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SOBRE A FORMAÇÃO DO ,CARTÓG RAFO E O PROBLEMA DAS POLlTICAS COGNITIVAS

Ao longo dos textos desta coletânea procuramos deixar claro que o método da cartografia não é um conjunto de regras para ser aplicadas, nem um saber pronto para ser transmitido. Sendo as- sim, a aprendizagem da cartografia não é questão de aquisição de saber nem de transmissão de informação. É preciso praticar a car- tografia. A formação do cartógrafo não se fundamenta na expe- riência passada, mas encontra sua chave na experiência presente. Trata-se mais de um refinamento da percepção do que um apelo ao saber acumulado ou à memória. É, acima de tudo, uma ques-

tão de aprendizado da sensibilidade ao campo de forças. Trata-se enfim, de um cultivo da atenção concentrada e aberta à experiên- cia de problematização. Habitualmente, quando se fala da relação entre aprendizagem e atenção, considera-se a atenção como con- dição do processo de aprendizagem. Entretanto, trata-se aqui de um aprendizado da própria atenção ao presente vivo que é susci- tada pela experiência da pesquisa, que assume aqui uma dimen- são estética - estética porque diz respeito aos processos de cria- ção da realidade. Ora, a atenção é como um músculo que, pelo exercício, produz regimes atencionais distintos e variados. Muitas vezes impera nas subjetividades a atenção recognitiva, mobilizada por interesses prévios e expectativas do pesquisador. O desafio é suspender sua hegemonia, em favor da atenção ao presente vivo das forças do território da pesquisa. Às vezes difícil no início, a atenção cartográfica vem a se tomar mais facilmente atualizada com a prática continuada, constituindo uma atitude cognitiva que cria condições atencionais mais propícias à prática da cartografia.

Apresentamos as pistas do método cartográfico passando por diferentes domínios do conhecimento: os estudos da atenção, da aprendizagem, da deficiência visual, da clínica, da saúde públi-

ca. Outros campos de pesquisa têm ensejado o trabalho do cartó- grafo, sem que possamos identificar esse método a um deles por excelência. Na verdade, o método cartográfico se alia à discussão

mais geral da crítica aos especialismos e aposta na transdis- ciplinaridade enquanto desestabilização do que se delimita como campo de uma disciplina. Atravessando diferentes domínios, provocando interlocuções, aceitando o desafio de pensar no li- mite entre os saberes, a transdisciplinaridade coloca em questão os objetos bem definidos e as teorias internamente consistentes, a preexistência de sujeitos do conhecimento e objetos a serem co- nhecidos, os campos bem demarcados das práticas discursivas e não discursivas, os especialistas defensores de territórios identi- tários de conhecimento. Com a desestabilização emerge o plano de constituição dos domínios de conhecimento em que as dico- tomias dão lugar aos híbridos e as fronteiras apresentam seus graus de abertura, suas franjas móveis por onde os saberes se arguem e as práticas mostram sua complexidade.

Assumir a cartografia como direção metodológica nos compromete, portanto, com a produção de uma política cognitiva. O conceito de política cognitiva busca evidenciar que o conhecer não se resume à adoção de um modelo teórico-metodológico, mas envolve uma posição em relação ao mundo e a si mesmo, uma atitude, um ethos. Assim, apontamos que o cognitivismo, e com ele os pressupostos do modelo da representação - a preexistência de um sujeito cognoscente e de um mundo dado que se dá a co- nhecer - não é apenas um problema teórico, mas um problema político. Ele é uma das configurações que nossa cognição assume (Kastrup, Tedesco e Passos, Políticas da Cognição, Sulina, 2008). Por outro lado, aproximar conhecimento e criação, afirmar que a ação de conhecer configura ao mesmo tempo, e num movimento de coengendramento, o sujeito e o ~to, o, si e o mundo, não é apenas criar um novo conceito de cognição. E um convite a adotar uma certa maneira de estar no mundo, de habitar um território existencial e de se colocar na relação de conhecimento. Enfim, trata-se de uma política cognitiva. Todavia, a recusa da crença num sujeito e mundo dados não é de modo algum trivial. Assumir

essa postura requer uma virada, uma reversão da atitude naturali- zada e que exige, em princípio, um esforço. Tal esforço, no entan- to, pode se transformar, com a prática, numa atitude encarnada, configurando uma política cognitiva corporificada nas ações de quem se lança na tarefa de conhecer e intervir sobre a realidade. Produzir conhecimento e produzir realidade se tomam face e contraface da experiência cognitiva, o que impõe a complexidade ético-estético-política da ação do pesquisador. Não se chega à

cognição inventiva por adesão teórica, mas por práticas cognitivas efetivas e encarnadas. O mesmo vale para nossa formação no método da cartografia.

Se o aprendizado nos traz um ganho, se ele, em alguma medida nos forma, é no sentido da inscrição corporal do conheci- mento. Nessa medida, para tomar-se cartógrafo não basta ler este livro ou outros textos teóricos sobre o assunto. É preciso praticar, ir a campo, seguir processos, lançar-se na água, experimentar dispositivos, habitar um território, afinar a atenção, deslocar pon- tos de vista e praticar a escrita, sempre levando em conta a pro- dução coletiva do conhecimento. Na aventura cotidiana de uma pesquisa enfrentamos diversos riscos e podemos produzir carto- grafias melhores ou piores, excelentes ou simplesmente interes- santes. Podemos também imaginar que cartografamos, quando apenas representamos. Nomear de cartografia o método que praticamos não garante o resultado de nosso trabalho. O rigor da investigação cartográfica reside na irredutível atenção aos movi- mentos da subjetividade e da paisagem existencial, suas pontas de presente, seus fios soltos, suas linhas de fuga em relação à

estratificação histórica.

Como cartógrafos experientes ou iniciantes, temos algumas vezes a impressão de que perdemos o rumo, de .que nos distan- ciamos de nosso foco ou de que nos afastamos dos objetivos ini- cialmente pretendidos. Imersos no curso dos acontecimentos, o problema que nos orientava pode parecer distante, pouco relevan- te, tendendo em certos momentos a desaparecer no cotidiano da pesquisa. Por outro lado, acontecimentos imprevistos e outros signos oriundos do território da pesquisa podem, por seu caráter

instigante, atrair nossa atenção. Fragmentos soltos ou elementos recorrentes, pouco a pouco, ganham contornos mais definidos e inéditos. Frente a tal situação, uma estratégia metodológica alheia aos movimentos processuais pode levar o pesquisador a se agarrar ao problema inicialmente formulado e aos objetivos previamente estabelecidos e buscar mantê-los de pé. Nesse caso, o método recomenda manter-se na estrada principal e não se perder pelos atalhos do caminho. Se trabalhamos desta maneira, praticamos a política da recognição e a pesquisa é um processo de solução de problemas. Não fazemos cartografia.

Outra atitude é reconhecer que se a pesquisa se propõe ao acompanhamento de processos em curso, a perda momentânea de rumo não é necessariamente indício de inconsistência do pro- blema ou de despreparo do pesquisador. Adotando esta atitude, esse ethos de pesquisa, reconhecemos que a atividade de investi- gação envolve sempre, em certa medida, o redesenho do campo problemático. Para a escrita do projeto é necessário levantar informações, ler a bibliografia mais diretamente pertinente e, enfim, explorar teórica e empiricamente o território em questão. No entanto, o corpo a corpo com o campo da pesquisa comporta sempre uma dose de imprevisibilidade e mesmo de aventura. Habitar um território de pesquisa não é apenas buscar soluções para problemas prévios, mas envolve disponibilidade e abertura para o encontro com o inesperado, o que significa alterar priori- dades e eventualmente redesenhar o próprio problema. Ques- tões secundárias podem ganhar lugar de destaque e o problema principal tornar-se uma questão subsidiária. Quando ele se revela mal colocado, pode exigir reformulação. Outras vezes, a mul- tiplicação de novas interrrogações deve ser contida e aguardar uma outra pesquisa no futuro. Enfim, a cartografia como método de acompanhamento de processos de realização é ela mesma processual, lançada também em um~eriva feita de desvios e reconfigurações

Encarnando uma política da invenção, como não se perder durante a caminhada? Como o método pode constituir uma orien- tação quanto ao modo de seguir com a pesquisa sem, por outro

lado, fechar a investigação ao movimento e aos processos que ela se propõe a acompanhar? Frente ao presente vivo da pesquisa, como distinguir os verdadeiros problemas dos falsos problemas? Como diferenciar um problema bem colocado de um problema mal colocado? Este livro se propôs a fornecer pistas para a prática do método da cartografia. Mas não seria esta - Cartografar é traçar um campo problemático - uma nova pista a ser explorada e desenvolvida? Ao final, é preciso reconhecer, mais uma vez, que o desafio que nos dispusemos a enfrentar - apresentar e discutir pistas para prática do método da cartografia - resta uma tarefa sempre inconclusa, obra aberta. Fica o convite para os leitores- cartógrafos participarem desse movimento coletivo.

Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia