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o percurso da construção do Mestrado em Letras na UFBA.

Foto 3: Documento extraído ao Arquivo Acadêmico.

4.2. A casa de palavras: poder, política e construção acadêmica

É necessário que se diga que longe de uma leitura ingênua sobre a construção da área de Estudos Literários, notadamente a Teoria da Literatura, no CML o que se ergue aqui é uma análise que se quer consciente de que o espaço de construção de conhecimento não é jamais apaziguado ou apaziguador. Ele não se ergue sem a pressão da divergência, do confronto, do conflito, e, se necessário, da guerra. A personalidade forte e a postura muitas vezes imperiosa de Judith Grossmann são mitológicas e seria extremamente primário imaginar que uma personalidade marcada por estas e tantas outras facetas intangíveis para este que lança o seu olhar a partir do hoje, conseguiria permanecer vinte e oito anos construindo e defendendo disciplinas, áreas de pesquisa incólume a qualquer enfrentamento. Se for correto afirmar que não existe lugar fora do poder e que o discurso é um lugar privilegiado para o seu exercício, como se poderia em uma Casa de Letras e de palavras permanecer para além dos conflitos? Nenhum discurso é construído fora de tecnologias muito refinadas de aferição de valor à anunciação e ao enunciado que têm, como conseqüência, processos de silenciamento e interdição que podem ser notados tanto no interior de qualquer sistema social ou culturas e que se reduplica no corpo da construção das ciências.

Mas é, na opinião de Foucault, nas disciplinas e não nas ciências que se percebe a limitação imposta pelas estruturas de poder. A noção de disciplinas é aqui pensada como o conjunto de postulados teóricos derivados da uma ciência, define-se por um campo de objetos, métodos, postulados considerados verdadeiros, que oferece a impressão de ser um “sistema anônimo” disponível a qualquer um que queira dele fazer uso. Entretanto, é claro que para a construção de qualquer conhecimento não é tudo o

que se diz que encontrará aderência no seu corpo instalando-se, desde então, como componente de seu funcionamento, por isso:

A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente de regras143.

Desta forma, o que está em questão é o poder, em suas estratégias de construção, manutenção, silenciamento e interdição e todo intelectual, na forja de sua postura teórica, lida com estas forças.

Deleuze afirma que o pensamento que se propõe a analisar as relações entre teoria e prática costuma pensá-las de maneira complementar, como se ambas se imantassem formando uma superfície sem fissuras. A proposta deleuziana é de se pensar a teoria e a prática como estabelecendo entre si relações fragmentárias e parciais, primeiramente, diz ele, por que uma teoria sempre é “local, relativa a um pequeno domínio” e que pode ser aplicada a um outro domínio mais ou menos afastado. Quando se aplica em um determinado domínio a teoria encontra alguns obstáculos que a obrigam a ser revezada por um outro tipo e discurso: “A prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria e outra e a teoria um conjunto de revezamento de uma prática e outra” 144

Desta forma, podemos concluir que a construção teórica jamais se dá senão em articulação com a prática. Entretanto, na cena do cotidiano das salas de aula, no delicado relacionamento com os estudantes, nas reuniões burocráticas nas quais muito raramente teoria e prática se articulam, nas oportunidades em que as falas ecoam dissonantes é que se percebe que a teoria – pensada como um determinado conjunto de saberes, paradigmas e conceitos - quando diante dos mínimos acontecimentos do cotidiano não encontra espaço para a sua aplicação (ou mesmo ficam todas metidas nas algibeiras por temor ou mero desinteresse em trazê-las à tona naquela situação), percebemos que a toda teoria se articula uma prática e que, muitas vezes, seja dentro ou fora do contexto de sala de aula, a posição teórica é também um posicionamento político.

143 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996. 144 FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder; conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. In:

A politização de um intelectual se fazia, como argumenta Foucault, a partir de duas coisas: primeiro a sua “posição de intelectual na sociedade burguesa”, no sistema de produção capitalista e na sua ideologia, na qual ele é “maldito” e, em segundo lugar: “Seu próprio discurso enquanto revelava uma determinada verdade, descobria relações políticas onde normalmente elas não eram concebidas”145. Historicamente, havia, então,

duas espécies de intelectual, o “maldito” e o “socialista”, entretanto antes de tudo, este seria aquele que dizia a verdade aos que não a conhecem e em nome daqueles que não podiam dizê-la. Este perfil de massa vulnerável e dependente da intervenção do intelectual tem dia após dia diminuindo e isto oferece a ele a possibilidade de se compreender como dentro do poder que penetra nas mais finas membranas da sociedade, sendo assim, o intelectual não é imune ao poder, na verdade, a idéia de que eles são agentes da “verdadeira consciência” é conseqüência disto:

O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência”, do discurso146.

Assim, é, verdadeiramente, a teoria uma prática que se constrói localmente e parcialmente, “a teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica”147.

Afirmamos há pouco que seria ingênuo imaginar que se pudesse viver vinte e oito anos na estrutura acadêmica imune a conflitos, e neste ponto está o poder: em seus jogos e dissimulações. Afirmamos agora o contrário: ninguém conseguiria ficar tanto tempo dentro das malhas acadêmicas sem cultivar laços de afetividade e lugares de fruição e prazer, e neste ponto também está o poder. Nenhum poder sobreviveria, afirma Foucault, sendo somente impeditivo, coercitivo e repressor, uma das máquinas mais azeitadas do poder é aquela que move prazeres. E isto não é necessariamente mau, estamos, sim, no campo das negociações. É neste sentido que ele se multiplica e multiplica os seus lugares de emergência e exercício.