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Regina Benevides de Barros e Eduardo Passos

No método da cartografia, a inseparabilidade entre pes- quisa e intervenção desestabiliza pressupostos tradicionais do conhecimento científico e o ideal de inteligibilidade que se hege- monizou como positivo, rigoroso, neutro, objetivo. Entender que toda pesquisa é intervenção, compromete aquele que conhece e quem (ou o que) é conhecido em um mesmo plano implicacional1

O trabalho da pesquisa deve ser sempre acompanhado pelo regis- tro não só daquilo que é pesquisado quanto do processo mesmo do pesquisar. E para quê registrar o processo? O que fazer com este registro? A quem endereçá-lo? O registro do processo da pes- quisa interessa porque inclui tanto os pesquisadores quanto os pesquisados. Nesse sentido, tal registro se complementa no ato de sua restituição. O texto a ser restituído aos diferentes intervenientes permite a ampliação e publicização da análise das implicações que se cruzam no trabalho da pesquisa. Acompanhamos, nesse pro- cesso, a coemergência do objeto e do sujeito da pesquisa que se apresentam em sua provisoriedade. Como diz Lourau (1988, p.249), "é a instituição cultural que determina por si (por ela) e não em si a existência do sujeito, assim como a do objeto". O pesquisador está, portanto, incluído no processo da pesquisa e se restitui, ele também, na operação)te análise das implicações. O registro do trabalho de investigação ganha, dessa forma, função

I E. Passos e R. Benevides, "A Cartografia como método de pesquisa-

intervenção", nesta coletânea.

de dispositivo, não propriamente para concluir o trabalho ou apresentar seus resultados finais, mas como disparador de des- dobramentos da pesquisa2• A pesquisa-intervenção requer, por isso mesmo, uma política da narratividade3. Aqui o modo de dizer e o modo de registrar a experiência se expressam em um tipo de textualidade que comumente é designado como diário de campo ou diário de pesquisa.

R. Lourau (1988) dedicou-se, no livro Le Journal de Re-

eherehe: matériaux d'une théorie de l'implieation, à discussão

do texto diarista, indicando uma estratégia metodológica para a pesquisa-intervenção. O autor encontra a pista metodológica num certo exercício de escrita íntima. O texto diarístico, muito antigo como relato pessoal em primeira pessoa, aparece no início do século XIX como recurso para o trabalho de cientistas que se lançam ao campo deixando a segurança dos laboratórios de pesquisa4•

A técnica da restituição e do registro da pesquisa num texto diarístico se apresentam como um problema científico na etnologia de campo no momento especial da relação entre a Europa e suas colônias já na fase da descolonização.

Para que se realizasse uma verdadeira revolução epis- temológica - introduzindo na pesquisa de campo a restituição do resultado à população estudada -, foi preciso um outro acontecimento político. Digo "outro", porque a epistemologia é, antes de tudo, política. Esse acontecimento político foi o processo de descoloniza- ção, ocorrido no mundo inteiro, modificando na produ- ção do saber antropológico, as sempre presentes e negligenciadas relações de poder entre ciência e colo- nialismo. A descolonização produziu um efeito anali- sador enorme (Lourau, 1993, p.54).

2 V.Kastrup e R. Benevides, "As funções-movimentos do dispositivo na prática da cartografia", nesta coletânea

3 E. Passos e R. Benevides, "Por uma política da narratividade", nesta coletânea. 4 E. Passos e A. do Eirado, "Cartografia como dissolução do ponto de vista

o

diário de campo se apresenta como um desvio meto- dológico, quando uma alteração da política de pesquisa se impõe a partir das viagens de investigação para outros continentes. A África é, então, terreno, a um só tempo, de práticas políticas de colonização e de uma experimentação epistemológica diferente daquela da ciência instituída. Correlata à descolonização, uma outra política cognitiva se dá (Kastrup, Tedesco e Passos, 2008). Essa política, em termos dos dispositivos que fazem funcionar uma prá- tica de pesquisa, tomou o diário como nova narratividade.

No diário de campo da etnologia é, entretanto, de um estra- nho íntimo que Lourau nos fala: íntimo porque ato de criação ocul- tado na escritura oficial e estranho porque de uma intimidade não propriamente pessoal. Interessa a Lourau a intimidade que "nos inquieta quando ela surge em uma obra que jamais lhe conferiu uma existência científica" (1988, p.13). Tal intimidade é a do

hors-texte (HT), o fora-textoS que o analista traz à cena quando

faz o movimento de se jeter dans l' eau. Lourau se lançou durante cinco anos na pesquisa dos diários para forçar a relação entre texte (T) e hors-texte (HT), relação sempre variável num jogo de pre- sença e ausência, de contiguidade e de não contiguidade, criando um plano de escritura que ele designa como "um tipo de hipertexto invisível a ser construído pelo leitor-pesquisador" (1988, p.13). Lourau está interessado, por exemplo, na relação entre o texto científico de Malinowsky e seu diário de campo, seu diário de pesquisa. Diz ele:

Este panorama muito rápido de alguns gêneros de diarismo dá, eu espero, uma idéia da combinatória dos HT por relação aos T. Isto esclarece, nos fenômenos dos diários de campo, de entrevista, de pesquisa, utilizados em ciências sociais, o necessário ultrapassamento inti- mista enquanto lapso permanente, escoamento não premeditado do que 'rãO pode ser dito, revelador da

5 Apesar de já haver entre nós uma norma de tradução que utiliza a expressão "fora do texto", preferimos a grafia fora-texto para nos aproximar mais da formulação de Lourau e também dar destaque ao que, na noção de fora, evoca as contribuições de Foucault (1990) e Deleuze (1988).

dor cotidiana do pesquisador: les actes manqués de la

recherche (Lourau, 1988, p.24).

Essa é uma ideia que Lourau (1994; 1997) persegue, à es- cuta dos lapsos, dos atos falhos que deixam escapar ou fugir as linhas do inconsciente institucional. O que o texto oficial da antro- pologia deve recalcar para se instituir como forma científica? O que foi mantido fora do texto, mas que é parte integrante do seu processo de produção? Segundo Lourau, os textos diarísticos " ... revelam as implicações do pesquisador e realizam restituições insuportáveis à instituição científica. Falam sobre a vivência do campo cotidiana e mostram como, realmente, se faz a pesquisa. E é isso que não se deve dizer ou mostrar" (Lourau, 1993, p.72). O texto diarista enuncia sua própria produção, liberando-se da pretensão do conhecimento definitivo sobre o objeto. Segundo o autor, é um devir feminino do texto que é preciso liberar, quando no texto se inclui o seu fora: o fora-texto.

Por que a imagem do feminino? Por que pensar a aventura do pesquisador sendo levada, no limite, a uma experimentação com a linguagem que o confronta com o ideal civilizatório por definição sempre masculino? Qual é o sentido dessa politização da prática de pesquisa, confrontada agora com o padrão hege- mônico que elege o Homem como sua imagem identificatória ideal? Lembremos da análise aguda que Sarah Kofman (1978) faz da obra de A. Comte, designando a aberração do devir mulher do pai do positivismo.

A restituição de um processo de pesquisa-intervenção atra- vés do diário cria um plano em que pesquisadores e pesquisados se dissolvem como entidades definitivas e preconstituídas.

Queremos, através do texto a seguir, fazer uma restituição do que foi uma pesquisa-intervenção em Moçambique, onde um de nós esteve como consultor convidado para intervir no processo de formação de profissionais de saúde envolvidos com a preven- ção do HIV. Moçambique é um país que tem atualmente uma po- pulação de 20 milhões de habitantes e uma prevalência média de 16% de HIV soropositivos. As mulheres moçambicanas jovens são

as mais atingidas pela infecção, sendo um desafio enfrentar as questões culturais e políticas que segmentarizam a sociedade moçambicana fazendo da mulher jovem a mais vulnerável.

Ir à África é fazer uma viagem muito distante. Mas de que distância se trata? Não só de uma distância geográfica, mas tam- bém dessa que encontramos em nós mesmos como um "distante interior" (Michaux, 1963). Acessar essa distância, aproximar-se da experiência africana é poder traçar um plano comum que nos une. A correspondência por correio eletrônico que ligou dois pes- quisadores - um na África e outro no Brasil- nesta viagem-inter- venção criou um diário entre-dois no qual pôde reverberar uma realidade coletiva.