser e o ser. O homem, ao falar, interpreta o ser. O pensamento verdadeiro é definido por Heidegger não como manipulação daquilo que já foi revelado, mas como revelação do que estava escondido. Contudo, no texto dito

(13) VA 180.

( ” ) Ib id .

por um grande pensador ou por um grande poeta, muito fica ainda oculto e por dizer; portanto, um diálogo pensante com o texto acarretará uma nova desocultação. Isto torna-se hermenêutica no seu sentido mais tradicional (e os escritos de Heidegger contêm mui­ tos destes diálogos). Contudo, este acto secundário de interpretação tem que recuar continuam ente para uma repetição amorosa da desocultação original, tem que se m anter na fronteira entre aquilo que se esconde e o que é revelado.

Como se processa um diálogo criativo com o texto? Nos últimos escritos, ao longo dos anos quarenta e cinqüenta, tais como por exemplo Gelassenheit (15), «Carta sobre o Humanismo» e «A que se chama pensar»?, a posição do homem é uma espécie de passividade devota que se abrirá totalm ente à luz do ser. Contudo, em «Intro­ dução à Metafísica», anterior a estas obras, há uma discussão signi­ ficativa do ponto de vista hermenêutico, sobre a natureza da inter­ rogação quando procura ser criativa, uma discussão que unifica uma série de aspectos relevantes do pensamento do último H ei­ degger.

A «Introdução à Metafísica» começa com uma pergunta. Para Heidegger, perguntar não precisa de ser uma mera investigação, podendo ser um meio de revelação. A pergunta inicial do ensaio — «Porque há o ser e não o nada?» leva a uma segunda questão que se dirige àquele que interroga: «Como se coloca o ser»? Aquele que pergunta vê-se imediatamente transportado para um ponto de vista diferente daquele que a questão inicial colocara pois a questão é de modo a voltar-se para quem pergunta. No processo de colocação de uma questão deste tipo, diz-nos Heidegger, «parece que perten­ cemos inteiramente a nós próprios. Contudo é este perguntar que nos abre caminho desde que, ao interrogar, se transform e (o que faz toda a verdadeira interrogação) e estabeleça um novo espaço sobre todas as coisas e em todas as coisas» (” ).

Interrogar é pois algo com que o homem se defronta obrigando o ser a mostrar-se. Une a diferença ontológica entre o ser e o ser dos seres. A interrogação que se m antém simplesmente ao nível do ser dos seres e não faz qualquer tentativa de se dirigir para o fun­ dam ento (negativo) de um tal ser não é uma interrogação verdadeira mas antes manipulação, cálculo, explicação. É típico de Heidegger afirm ar: «Há m uito que existe em nós uma paralisia de toda a paixão dc in te rro g a r... A interrogação como elemento fundam ental da existência histórica, desapareceu (n ).

A essência da mundancidade do homem é precisamente o pro­ cesso hermenêutico dc interrogar, um tipo de interrogação que na

(*•) Trad. como DT. ('*) IM 29-30. (" ) Ibid., 143.

sua verdadeira forma alcança o ser que não se manifestou c que o faz revelar-se numa ocorrência concreta, histórica. Através dit interrogação, o ser torna-se então história. A inter-relaçüo cntrc o ser, a história e a personalidade torna-se clara na seguinte passagem de Introdução à Metafísica:

1 — A determinação da essência do homem nunca é uma res­ posta mas essencialmente uma pergunta.

2 — O colocar desta pergunta é histórico, no sentido essencial de que este interrogar cria primeiro a história.

4 — Só há história quando o ser se revela na interrogação e com a história surge o ser do homem.

6 — O homem só se torna ele próprio enquanto ser interrogante

e

histórico; só deste modo ele é um «eu». A personalidade humana tem este significado: o homem tem que transform ar o ser que se lhe revela na história e tem que se colocar na história.

Nos últimos escritos dá-se relevo não tanto à interrogação feita pelo homem como à necessidade de uma abertura atenta relativa­ mente ao ser. O ser ainda ê histórico, mas a sua ocorrência é uma dádiva que parte do ser, mais do que produto de uma inquirição c capíação feitas pelo homem (**).

Contudo, devemo-nos precaver, não vendo aqui qualquer tran­ sição radical ou qualquer viragem, pois Heidegger não está a con­ tradizer-se; antes completa a sua posição anterior; nos últimos tra­ balhos tenta dar ênfase a uma posição não centrada no sujeito, e por essa razão a imagem afasta-se de uma visão do homem «lutando» inquisitivamente com o ser, para uma visão do homem como «pastor do ser». Contudo, mesmo enquanto pastor do ser, a tutela do ho­ mem é referida em termos de «pensar» e «poetizar»; ambas são acções por parte do homem, se bem que respondendo ao ser, e ambas mantém o seu caracter histórico. Na «Carta sobre o H um a­ nismo» Heidegger afirma:

«Na medida em que o pensamento, enquanto historicamente ponderável, atende ao destino do ser, já se ligou àquilo que é fatal, que se mede pelo destino ... O carácter fatal (Geschichlichkeit) do dizer do ser enquanto dádiva da verdade — nisto e não em regras lógicas, consiste a primeira lei do pensamento ... O ser é como que a ocorrência fatal (Geschick) do pensamento. Este evento é em si mesmo histórico. A sua história já se tornou linguagem no acto de

dizer, realizado por aquele que pensa.» (l>)

Como pastor do ser, o homem perde o carácter prometeico sugerido em Sófocles, na «Ode ao homem» (antígona) (” ) sobre a

(>•) Ibid. (") PL-BH 118. (M) IM 146-165.

qual Heidegger se debruça na «Introdução à Metafísica»; em Ge-

lasser.heit Heidegger diz mesmo que «não deveríamos fazer nada,

apenas deveríamos esperar» (” )•

Em «O que se cham a pensar» o pensamento é descrito como um a resposta ao cham am ento e às imposições do ser. É algo que vem do mais íntim o do homem, no qual «tudo o que fica para ser pensado é ocultado e escondido» (” ). A palavra chave não é per­ guntar mas sim responder. E no entanto o homem ainda é o ser que, na resposta, chega à negatividade do ser, ao seu carácter não revelado, misterioso.

A discussão da interrogação conduziu a alguns dos temas mais importantes do último Heidegger: a historicidade, a diferença onto­ lógica, a poesia e o pensamento, a atitude de receptividade neces­ sária que nos permite orientar para o «Aberto», que possibilita a interpelação. Tudo isto sugere uma postura hermenêutica radical­ m ente diferente da atitude objectiva que é conseqüência de um a consideração da interpretação como acto conceptual primitivo, como uma espécie de análise.

No documento Richard Palmer Hermeneutica (páginas 151-154)

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