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3. Tradução de Letras de Música

3.3. O processo de tradução de letras

3.3.2. A canção como parte de um todo

Todas as canções estão inseridas num contexto que o tradutor tem de ter em conta. A grande maioria das canções populares fazem parte de um álbum (que contém outras canções) e da carreira de um artista musical. As canções usadas em óperas e musicais estão inseridas em espaços, tempos e tradições específicas. Todas as canções estão inseridas num género musical, que varia ao longo do espaço e evolui ao longo do tempo. Existe um alto nível de intertextualidade no mundo da música: muitas letras mencionam não só outras canções e artistas musicais como textos de outros tipos (literários, audiovisuais, etc.).

Um bom exemplo de intertextualidade em letras de música é a canção “American Pie” (1971), de Don McLean: a letra da canção faz referência, através de metáforas, a várias canções e personalidades célebres do rock and roll; por exemplo, no verso “When the jester sang for the king and queen”, “the jester” refere-se a Bob Dylan e “the king” refere-se a Elvis Presley, ambos cantores de rock famosos, e o excerto “the day the music died”, repetido ao longo da canção, refere-se a 3 de fevereiro de 1959, o dia em que os músicos de rock Buddy Holly, Ritchie Valens e J. P. Richardson morreram num acidente de avião30. Noutro exemplo de intertextualidade, uma nova versão desta canção foi

gravada em 2000 pela cantora americana Madonna, omitindo grande parte da letra e

30http://www.telegraph.co.uk/culture/music/music-news/11518980/American-Pie-6-crazy-conspiracy-

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alterando o género do folk rock original para pop31; trata-se assim de uma forma de

homenagem à canção original, mas no estilo de Madonna. O humorista “Weird Al” Yankovic fez também uma paródia de “American Pie”, intitulada “The Saga Begins” (1999), que usa a mesma melodia e esquema rimático que a canção de McLean, mas cuja letra conta a sinopse do filme Star Wars: Episode I – The Phantom Menace (1999)32

– criando assim intertextualidade com um meio de comunicação diferente.

O tradutor necessita assim de ter uma vasta cultura geral, sem o qual seria impossível fazer uma tradução adequada tanto da versão original de “American Pie” como das versões de Madonna e Yankovic. O tradutor necessita também de ter algum conhecimento sobre o próprio autor da canção e sobre a sua carreira, visto haver vários casos em que esses assuntos são mencionados em letras de canções: por exemplo, a segunda estrofe da canção “Drink” (2014), da banda escocesa Alestorm, menciona os títulos de várias canções de álbuns anteriores desta banda (sublinhados abaixo):

We sailed Over Seas for Wenches and Mead And told great tales of The Huntmaster's deeds The Quest for a drop of That Famous Ol' Spiced Has shown us the wrath of Leviathan's bites33

(Navegámos sobre mares por mulheres e hidromel

E contámos grandes contos sobre os feitos do Huntmaster34

A busca por uma gota do That Famous Ol’ Spiced35

Mostrou-nos a fúria de dentadas de Leviatã)

O tradutor que não esteja familiarizado com estas referências pode omiti-las ou alterá-las durante o processo de efetuar uma tradução cantável, fazendo assim

31https://en.wikipedia.org/wiki/American_Pie_(song)#Madonna_version (consultado a 11 de junho de

2017, 17:59)

32http://www.theforce.net/jedicouncil/interview/weirdal.asp (consultado a 11 de junho de 2017, 18:09) 33 Excerto retirado de http://www.azlyrics.com/lyrics/alestorm/drink.html (consultado a 12 de junho de

2017, 14:28)

34 A personagem Huntmaster, na música da banda Alestorm, representa a marca de bebidas alcoólicas

alemã Jägermeister; “Huntmaster” é a tradução para o inglês do nome da marca.

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desaparecer estes elementos de intertextualidade: por exemplo, o excerto inicial “We sailed Over Seas” (que tem cinco sílabas) pode ser traduzido por “Cruzámos o mar”, que contém o mesmo número de sílabas e é perfeitamente cantável, mas omite a referência direta à canção “Over the Seas” (2008). Vários artistas musicais mencionam títulos ou excertos de canções anteriores nas letras de canções novas, quer pelo desejo consciente de criar intertextualidade entre as suas canções, quer pela simples preferência estética por uma determinada frase36.

Muitos artistas gostam de inserir temas recorrentes ao longo dos seus álbuns: por exemplo, no álbum Plastic Beach (2010), da banda inglesa Gorillaz, as letras de todas as canções contêm a palavra “plastic”, como referência ao título do álbum e de maneira a criar harmonia e coerência entre as várias canções. O tradutor que não esteja ciente deste facto pode omitir a palavra “plastic” durante o processo de tradução para reduzir o número de sílabas de um verso, ou substituí-la por uma outra palavra que lhe permita fazer rima com outro verso.

3.3.2.1. Contexto histórico

Um dos contextos em que todas as canções se inserem, e a que o tradutor necessita de ter atenção, é o contexto histórico. Os criadores e público-alvo de uma canção inserem-se numa cultura, e essa cultura está inserida tanto no espaço como no tempo. Muitas canções são intemporais, especialmente aquelas cujas letras lidam com temas eternos, como o amor, a morte ou a tristeza, mas muitas outras têm letras relacionadas com eventos históricos ou características de um determinado período da história – algo de que o tradutor necessita de estar consciente antes de iniciar a sua tradução. Por exemplo, não seria aconselhável traduzir o hino escocês, “Flower of Scotland”, sem se saber que a letra se refere à vitória do exército escocês na Batalha de Bannockburn de 131437. O mesmo acontece com canções que se referem a situações

contemporâneas: por exemplo, é claro para ouvintes modernos que a letra da canção da banda Gorillaz “Hallelujah Money” (2017) se refere, através de metáforas e alusões

36http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/RecycledLyrics (consultado a 12 de junho de 2017,

15:10)

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óbvias (tal como “building walls”), à presidência de Donald Trump dos Estados Unidos da América38 – mas estas referências podem ser menos óbvias para um tradutor que

não acompanhe a política internacional contemporânea, ou para um tradutor do ano 2050, ou 2117.

As referências históricas presentes em letras de música podem ser tanto óbvias como subtis, e podem referir-se tanto a eventos e personagens históricas bem conhecidas como obscuras. Por exemplo, as cantigas de escárnio e maldizer galaico- portuguesas, escritas na Idade Média, satirizam tanto pessoas famosas da época (como membros da nobreza, que são hoje personagens históricas) como amigos do autor, e enquanto algumas fazem apenas alusões subtis à identidade da pessoa satirizada, outras incluem o seu nome39. Quando canções que contêm referências históricas obscuras são

traduzidas séculos mais tarde, é provável que o público do TC não compreenda essas referências. Nestes casos, Ronnie Apter e Mark Herman sugerem as seguintes opções:

1. Não fazer nada: manter a referência histórica como ela aparece no TP;

2. Explicar a referência histórica no programa da peça (no caso de óperas e musicais, cujos organizadores costumam distribuir panfletos explicativos ao público);

3. Explicar a referência histórica ao cantor; existe a possibilidade de o contexto e o desempenho do cantor conseguirem transmitir informação suficiente aos ouvintes se o cantor perceber a referência;

4. Tentar incluir uma explicação sobre a referência histórica no TC;

5. Reescrever a letra, substituindo a referência histórica por uma outra que seja mais familiar aos ouvintes do TC;

6. Eliminar completamente a referência histórica (Apter & Herman, 2016, p. 85).

A primeira opção consiste efetivamente num ato de estrangeirização (pois apresenta um elemento estrangeiro à cultura do público-alvo, sem se preocupar com a reação que o público terá face a este elemento), enquanto que a quinta opção consiste num ato de

38http://www.billboard.com/articles/news/dance/7662311/gorillaz-hallelujah-money-anti-trump-video

(consultado a 13 de junho de 2017, 13:54)

39https://www.colegioweb.com.br/trovadorismo/as-cantigas-satiricas-de-escarnio-e-de-maldizer.html

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domesticação (pois evita apresentar um elemento estranho a um público-alvo que poderia reagir negativamente).

Um dos aspetos a ter em atenção é o facto de que a língua evolui, e o tradutor pode querer recriar a linguagem arcaica de um TP escrito há vários séculos através do uso de expressões arcaicas da LC. É verdade que a linguagem arcaica transporta o ouvinte instintivamente para outra era: por exemplo, o uso de palavras como “anon” e “thou” transportam a maior parte dos ouvintes anglófonos para a era medieval ou isabelina (especialmente aqueles familiarizados com as obras de William Shakespeare e dos seus contemporâneos). Esta capacidade de transmitir informação é útil em traduções cantáveis, que não podem incluir notas de rodapé (Apter & Herman, 2016, p. 12).

O mau uso de linguagem arcaica em inglês é conhecido como “Wardour Street English” (em honra da rua homónima em Londres conhecida pelas suas lojas de antiguidades) ou “gadzookery” (termo formado a partir do arcaísmo “gadzooks”40):

estes termos designam o uso de expressões que o autor (ou tradutor) considera arcaicas e antiquadas, juntando expressões usadas em diferentes períodos históricos na mesma frase, resultando assim num inglês que nunca foi falado em nenhum ponto da história. Esta prática remonta a escritores Eduardianos e Vitorianos, tal como Howard Pyle (1853- 1911) e Henry Gilbert (1868-1937), que usavam “Wardour Street English” para escrever contos de fadas e histórias de natureza mitológica, e por tradutores desta época para traduzir textos do mesmo tipo. Por exemplo, o tradutor Frederick Jameson usou este tipo de linguagem para traduzir Der Ring des Nibelungen (1876), uma ópera baseada na mitologia germânica, apesar do autor desta ópera, Richard Wagner, ser contemporâneo de Jameson e ter escrito a versão original alemã sem arcaísmos (Apter & Herman, 2016, pp. 36-37).

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