Na passagem da «Carta sobre o Humanismo» acima citada, a referência ao «acto de dizer efectuado por aquele que pensa» sugere um outro tema im portante nos últimos escritos de Heidegger: a linguisticidade do ser. O interesse de Heidegger pela linguagem data do começo da sua carreira, com a sua dissertação: «A doutrina do juízo no psicologismo: uma contribuição crítica e positiva para a lógica» (” ) e com a sua dissertação sobre a doutrina de Duns Escoto sobre as categorias e o significado. Nela defendia a necessidade de colocar os fundamentos teóricos da linguagem (” )• Heidegger fala deste primeiro período no seu recente «Diálogo com um Japonês». Significativamente, as observações que faz ligam-se ao porquê da sua escolha em usar a palavra «hermenêutica» em «Ser e Tempo»;
Conhecia o term o «hermenêutica» dos meus estudos teológicos. Nessa altura interessava-me especialmente a questão da relação entre a palavra bíblica e o pensamento teológico especulativo. Era, se quiserem, a mesma re la ç ã o — nom eadam ente a relação entre lin guagem e ser, para mim então escondida e inacessível — que eu cm vão procurava encontrar, uma chave que levasse aos caminhos mais fundos, que levasse aos desvios (” ).
(’■) G 37; DT 62.
(” ) VA 139; ver TPhT 599-601. (” ) TPhT 675.
(“ ) 1'òggcler, p. 269. (>•) US 96.
A linguagem colocou-se num novo contexto quando da anrtllir, em Ser e Tem po, da mundancidade do Dasein, feita em termo* de situação, compreensão e interpretação. E ra a articulação du com preensão existencial. De tal modo estava ligada à compreensão c i\ inteligibilidade que o pensamento lógico e toda a manipulação con ceptual dos objectos no m undo se tornaram secundários e derivados, comparados com a linguagem no contexto vivo da articulação essencial da compreensão (” ). Logo em Ser e Tem po o campo da lógica e das asserções integra a categoria do pensamento apresen tacional, enquanto que a linguagem na sua verdadeira essência, como articulação essencial da compreensão situacional, histórica, 6 algo que pertence ao modo de ser do homem. Deste ponto de vista, Heidegger podia criticar as teorias que encaravam a linguagem como um mero instrum ento de comunicação C7).
O tema da linguagem tem importância em «Introdução à M eta física». Dedicado à questão «O que é o ser?», o ensaio remete para um fragmento de Parménides no qual Heidegger encontra a asserção de que o ser é idêntico àquilo pelo qual ocorre a apreensão. Isto significa que «apenas há ser quando há uma aparição, uma desocul tação, quando há revelação» (” ). Tal como não pode haver ocor rência de ser sem apreensão nem apreensão sem ser, também não pode haver ser sem linguagem, nem pode haver linguagem sem ser.
Suponnamos que o hom em . não tinha qualquer conhecimento prévio do ser, que desconhecia todo e qualquer sentido indetermi nado do ser. Heidegger interroga-se: «Haveria apenas um substan tivo e um verbo a menos na nossa linguagem? Não. Não haveria
qualquer linguagem. Nenhum ser enquanto tal se revelaria por meio
de palavras, não mais seria possível invocá-lo e falar dele com palavras; pois falar de um ser enquanto tal implica compreendê-lo previamente como sendo um ser, isto é, compreender o seu ser.» (” )
Por outro lado, «se a nossa essência não incluísse o poder da linguagem, todos os seres se nos fechariam»; nós próprios não somos menos que o ser que não somos (50). Sem a linguagem nunca pode ríamos imaginar o homem. Heidegger avança abruptam ente com o tema: «Porque ser homem é falar.» (” ) Que ilusão, diz Heidegger, pensar que o homem inventou a linguagem! O homem não inventou a linguagem, tal como não inventou a compreensão, nem o tempo
(” ) Ver a discussão do carácter derivado das asserções no capítulo anterior. (*0 Relativamente a um novo tipo de lógica, ver Hans Lipps, llntersu-
chungen zu einer hermeneutischen Logik, e Kitarô Nishida, Intelligibility and the Philosophy of Nothingness.
(” ) IM 139. (” ) Ibid., 82. («) Ibid. (” ) Ibid.
nem o ser ele mesmo. «Como poderia o homem ter alguma vez inventado o poder que o penetra, que só por si lhe permite ser homem?» (” ) Mesmo o acto poético de nom ear é uma resposta que o homem dá ao ser dos seres.
Em escritos posteriores a «Introdução à Metafísica», aum enta a ênfase dada ao homem considerado enquanto aquele que responde às interpelações ou chamamentos do ser. Por exemplo, na «Carta sobre o Humanismo», Heidegger sustenta que «a única ocupação do pensamento é trazer cada vez mais para uma forma faiada, a ocorrência do ser; um ser que permanece e que na sua permanência espera pelo homem» ( ” ). E é óbvio que o ser se revela na linguagem. A ocorrência do ser na linguagem é descrita em termos da palavra
Geschick, fado ou destino. «A fatalidade do ser que se diz, tal como
a fatalidade da verdade, é a primeira lei do pensamento.» (” ) O tem a da história não é novo pois na «Introdução à Metafísica» Heidegger apresenta a linguagem como a dinâmica do ser do homem que lhe permite tornar-se histórico — que !he permite na realidade fundar a história. A apreensão e a fala foram apresentadas como actos espe cificamente históricos, em que o ser surge no iempo, acontece. A diferença é essencialmente uma diferença de ênfase: mais do que lutar com o ser, o homem abre-se ao ser, à interpelação do ser. Contudo, a interrogação não é posta de lado por Heidegger pois interrogar é precisamente pôr em causa as concepções apresenta- cionais. Títulos posteriores como «A que chamamos pensar?» ou o desejo expresso por Heidegger de colocar de um modo interroga tivo das Wesen e der Sprache (como das Wesen? e der Spraehe?) mostram isso. De facto, a interrogação mantém-se um método bá sico no seu pensamento. A mudança de ênfase é apenas um esforço para apontar de um modo mais forte a primazia do ser.
Isto tem como implicações na linguagem, a inversão da orien tação habitual da fala; não se diz que o homem fala mas sim que a própria linguagem fala. Tal facto torna-se mais explícito numa colecção de ensaios sobre a linguagem Unterwegs zur Sprache. «A linguagem na sua essência, não é nem expressão nem actividade do homem. A linguagem fa!a.»(35) As palavras ecoam no silêncio e através delas colocam-se as realidades do nosso mundo e o conflito entre a terra e o mundo: «o som no silêncio não tem nada de humano. Pelo contrário, o humano é lingüístico na sua essên cia» (■’"). E o acto hum ano de dizer que é especificamente humano. Contudo o dizer é em si mesmo um acto pela linguagem. Aquilo
(” ) Ibid., 156. («) PL-BH 118.
(M) Ibid. Mudei um pouco a tradução da primeira versão dada na p. 151. (” ) US 19.
que pela linguagem se revela, não é algo de humano mas sim t> mundo, o próprio ser.
Em Unterwegs zur Sprache Heidegger encontra na fala, espe cialmente no dizer (das Sagen), a própria essência da linguagem. Dizer é m ostrar (J7)- Assim, o silêncio pode por vezes dizer mais do que as palavras. Ao dizer pertence a capacidade de escuta, de modo que aquilo que tem que ser dito se possa m ostrar; o dizer conserva aquilo que é cuvido (3‘). Nele, o ser mostra-se sob a forma de ocor
rência. Colocando o tema em termos de expressão e de aparição: a iinguagem não é uma expressão do homem mas uma aparição do ser. O pensamento não exprime o homem, deixa que o ser aconteça como e\en to lingüístico (30). Neste deixar que aconteça está o destino do homem, e também o destino da verdade. Em última instância o destino do ser.
A viragem de Heidegger para uma crescente ênfase da linguis- ticidade (Sprachlichkeii) do modo de ser do homem, e a sua afir mação de que o ser conduz e chama o homem, de modo que em última instância não é o homem que se mostra mas sim o ser, têm de facto uma importância incalculável para a teoria da compreensão.
Faz com que a própria essência da linguagem consista na função hermenêutica de obrigar uma coisa a mostrar-se. Significa que a disciplina da interpretação se transform a numa tentativa de aban donar decisivamente uma mera análise e explicação, enveredando pela realização de um diálogo pensante com o que aparece no texto. Compreender torna-se uma questão não só de interrogar que pretende ser aberto e não dogmático, mas também de aprender a esperar e a encontrar um lugar (Ort) a partir do qual o ser do texto se revele. A interpretação transforma-se numa ajuda para o evento lingüístico. Este terá que ocorrer pois acentua-se a função herme nêutica do próprio texto, como sendo o lugar onde o ser se revela. A linguagem é em si mesma hermenêutica, é hermenêutica no seu mais alto grau na poesia, pois como Heidegger diz em Sobre a
essência da Poesia o poeta é o mensageiro, o hermeneuta, dos deuses
para o homem.
Heidegger identificou a essência do ser, do pensamento, do homem, da poesia e da filosofia com a função hermenêutica do
dizer. Não vamos aqui discutir se essa posição é ou não sustentável.
Um facto é que a sua própria filosofia se torna essencialmente her
(" ) Ibid., 258. (” ) Ibid., 255.
(39) Assim o termo Sprachereignis (evento lingüístico) como Leitworl da Nova Hermenêutica de Ernst Fuchs. Ver Das Sprachereignis in der Verkiin-
digung lesu in der Theologie des Paulus und im Oslergeschehen, HPT 281-305;
e The Essence oj the Language Event in Christoiogy, Studies of the Hiltorlcul Jesus, pp. 213-28.
m enêutica e que os tem as centrais se integram na área da herm e nêutica. É claro que ele mudou todo o contexto da herm enêutica, abandonando a antiga concepção desta como disciplina filológica de interpretação de textos. O esquema sujeito-objecto, a objectivi dade, as normas de validação, o texto como expressão de vida — nada disto consta na abordagem de Heidegger. A herm enêutica é definida como lidando com o momento em que o sentido se revela, concepção que R icoeur considera uma compreensão «demasiado geral» pois não inclui necessariamente o acto de interpretação de um texto. Esta definição trouxe uma m udança radical à topografia da hermenêutica. E o próprio acto de interpretação redifiniu-se, colocando-se num a perspectiva ontológica.