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2 AS REPRESENTAÇÕES NEGRAS PARA A CONSTRUÇÃO DA MÍDIA

2.2. A construção do negro no Brasil

2.2.2. A carne mais barata do mercado

Esse discurso racial produzirá o branqueamento e funcionarão para a manutenção de um sistema de discriminação legal ou uma ideologia racista que justifique as diferentes posições sociais dos grupos sociais (JACCOUD, 2008), organizando assim um “racismo à brasileira” através das relações de cordialidade, que silenciaram, mais uma vez, as relações entre as classes dominantes e as dominadas. Para isso, é utilizada a técnica do “não-dito” que Sales Júnior (2009) salienta nos discursos raciais:

O não-dito é uma técnica de dizer alguma coisa sem, contudo, aceitar a responsabilidade de tê-la dito, resultando daí a utilização pelo discurso racista de uma diversidade de recursos tais como implícitos, denegações, discursos oblíquos, figuras de linguagem, trocadilhos, chistes, frases feitas, provérbios, piadas e injúria racial. (SALES JÚNIOR, 2009, p.16)

Como exemplo, vemos nos meios de comunicação, em especial a publicidade, que é possível observar a efetivação de tal técnica para a criação de peças publicitárias que contextualizam o pensamento de Sales Júnior (2009). Na peça publicitária do azeite Gallo vem o texto “O nosso azeite é rico. O vidro escuro é o segurança”, que reproduzem a

objetivação do homem negro como subalterno na escala social. Davis (2016) explica isso mostrando que “o sistema escravista definia o povo negro como propriedade” e, como tal, era considerado o direito de instrumentalizar sua vida em função do desenvolvimento nacional.

Figura 01 – Propaganda racista do azeite da marca Gallo

Fonte: AlmapBBDO (2012)

Essa reprodução, na linguagem midiática, culminará em um processo de marginalização que condenará a população negra a uma condição de sujeito descartável, quase sempre posto em camadas subalternas na sociedade. Sua formação segue por meio de atravessamentos para consolidar os elementos legitimadores das desigualdades raciais do racismo, que vai se constituindo com a formação da sociedade brasileira. Racismo esse que Mbembe (2014) acredita ter o objetivo de criar um imaginário sobre o corpo negro. Para ele, a afirmação do racismo é constatação da não existência do Outro para assim permitir a violação de sua história, memória e vida. Como evidência, ele reflete que

[...] o racismo consiste, antes de tudo, em converter em algo diferente, uma realidade diferente. Além de uma força de desvio do real e que fixa afectos, é também uma forma de distúrbio psíquico, e é por isso que o seu conteúdo reprimido vem brutalmente à superfície. (MBEMBE, 2014, p. 66).

Com isso, ele explica que é como se o negro não estivesse lá, como se não existisse, como se fosse um ponto de fixação patológica de uma ausência de relação (MBEMBE, 2014), podendo, assim, serem atribuídos discursos que o condicionaram ao acesso de espaço determinados pela classe dominante. Esses discursos terão amparo na

legislação com ações eficazes para perpetuação dos altos índices de mortalidade, violação e opressão causada pelas desigualdades raciais. A legitimação dessa violência ocorrerá por meio da propagação de ideologias que estigmatizam o falseamento da democracia racial, para tentar responder pelo racismo no Brasil. Sales Júnior (2009) afirma que o processo de construção do discurso jurídico assegurou a constituição da democracia racial. Ele argumenta que

os diversos aparelhos jurídicos, no transcorrer da história das relações raciais no Brasil, funcionaram e funcionam, ora como instrumentos de exploração (que se separam os indivíduos daquilo que eles produzem), ora, de dominação (que coagem, controlando o que os indivíduos fazem), ora de sujeição (formas de subjetivação e submissão que ligam os indivíduos a si mesmos e os submetem, assim, aos outros), mas, também, de emancipação racial (deslocamentos estruturais nas relações raciais). (SALES JÚNIOR, 2009, p. 20).

Sendo assim, o sistema jurídico mostra não ter neutralidade com as relações raciais. Da mesma forma, a comunicação também elabora mecanismos para a representação do negro na mídia, naturalizando as desigualdades sociais, econômicas e intelectuais. Isso porque uma sociedade que acessa o conceito de cidadania, a partir da figura do senhor de escravos, que tem a cidadania assegurada pelo Estado, igreja, entre outras instituições hierárquicas e disciplinares, conceberá sua cidadania como privilégio de classe, fazendo concessões da classe dominante às demais classes sociais, que podem ser retirados quando assim desejarem, reiterando a ideia de uma cidadania condicionada por prerrogativas de acesso aos direitos civis, sociais, culturais e políticos (CHAUI, 2012). Isso porque a construção de uma cidadania plena tem uma relação direta com o pertencimento do povo à sua nação. Carvalho (2002) diz que “as pessoas se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e um Estado”. Como se sentir parte de uma nação e um Estado que naturaliza as desigualdades e pondera o conceito de cidadania a partir de seus espaços de privilégios? É possível pensar uma cidadania que afirme uma igualdade reivindicando a normatização da dignidade e da liberdade?

Para tentar responder aos questionamentos apresentados, é preciso falar sobre a concepção do negro como um sujeito de direito na sociedade. Holston (2013) discorre, em seu livro “Cidadania Insurgente”, pontos importantes sobre o conceito de cidadania, deixando claro que a formação de uma nação ocorre com a formulação de cidadão legitimada pela hierarquia. Mesmo que advinda do período colonial para o atual modelo de organização política brasileira, na qual essa cidadania é concebida a partir de conflitos entre classes na sociedade.

As democracias, em particular, prometem cidadanias mais igualitárias e, com isso, mais justiça e dignidade na organização dessas diferenças. Na prática, porém, a maioria das democracias vivencia conflitos tremendos entre seus cidadãos, na medida em que seus princípios entram em choque com preconceitos quanto aos termos da incorporação nacional e da distribuição de direitos. Na realidade, os conflitos entre cidadãos aumentaram significativamente com as extraordinárias democratização e urbanização do século XX. Assim, a insurgência mundial de cidadanias democráticas ocorrida nas décadas recentes rompeu com fórmulas estabelecidas de governo e de privilégio nas mais diversas sociedades. (HOLSTON, 2013, p. 21)

Holston trata de um ponto importante para a compreensão das diferenças sociais que serão administradas conforme os ideários de igualdade, dignidade e liberdade inseridos na sociedade, mas esses ideários serão definidos para classes específicas, criando assim a marginalização e a exclusão da cidadania de grupos étnicos que terão difícil acesso aos seus direitos. “O resultado é um emaranhado entre a democracia e seus opositores em que novos tipos de cidadãos surgem para expandir a cidadania democrática, ao mesmo tempo em que novas formas de violência e exclusão a corroem” (HOLSTON, 2013), transformando, assim, o contexto de cidadania em um espaço desordenado e injusto no meio social. A partir dessa reflexão, é possível afirmar que a cidadania da população negra não será a essência do seu “lar” como na nação brasileira. É preciso questionar essa cidadania que tenta estabelecer um instrumento de justiça social para o desenvolvimento do país por meio de privilégios das classes dominantes. É preciso que as lutas e reivindicações dos movimentos negros contribuam para que essa população tenha acesso aos seus direitos e que as desigualdades raciais possam ser supridas com a conquista de políticas afirmativas. Esse processo demanda o combate a toda forma de preconceito, discriminação e opressão presentes na sociedade e a construção de novos paradigmas que resultem em mudanças estruturais nos alarmantes índices de violação de direitos. Compreender que o exercício da cidadania é a possibilidade de reintegração do negro nas relações sociais para promover a inclusão de grupos étnicos na produção de uma sociedade democrática é um desafio e uma tarefa necessária para o desenvolvimento igualitário do povo brasileiro.