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A linguagem e a fala

No documento Richard Palmer Hermeneutica (páginas 154-158)

Na passagem da «Carta sobre o Humanismo» acima citada, a referência ao «acto de dizer efectuado por aquele que pensa» sugere um outro tema im portante nos últimos escritos de Heidegger: a linguisticidade do ser. O interesse de Heidegger pela linguagem data do começo da sua carreira, com a sua dissertação: «A doutrina do juízo no psicologismo: uma contribuição crítica e positiva para a lógica» (” ) e com a sua dissertação sobre a doutrina de Duns Escoto sobre as categorias e o significado. Nela defendia a necessidade de colocar os fundamentos teóricos da linguagem (” )• Heidegger fala deste primeiro período no seu recente «Diálogo com um Japonês». Significativamente, as observações que faz ligam-se ao porquê da sua escolha em usar a palavra «hermenêutica» em «Ser e Tempo»;

Conhecia o term o «hermenêutica» dos meus estudos teológicos. Nessa altura interessava-me especialmente a questão da relação entre a palavra bíblica e o pensamento teológico especulativo. Era, se quiserem, a mesma re la ç ã o — nom eadam ente a relação entre lin­ guagem e ser, para mim então escondida e inacessível — que eu cm vão procurava encontrar, uma chave que levasse aos caminhos mais fundos, que levasse aos desvios (” ).

(’■) G 37; DT 62.

(” ) VA 139; ver TPhT 599-601. (” ) TPhT 675.

(“ ) 1'òggcler, p. 269. (>•) US 96.

A linguagem colocou-se num novo contexto quando da anrtllir, em Ser e Tem po, da mundancidade do Dasein, feita em termo* de situação, compreensão e interpretação. E ra a articulação du com preensão existencial. De tal modo estava ligada à compreensão c i\ inteligibilidade que o pensamento lógico e toda a manipulação con ceptual dos objectos no m undo se tornaram secundários e derivados, comparados com a linguagem no contexto vivo da articulação essencial da compreensão (” ). Logo em Ser e Tem po o campo da lógica e das asserções integra a categoria do pensamento apresen­ tacional, enquanto que a linguagem na sua verdadeira essência, como articulação essencial da compreensão situacional, histórica, 6 algo que pertence ao modo de ser do homem. Deste ponto de vista, Heidegger podia criticar as teorias que encaravam a linguagem como um mero instrum ento de comunicação C7).

O tema da linguagem tem importância em «Introdução à M eta­ física». Dedicado à questão «O que é o ser?», o ensaio remete para um fragmento de Parménides no qual Heidegger encontra a asserção de que o ser é idêntico àquilo pelo qual ocorre a apreensão. Isto significa que «apenas há ser quando há uma aparição, uma desocul­ tação, quando há revelação» (” ). Tal como não pode haver ocor­ rência de ser sem apreensão nem apreensão sem ser, também não pode haver ser sem linguagem, nem pode haver linguagem sem ser.

Suponnamos que o hom em . não tinha qualquer conhecimento prévio do ser, que desconhecia todo e qualquer sentido indetermi­ nado do ser. Heidegger interroga-se: «Haveria apenas um substan­ tivo e um verbo a menos na nossa linguagem? Não. Não haveria

qualquer linguagem. Nenhum ser enquanto tal se revelaria por meio

de palavras, não mais seria possível invocá-lo e falar dele com palavras; pois falar de um ser enquanto tal implica compreendê-lo previamente como sendo um ser, isto é, compreender o seu ser.» (” )

Por outro lado, «se a nossa essência não incluísse o poder da linguagem, todos os seres se nos fechariam»; nós próprios não somos menos que o ser que não somos (50). Sem a linguagem nunca pode­ ríamos imaginar o homem. Heidegger avança abruptam ente com o tema: «Porque ser homem é falar.» (” ) Que ilusão, diz Heidegger, pensar que o homem inventou a linguagem! O homem não inventou a linguagem, tal como não inventou a compreensão, nem o tempo

(” ) Ver a discussão do carácter derivado das asserções no capítulo anterior. (*0 Relativamente a um novo tipo de lógica, ver Hans Lipps, llntersu-

chungen zu einer hermeneutischen Logik, e Kitarô Nishida, Intelligibility and the Philosophy of Nothingness.

(” ) IM 139. (” ) Ibid., 82. («) Ibid. (” ) Ibid.

nem o ser ele mesmo. «Como poderia o homem ter alguma vez inventado o poder que o penetra, que só por si lhe permite ser homem?» (” ) Mesmo o acto poético de nom ear é uma resposta que o homem dá ao ser dos seres.

Em escritos posteriores a «Introdução à Metafísica», aum enta a ênfase dada ao homem considerado enquanto aquele que responde às interpelações ou chamamentos do ser. Por exemplo, na «Carta sobre o Humanismo», Heidegger sustenta que «a única ocupação do pensamento é trazer cada vez mais para uma forma faiada, a ocorrência do ser; um ser que permanece e que na sua permanência espera pelo homem» ( ” ). E é óbvio que o ser se revela na linguagem. A ocorrência do ser na linguagem é descrita em termos da palavra

Geschick, fado ou destino. «A fatalidade do ser que se diz, tal como

a fatalidade da verdade, é a primeira lei do pensamento.» (” ) O tem a da história não é novo pois na «Introdução à Metafísica» Heidegger apresenta a linguagem como a dinâmica do ser do homem que lhe permite tornar-se histórico — que !he permite na realidade fundar a história. A apreensão e a fala foram apresentadas como actos espe­ cificamente históricos, em que o ser surge no iempo, acontece. A diferença é essencialmente uma diferença de ênfase: mais do que lutar com o ser, o homem abre-se ao ser, à interpelação do ser. Contudo, a interrogação não é posta de lado por Heidegger pois interrogar é precisamente pôr em causa as concepções apresenta- cionais. Títulos posteriores como «A que chamamos pensar?» ou o desejo expresso por Heidegger de colocar de um modo interroga­ tivo das Wesen e der Sprache (como das Wesen? e der Spraehe?) mostram isso. De facto, a interrogação mantém-se um método bá­ sico no seu pensamento. A mudança de ênfase é apenas um esforço para apontar de um modo mais forte a primazia do ser.

Isto tem como implicações na linguagem, a inversão da orien­ tação habitual da fala; não se diz que o homem fala mas sim que a própria linguagem fala. Tal facto torna-se mais explícito numa colecção de ensaios sobre a linguagem Unterwegs zur Sprache. «A linguagem na sua essência, não é nem expressão nem actividade do homem. A linguagem fa!a.»(35) As palavras ecoam no silêncio e através delas colocam-se as realidades do nosso mundo e o conflito entre a terra e o mundo: «o som no silêncio não tem nada de humano. Pelo contrário, o humano é lingüístico na sua essên­ cia» (■’"). E o acto hum ano de dizer que é especificamente humano. Contudo o dizer é em si mesmo um acto pela linguagem. Aquilo

(” ) Ibid., 156. («) PL-BH 118.

(M) Ibid. Mudei um pouco a tradução da primeira versão dada na p. 151. (” ) US 19.

que pela linguagem se revela, não é algo de humano mas sim t> mundo, o próprio ser.

Em Unterwegs zur Sprache Heidegger encontra na fala, espe­ cialmente no dizer (das Sagen), a própria essência da linguagem. Dizer é m ostrar (J7)- Assim, o silêncio pode por vezes dizer mais do que as palavras. Ao dizer pertence a capacidade de escuta, de modo que aquilo que tem que ser dito se possa m ostrar; o dizer conserva aquilo que é cuvido (3‘). Nele, o ser mostra-se sob a forma de ocor­

rência. Colocando o tema em termos de expressão e de aparição: a iinguagem não é uma expressão do homem mas uma aparição do ser. O pensamento não exprime o homem, deixa que o ser aconteça como e\en to lingüístico (30). Neste deixar que aconteça está o destino do homem, e também o destino da verdade. Em última instância o destino do ser.

A viragem de Heidegger para uma crescente ênfase da linguis- ticidade (Sprachlichkeii) do modo de ser do homem, e a sua afir­ mação de que o ser conduz e chama o homem, de modo que em última instância não é o homem que se mostra mas sim o ser, têm de facto uma importância incalculável para a teoria da compreensão.

Faz com que a própria essência da linguagem consista na função hermenêutica de obrigar uma coisa a mostrar-se. Significa que a disciplina da interpretação se transform a numa tentativa de aban­ donar decisivamente uma mera análise e explicação, enveredando pela realização de um diálogo pensante com o que aparece no texto. Compreender torna-se uma questão não só de interrogar que pretende ser aberto e não dogmático, mas também de aprender a esperar e a encontrar um lugar (Ort) a partir do qual o ser do texto se revele. A interpretação transforma-se numa ajuda para o evento lingüístico. Este terá que ocorrer pois acentua-se a função herme­ nêutica do próprio texto, como sendo o lugar onde o ser se revela. A linguagem é em si mesma hermenêutica, é hermenêutica no seu mais alto grau na poesia, pois como Heidegger diz em Sobre a

essência da Poesia o poeta é o mensageiro, o hermeneuta, dos deuses

para o homem.

Heidegger identificou a essência do ser, do pensamento, do homem, da poesia e da filosofia com a função hermenêutica do

dizer. Não vamos aqui discutir se essa posição é ou não sustentável.

Um facto é que a sua própria filosofia se torna essencialmente her­

(" ) Ibid., 258. (” ) Ibid., 255.

(39) Assim o termo Sprachereignis (evento lingüístico) como Leitworl da Nova Hermenêutica de Ernst Fuchs. Ver Das Sprachereignis in der Verkiin-

digung lesu in der Theologie des Paulus und im Oslergeschehen, HPT 281-305;

e The Essence oj the Language Event in Christoiogy, Studies of the Hiltorlcul Jesus, pp. 213-28.

m enêutica e que os tem as centrais se integram na área da herm e­ nêutica. É claro que ele mudou todo o contexto da herm enêutica, abandonando a antiga concepção desta como disciplina filológica de interpretação de textos. O esquema sujeito-objecto, a objectivi­ dade, as normas de validação, o texto como expressão de vida — nada disto consta na abordagem de Heidegger. A herm enêutica é definida como lidando com o momento em que o sentido se revela, concepção que R icoeur considera uma compreensão «demasiado geral» pois não inclui necessariamente o acto de interpretação de um texto. Esta definição trouxe uma m udança radical à topografia da hermenêutica. E o próprio acto de interpretação redifiniu-se, colocando-se num a perspectiva ontológica.

No documento Richard Palmer Hermeneutica (páginas 154-158)

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