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Intersubjetividade, Reconhecimento e Identidade

CAPÍTULO III: Reconhecimento e Resistência

II) Intersubjetividade, Reconhecimento e Identidade

A intersubjetividade é condição para admitir o “outro” como um ser concreto. Sem isso, conforme dito no item anterior, o outro é resumido à mera abstração, a uma figura que existe apenas em nossa mente.

A proposta de Benhabib é explorar a dimensão intrapsíquica do ser humano na constituição do self sem prejuízo da dimensão intersubjetiva, relacionado assim o desenvolvimento psíquico com o moral, numa trilha muito semelhante à de Benjamim.

Benhabib subscreve a idéia de Benjamim de que o reconhecimento unifica a dimensão externa e interna da relação com o outro. Desse modo, ela ressalta que a idealização do outro e a negação do outro funcionam da mesma forma. O outro somente terá relevância se for ao mesmo tempo introjetado na mente (melancolia) e também reconhecido politicamente. O reconhecimento do outro dependerá tanto de instituições e códigos culturais da esfera púbica; como da história psíquica individual do self203.

A concepção bidimensional de reconhecimento de Benjamim afasta o risco de reduzi-lo à assimilação do outro. Sem a face da destruição, da negação do outro, a diferença é reprimida. Politicamente, isso leva ao despotismo, já que neste caso os indivíduos são condensados em um todo. São todos iguais à custa da singularidade de cada um, porque essa igualdade é atribuída sem uma esfera democrática que permita o diálogo entre iguais para a construção da diferença. Eliminado a diferença, o despotismo nega também a possibilidade da política204.

No entanto, rejeitar a assimilação total não requer rejeitar qualquer identificação com o outro. Politicamente essa idéia se traduz em práticas de extermínio dos grupos

201 Ver cap. 2 deste trabalho, PP.

202 Allen, Amy. The politics of ourselves, p.93. 203 Benjamim, J. The bonds of love, p. 21.

204 Benhabib. “ Sexual and Collective Identities.., p. 354 e 353. Benhabib refere-se ao fim da política em

sentido arendtiano. Conforme comentado no capítulo anterior, a política em Arendt depende tanto da igualdade quanto da diferença, já que a ação se dá por meio do diálogo, que produz a diferença entre os seres humanos, mas que é viabilizado pela igualdade.

mais minoritários, vistos sempre como uma ameaça à coerência da identidade hegemônica.

Se a existência do self depende de uma concepção de inclusão, como em Benjamim e Benjabib, o outro não representará apenas uma ameaça, ele será também a possibilidade de constituição do self.205. O reconhecimento mútuo pressupõe que os sujeitos estão sempre em relações intersubjetivas nas teias de interlocução e que é delas que emerge a identidade do sujeito. Destruindo o interlocutor, a narrativa torna-se inviável e, com isso, o próprio self não consegue se constituir206.

No entanto, diz Benhabib, Benjamim não aproveita totalmente seu insight sobre reconhecimento porque distingue o self da identidade207. Ela sugere que a identidade não é capaz de abarcar a complexidade do self, porque ela precisa se expressar como algo uniforme. Cito Benjamim:

“Eu gostaria de fazer um esboço da idéia de self que deve sustentar a demanda da inclusão, mas que não precise sustentar uma identidade, que é necessariamente criada através da exclusão [como diz Butler]. (...) Identidade não é o self. Incluir sem assimilar ou reduzir exige que se vá além das alternativas binárias de identidade fechadas e permanentes e noções de multiplicidade dispersivas. Que tipo de self pode sustentar a multiplicidade, ou a oposição à identidade, que a relação com o outro diferente requer¿ (...) Uma noção de self inclusivo exige que pensemos sobre o que o self é capaz, suas catástrofes, conforme apareçam na situação psicanalítica. Relacionado o self à sua relação com o outro concreto, localizamos a fragilidade do self, o espaço da intersubjetividade que está sempre em aberto, uma possível reciprocidade da diferença e reconhecimento (...) 208

Benhabib afirma que a distinção entre identidade e self revela que Benjamim incorporou o preconceito pós-moderno contra a identidade. Benjamim, de fato, fala explicitamente em caráter necessariamente excludente da identidade.

No entanto, diz Benhabib, em seu modelo narrativo da identidade, a identidade e o self não precisam ser separados. A identidade não é uniforme no tempo porque seu núcleo reside na capacidade de gerar significados através do tempo, e não em um

205 Benhabib “ Sexual Difference and Collective Identities, p. 348 e Benjamim, J. “ The Shadow of the

other”..p, 246 e 247.

206 Benhabib, “ Sexual Difference and Collective Identities, pp. 350. 207 Benhabib. “ Sexual Difference and Colletive Identities”, p. 353. 208 Benjamim, J. “ The Sahdow of the other”, pp. 247 e 248.

significado específico. Os significados são sempre provisórios porque estão sempre submetidos a novas narrativas formuladas a partir de novas interpretações209.

A dificuldade de Benjamim em equiparar o self com a identidade está na sua rejeição à coerência da identidade, que ela herda de Butler. Afinal, mesmo no self narrativo, os significados produzidos, embora sejam provisórios, são o produto da capacidade de reunir uma gama de narrativas em um discurso coerente sobre si mesmo e de seu entorno. Portanto, as identidades aqui, ainda que sejam provisórias, requerem uma síntese da multiplicidade de significados que emergem das redes de interlocução. Quando narramos nossa própria história, nós a descrevemos de modo linear e consistente, ainda que num momento posterior nós a recontemos de modo distinto210.

Benhabib afirma que Benjamim e Butler confundem síntese com coerência. A síntese não equipara inclusão a simbiose211. No entanto, é apenas na teoria de Benjamim que Benhabib vê a possibilidade de reconciliar identidade e reconhecimento. Na verdade, ela afirma que isso não é apenas possível, é necessário. Afinal, em Benjamim, o reconhecimento requer o respeito pela autonomia do outro e pelo o seu igual direito à diferença. A capacidade de produzir sínteses das narrativas é condição para incluir o outro sem assimilá-lo porque a produção de histórias individuais e coletivas das várias vozes dentro de nós pressupõe capacidade de síntese. Do contrário, o self se descentraria a ponto de se destruir212.

A identidade não requer isso. É possível fazer parte de um grupo, de uma coletividade, sem que sejamos reduzidos a uma categoria estática e opressora. Isto porque, as narrativas que emergem das redes de interlocução, ainda que sintetizem a multiplicidade dos discursos da rede, não chega a constituir um regime de verdade que cria a ficção da identidade permanente e coerente, como dizem Butler e Foucault.

A provisoriedade é inseparável da identidade porque o processo de interação discursiva é constante. Toda síntese será incessantemente revista, não apenas por mim, mas por todos os participantes da rede de interlocução. A rede de interlocução, enfim, é dinâmica, instável e contextualizada, justamente porque o material que a constitui são as narrativas que emergem de diálogos contínuos213.

209 Benhabib, “ Sexual Difference and Collective Identities’, p. 353. 210 Idem.

211 Benjamim se opõe a Butler

212Benhabib. “ Sexual Differences and Collective Identities”, p. 354. 213 Benhabib. “ Sexual Difference and Collective Identities”, p. 354.

Enfim, o que é realmente relevante para que a identidade não seja necessariamente uma instância de opressão e exclusão, é a concepção de provisoriedade aliada a uma noção de reconhecimento, que admita a dimensão da intersubjetividade (ao lado da psíquica), que admita que o “eu” e o “outro” cumpram a função de se construírem reciprocamente. Ou seja, que o outro não precise ser sacrificado para que o eu exista. O desafio, portanto, é pensar de que modo deve funcionar a rede de interlocução a fim de que o diálogo entre os participantes não seja apenas destrutivo, mas também construtivo de identidades não essencializadas, provisórias e que resultem de um diálogo no qual todos têm igual direito de participação.