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Habitar um território existencial é uma das pistas do méto- do cartográfico. Uma pista metodológica não é o mesmo que uma regra ou protocolo de pesquisa, não é um procedimento que se dita de antemão, mas requer um aprendizado ad hoc, passo a pas- so. Nesse sentido, lançamo-nos na pesquisa tal como se diz "lançamo-nos na água", sem perder de vista que tanto a pesquisa ela mesma quanto o campo pesquisado estão sempre num proces- so incessante de coprodução e coemergência.

Para habitar um território existencial é preciso um proces- so de aprendizado, entendido mais como experiência de engaja- mento do que como etapas prescritíveis de uma metodologia de pesquisa. Experiência que só se dá a medida que se realiza, sem pré-condições. O aprendiz-cartógrafo, inicialmente inseguro por não conhecer o campo que encontra (afinal, mais encontramos do que buscamos algo), vai descobrindo aos poucos que as regras prévias são valores móveis que não existem de modo rígido e uni- versal, como nada garantem. Vai sendo provocado e contagiado pelas experiências de habitação, abandonando as formas rígidas, as regras fixas e experimentando a abertura de uma atenção flu- tuante, numa espreita a avaliar e tomar decisões encarnadas na experiência concreta. Vai desenvolvendo uma mudança da aten- ção focada e reduzida para uma atenção desfocada que pode apreender os movimentos do território. O aprendiz-cartógrafo vai percebendo que não há outro caminho para o processo de habita- ção de um território senão aquele que se encontra encarnado nas situações. Mais do que um aprendizado de regras, o aprendizado da cartografia implica numa ambientação aos espaços do campo, onde realmente podemos treinar nossa paciência e atenção aos acontecimentos. Tais sensibilizações, quando vêm, pressupõem

experiência e tempo, sendo cultivadas nos jogos e nas disputas que o processo da pesquisa oferece diariamente, esvaziando o aprendiz das armadilhas que os pré-julgamentos e verdades gerais acabam por nos levar.

A habitação de um território existencial está mais ligada a uma disposição de composição do que à execução de normas téc- nicas. Não se visa a uma submissão ou um domínio do campo pesquisado, mas a um fazer com, compondo com os elementos envolvidos. Desde o trabalho de campo até a realização dos rela- tórios, a pesquisa cartográfica vai indicando ao aprendiz-cartógrafo certo cuidado de composição. Esse aprender

com

acaba por culti- var no aprendiz a necessidade e a disposição do engajamento no campo pesquisado.

O território que o aprendiz habita vai se tornando próprio ou comum: um mundo próprio, no sentido de mundo comum e não de mundo privado (Uexkull, s/d). Diferente do processo de identificação do pesquisador ao campo, o aprendiz-cartógrafo se avizinha e se implica, experimentando o pertencimento ao que não lhe é privado. Tal mergulho no campo de pesquisa não pode se fazer se o pesquisador se mantém aferrado às suas crenças ou à sua forma identitária. É nesse sentido que a experiência da pes- quisa ou a pesquisa como experiência faz coemergir sujeito e objeto de conhecimento, pesquisador e pesquisado, como reali- dades que não estão totalmente determinadas previamente, mas que advêm como componentes de uma paisagem ou território exis- tencial. Habitar o território da pesquisa permite compreender que o fenômeno estudado é um mundo amplo e diversificado, tal como o mundo da capoeira. Mesmo da perspectiva da capoeira Angola, o que encontramos, nas diversas localidades e grupos, não nos autoriza falar em aprendizado da capoeira Angola como uma unidade geral. A percepção geral e abstrata não é ponto de chegada de uma pesquisa cartográfica, mas pelo contrário marca a posição ingênua e preconceitu9s~ de um aprendiz de pesq~i- sador que pouco habitou e comifartIlhou com o campo que VIsa estudar. É no singular que aprendemos.

Habitar um território existencial, diferente da aplicação da teoria ou da execução de um planejamento metodológico pres-

critivo, é acolher e ser acolhido na diferença que se expressa entre os termos da relação: sujeito e objeto, pesquisador e pesquisado, eu e mundo. A cartografia introduz o pesquisador numa rotina singular em que não se separa teoria e prática, espaços de reflexão e de ação. Conhecer, agir e habitar um território não são mais experiências distantes umas das outras.

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