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2.4 “A vida inteira que poderia ter sido, e que não foi” ou a supervivência da memória.

O espaço do arquivo é, comumente, percebido como um lugar de sobrevivência de uma memória desfibrada, ambiente no qual se busca, à força da coadunação de traços de vivências, construir uma trama urdida com destreza que narre uma dada história monumental simulando linearidades e suplantando as brocas e hiatos do tecido corroído da lembrança. A proposta trazida por Evando Nascimento em seu texto A efêmera memória: Clarice Lispector, insta-nos a compreender o lócus do arquivo como sendo o lugar da supervivência, no sentido de entendê-lo mais como um suplemento de

47 DERRIDA, Jacques. Freud e a Cena da escritura. In: DERRIDA, Jacques. Escritura e Diferença. Trad.:

memória, que será atualizada e reconfigurada a cada leitura que a acione. Desta forma, a sacralização do lugar de produção do texto artístico e de travessia de vida do escritor pode ser lida de uma forma positiva se enxergarmos a aura que se deposita sobre estes espaços e eventos como um tecido brocado através do qual vazam partículas de passado que se oferecem a uma releitura iconoclasta.

À época de aniversários de nascimento ou morte de escritores, homenagens a textos considerados “pedras de toque” da literatura brasileira ou estrangeira, os cursos de letras, grupos de pesquisa e estudiosos vários se reúnem em torno daquilo que é compreendido como um acontecimento e, como tal, surge cercado de grande comoção, entretanto, findos os rituais vários de reverência, a cena acadêmica se encerra e o acontecimento se esvai. Esta maneira episódica de se relacionar com os acontecimentos culturais relevantes constrói um círculo de adoração que os aprisiona em um passado distante e finda por impedir a sua atualização e, portanto, a ampliação de seu público leitor e produtor de leituras analíticas. Desta forma, Nascimento afirma que uma forma importante para se fugir destes surtos de memória é promover o regular retorno aos arquivos:

Tal outra disposição passaria sem dúvida por um ir além da espetacularização da memória, tornando o ato de reativar as obras e os documentos não o pretexto para mais um produto a ser consumido durante certo período, mas a possibilidade mesma de driblar ou postergar o momento inevitável da incineração, próprio a tudo o que humanamente foi concebido em uma data48.

A virtualidade de memória, ou a virtualidade dos processos mnemônicos que, neste contexto se apresenta como fértil possibilidade de interpretação da memória, pode ser compreendida como sendo um gesto de ruptura em relação a uma postura tradicional acerca da memória fetichista, que depende não apenas da materialidade dos objetos como de gestos de materialização de acontecimentos que convertam a vida em traço puro, em marca, em trauma. Para tanto, é indispensável que se livre o acesso aos registros mnemônicos dos rituais de reverência pura e se compreenda que a objectualização da lembrança através de seu aprisionamento no mero registro palpável ou, ainda, a incapacidade de compreendê-la fora de uma dada paisagem contextual inviabiliza a sua leitura enquanto promessa, enquanto por vir, e, assim, condenamo-la tal como em uma punição mítica, a eternamente repetir o trabalho prometeico de

48 NASCIMENTO, Evando. A efêmera memória: Clarice Lispector. Texto inédito gentilmente cedido

conduzir-se até o cimo da montanha apenas para depois, mais uma vez, regredir ao mesmo lugar, nas palavras de Evando Nascimento:

O problema das efemérides notáveis e de todo aparato que as cerca é simplesmente o motivo de muitas vezes não se desdobrarem em suplemento de memória, em novos registros de signos, que são a garantia da supervivência da obra, qual seja, a capacidade de engendrar novas criações49.

O indecidível derridiano é uma categoria de pensamento que tem sua produtividade potencializada vez que escapa à lógica binária do pensamento ocidental abrindo, assim, a possibilidade de construção de claves de leitura outras. No momento em que se oferece à memória um lugar dúbio, qual seja, o de vestígio de eventos passados e, ao mesmo tempo, sinalização de um por vir constante, esta ambigüidade constrói uma reconfiguração de suas ações e possíveis interferências, projetando-a em um espaço produtivo de interpretações. Esta estratégia pode ser alegorizada se refletimos sobre a mecânica da memória no texto literário, em Drummond e Manuel Bandeira, ou, ainda, no Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas que, derridianamente, repete a sua própria história não como souvenir, mas compreendendo o caminhar mnemônico como sendo um gesto de atualização e re-contextualização da memória, assim, cada vez que ele reconta a sua trajetória, o narrador estabelece novas redes de contato entre os fatos, sentimentos e ações passadas, retextualizando-as no presente e projetando-as no futuro. Riobaldo, compreende, em seu discurso ensimesmado, vez que não abre espaço para a voz de seu interlocutor, aquilo que Evando Nascimento, explorando o conceito derridiano de indecidível, classifica como sendo a função libidinal e letal da memória. Escapando à limitação do binarismo ocidental, em que a vivência (sobrevivência) e a vida (sobrevida) se compõem como espaço complementar , a supervivência seria a possibilidade de se pensar a memória ativa como suplemento do vivido.

Caminhando nesta direção, a materialidade do arquivo converte-se em mero índice, não como um fim em si mesmo, isto nos auxilia a compreensão das limitações do olhar fetichista costumeiramente lançado sobre o arquivo, uma vez que a citada noção de supervivência nos insta a enxergar a multiplicidade de interpretações que a atualização da leitura e análise do arquivo pode oferecer. Quando afirmamos a

49 NASCIMENTO, Evando. A efêmera memória: Clarice Lispector. Texto inédito gentilmente cedido

materialidade do arquivo como índice, desejamos caminhar aqui na direção de pensá-lo como descrito acima, ou seja, como por vir, sublinhando a sua capacidade libidinosa de gerar vida, entretanto, para as leituras mais tradicionais do arquivo, ele funciona também como índice, mas isso lido em uma direção diversa, na medida em que ele estaria vulnerável ao encaminhamento interpretativo pretendido pelo arconte.

Tradicionalmente, o arquivo é pensado como lugar ontológico – como começo, origem e, por conseqüência, teleológico – vez que narraria a evolução de um dado fenômeno (o que já nos remete às provocações de Foucault em O que é um autor50, caso busquemos olhar mais criteriosamente para os objetos que constam no arquivo e que são não apenas responsáveis por contar a história de vida do autor, mas, igualmente, por construir um dado lugar para ele e para a sua obra), o arquivo seria, igualmente, o espaço nomológico, de onde emerge uma lei, um comando, que ordena e legisla sobre o seu acesso (estabelecendo rituais tão mais complexos quanto maior for o valor, no mais das vezes simbólico, do acervo) e interpretação (nomeando e autorizando leitores especializados na abordagem de determinado corpo – o que implica na secularização das estratégias, métodos e percursos de análise deste material).

Desta forma, ainda que a materialidade do corpo do arquivo seja básica para os movimentos de objectualização de seu bojo, o cerco simbólico que se forma à sua volta nos aponta que a análise tradicional também o percebe como herança e, portanto, como espectro, entretanto, a leitura corrente é de que esta herança precisaria ser apropriada e interpretada, a fim de conjurar o poder destes signos. Neste sentido, a questão básica do arquivo é, segundo Evando Nascimento, política, passa, necessariamente, pela relação entre público e privado, ou seja, entre o que deve-pode manter-se privado e o que deve- pode ser publicizado (sem que isto promova uma nódoa em uma dada representação do autor que teria conseqüências não apenas em sua representação canônica, mas, também, ainda que em menor grau, na valorização financeira de seus textos – lembramos aqui das poesias eróticas de Drummond).

Jacques Derrida em seu texto intitulado Mal de Arquivo51, indaga, acerca do arquivo, a quem caberia, sobre este, a palavra de autoridade. Aquele capaz de estabelecer fios de coerência e estratégias de harmonização entre os seus fatos construindo uma história, um discurso, exercerá, certamente, sobre este, um poder.

50 FOUCAULT, Michel. O que é o autor? Lisboa: Veja, 1992.

51 DERRIDA, Jacques. Freud e a Cena da escritura. In: DERRIDA, Jacques. Escritura e Diferença. Trad.:

Entretanto, é imperioso reconfigurar a antiga noção de arquivo como sendo uma reunião natural, quase espontânea de documentos vários, assim como se deve desconfiar da crença de que, por ele, alcançaremos as origens de uma memória linear. O arquivo, como todo discurso memorialístico, é uma construção discursiva de autopreservação, a própria idéia de uma reunião de materiais que narram uma história é, por si, artificial. A condição sine qua non para o estabelecimento do arquivo em qualquer suporte é a presença, atrás dele, da fala de um pai que o tutele, o proteja das mãos invasoras, do mau uso e, igualmente, dos maus intérpretes, um sujeito que ocupe um lugar de autoridade, um arconte. Esta figura será responsável pela mediação, permissão e restrição de acesso ao corpo do arquivo. Derrida afirma que a palavra arquivo, significa, a um tempo, começo e comando, sendo ele ali onde as coisas começam e onde se exerce sobre estas um comando. Grossmann, ao não apenas doar, mas igualmente, selecionar e organizar os materiais que compõem os arquivos que registram a sua passagem por Salvador, ocupa um lugar de autoridade e também adentra em uma das mais importantes reflexões de Michel Foucault, a saber, os processos de subjetivação.

2.5 Debaixo da face a máscara:

as múltiplas representações da subjetividade no cenário da pós-