• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II: Contextualização do Sujeito e Autonomia

II) A capacidade crítica do self narrativo

“O ego não é mestre em sua própria casa”. Essa é uma das mais importantes contribuições da psicanálise para o feminismo com a qual tanto Benhabib como Butler estão de acordo. A divisão freudiana do self em consciente e inconsciente sugere que toda história que contamos sobre nós mesmos é acompanhada de um subtexto do qual não temos conhecimento109.

As feministas pós-modernas interpretam essa idéia como um alerta contra o caráter opressor da identidade. Entendem que o “eu” capaz de controle total sobre seus atos é uma ficção, como diz Freud, mas é uma ficção que tem como propósito político esconder as disputas de poder que constituem o sujeito110.

107 Idem, p. 347. 108 Ide, p. 198. 109 Idem, p. 349. 110 Idem,

Benhabib, porém, propõe uma interpretação distinta. A identidade, diz ela, não precisa ser vista como uma categoria suspeita. A idéia de que o “eu” não é o mestre de sua própria casa pode significar apenas que “nossa própria casa não é apenas habitada

por nós”111.

Se vivemos entranhados em redes de interlocução, estamos sempre em situação de interação com outros. Nessa interação, assumimos um ponto de vista específico que será comunicado e negociado com o dos demais. Os sujeitos, portanto, encontram o limite do controle de suas ações na intervenção que os outros participantes da rede de interlocução fazem em nossas próprias ações112.

No entanto, o fato de jamais nos desvencilharmos das redes de interlocução não implica que não possamos avaliá-la criticamente. Nós fazemos avaliações críticas à medida que reinterpretamos nossa história, uma história sempre entremeada pela história dos outros participantes da rede113. A ação do sujeito contextualizado e de identidade provisória consiste na capacidade de condensar o conjunto de narrativas que nos envolve em uma história de vida que seja compreensível para nossos interlocutores, bem como seja capaz de nos constituir como sujeitos singulares114.

Embora sempre façamos isso limitados pelos códigos de linguagem estabelecidos em uma dada cultura, preservamos nossa capacidade de contar a história de vários modos. Nossa cultura nos fornece a gramática, o alfabeto, que usaremos para construir nossas narrativas, que estão imersos em um dado contexto. Assim, a história que contamos e que é contada sobre nós no processo contínuo de construção da identidade é histórica e culturalmente específica. Nosso aparecimento na rede de interlocução já está imbuído de relações de poder e de gênero. No entanto, sempre podemos atribuir novos significados a essa história, à medida que a recontamos. Sempre podemos mudar o script115.

A “questão do véu” na França é um bom exemplo disso. O Estado francês proibiu estudantes muçulmanas de usarem o véu nas escolas públicas. A intenção foi impor mais autonomia e igualdade, proibindo o uso de um símbolo da desigualdade de

111 Benhabib. “Sexual Difference and Collective Identities..”, p. 349. 112 Idem.

113 Idem, p. 344

gênero ditado pela religião islâmica. No entanto, a reação das estudantes foi surpreendente. Elas se organizaram e saíram às ruas para lutarem pelo direito de continuar usando o véu. Segundo Benhabib, essa manifestação não pode ser simplesmente interpretada como uma submissão automática à sua cultura sexista. O medo de uma eventual punição pelo descumprimento da norma religiosa não é suficiente para explicar porque elas ousaram enfrentar a proibição do estado francês116.

Embora reconheça que o medo pudesse também estar presente, Benhabib interpreta a ação das meninas de outro modo. Para ela, essa manifestação representou uma crítica à condição dos cidadãos muçulmanos na França. Embora o véu tenha sido historicamente um símbolo de opressão das mulheres, as meninas muçulmanas naquele contexto lhe atribuíram um novo significado. De símbolo da opressão feminina, tornou- se um símbolo de afirmação da identidade cultural117.

Enfim, apesar de sermos todos formados por nosso meio, podemos criticá-lo. Benhabib diz ainda que a própria noção de “nosso meio” está cada vez mais fluida. O caso do véu mostra que a tradição não pode ser considerada um bloco homogêneo e estável. As meninas muçulmanas combinaram elementos da cultura francesa e da islâmica para buscarem sua autonomia. Elas se rebelaram contra o nacionalismo francês exibindo símbolos de sua cultura. Mas o fizeram respaldadas por códigos e valores políticos franceses118.

Benhabib reconhece o papel que a tradição cumpre na formação do self. No entanto, ela sustenta que não há nada que esteja inevitavelmente atrelado à nossa identidade. Nós sempre podemos nos distanciar de nossa tradição. O diálogo exige o distanciamento de nossas posições específicas. Para interagir com os outros, precisamos nos colocar no lugar do “outro”. Para Benhabib, porém, não basta assumir a posição de nosso interlocutor real ou, como diz ela, do “outro concreto”. É preciso também adotar a perspectiva do “outro generalizado”.

115 Idem, p. 345

116 Benhabib. Claims of Culture: equality and diversity in the Global Era, Princeton: Princeton University

Press, 2002, p. 117.

117 Idem.

118 Idem. Sobre essa discussão ver também Neves, R. Reconhecimento, Multiculturalismo e Direitos:

contribuições do debate feminista a uma teoria crítica da sociedade. (dissertação de mestrado ).

O “outro generalizado” representa o ponto de vista universal. Permite a visualização externa das normas compartilhadas que condicionam a interação entre o “eu” e o outro”. O outro generalizado nos permite ver cada indivíduo como um ser racional, dotado de direitos e deveres que gostaríamos de atribuir a nós mesmos. Mas essa universalidade é ponderada pela posição do “outro concreto”, que nos faz reconhecer as especificidades dos demais integrantes da rede de interlocução. É assim que compreendemos sua singularidade119.

A posição do “outro concreto” inclui no diálogo as assimetrias e as diferenças entre os participantes da rede de interlocução, enquanto a posição do “outro generalizado” representa a possibilidade de entendimento apesar dessas diferenças. As diferenças de necessidades e desejos reais não afetam a universalidade da dignidade moral. Desse modo, Benhabib combina o particular com o universal a fim de abarcar o reconhecimento das diferenças e da igualdade entre os participantes da rede de interlocução120.

Voltando às questões levantadas por Woolf: 1) como se forma a identidade de gênero? 2) Há um núcleo duro do self que independe do gênero? A resposta de Benhabib à primeira questão é mais direta. Como qualquer identidade, o gênero é formado por narrativas que emergem das redes de interlocução. Essas narrativas estão sempre alterando o significado do masculino e do feminino e criando outras categorias que combinam elementos de ambos121.

A resposta à segunda questão levanta mais dúvidas. Amy Allen sustenta que Benhabib não leva sua concepção de self narrativo até às últimas conseqüências. Apesar de conseguir desvincular o gênero da essência do sujeito, ela mantém a idéia de um núcleo duro do self que precede e transcende o gênero. Cito Allen:

“Faz sentido (...) pensar no gênero como uma narrativa que podemos escolher

como formular em nossa própria história de vida? Ou o gênero é em algum sentido uma precondição para narrar? Se for assim, e se, como a própria Benhabib sustenta, a 119 Benhabib, S. Critique, Norm and Utopia: a study of the foundations of critical theory. New York:

Columbia University Press, 1986, p. 340-341.

120 Benhabib.S. “ Sexual Differences and Collective Identities”, in Signs, Winter, 1999, p. 343, nota 13

Ver também Benhabib, S. “ The generalized and the concrete Other” in Situating the Self,: Gender, Community and Postmodernism in contemporary ethics, 1992, p. 251 e Benhabib, S. Critique, norm and utopia,…p.342.

diferença de gênero é intimamente limitada pelo poder, porque todos os sistemas de gênero-sexo funcionam para explorar e oprimir as mulheres, então faz sentido pensar no poder como algo que apenas estrutura as opções disponíveis, quando estamos construindo nossas histórias de vida que já têm um gênero (“gendered life stories”)¿ Sem dúvida o poder faz isso também, mas ele também não atinge o self mais profundamente do que isso, estruturando o próprio “eu” que escolhe como desempenhar o gênero?122

Allen sustenta que Benhabib não leva em conta que antes de articularmos a resposta à pergunta “quem é você?” já nos foi atribuído um gênero. Ela recorre a pesquisas empíricas de psicologia comportamental para justificar sua oposição a Benhabib. Esses estudos, diz Allen, indicam que o gênero se torna um elemento relevante do self muito cedo. Algumas pesquisas sustentam que aos dois anos as crianças começam a distinguir figuras femininas de masculinas e se auto-definem como meninos e meninas. Outras concluem que isso ocorre até antes disso, porque os adultos interagem e interpretam as mesmas reações de bebês meninos e meninas de modo distinto. Em qualquer caso, as identidades de gênero já nos são atribuídas muito antes de adquirimos a capacidade de narrar nossa própria história, ou seja, de desenvolvermos a habilidade que Benhabib julga necessária para constituirmos nosso self123.

No entanto, a crítica de Allen a Benhabib não parece correta. Em Benhabib, desde o nascimento estamos em uma teia de relações humanas, que já existia antes de nossa chegada. Nessa teia, os valores, a tradição e os critérios para distribuição dos papéis sociais já estão postos, inclusive os critérios para definir a identidade de gênero.

Nós só vamos nos engajar no processo de reconstruir, de ressignificar esses papéis, depois de desenvolvermos a habilidade de narrar nossa história de vida. Mas nós não iniciamos essa narração de um ponto neutro. Quando respondemos à pergunta “quem é você?”, nossa resposta já anunciará uma identidade de gênero.

Da idéia de que o núcleo do self está na capacidade de narrar não decorre que essa capacidade esteja primeiro desenvolvida para depois escolhermos as identidades

121 Benhabib, S. “ Sexual Differences and Collective Identities”.., p. 348.

122 Allen, Amy. The politics of our selves: Power, Autonomy and Gender in Contemporary Critical

Theory. New York: Columbia University Press, 2008, p. 165.

disponíveis em nossas redes de interlocução. Significa apenas que nossa capacidade de

questionar e ressignificar essas identidades exige essa habilidade. Esse questionamento,

porém, não é feito por um self descontextualizado. É feito por um sujeito que está desde o seu nascimento físico imerso em redes de interlocução que lhe atribuem papéis sociais. E o primeiro deles, diz Benhabib, está relacionado ao gênero124.