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Os modos de saber histórico: a gramática narrativa da memória

o percurso da construção do Mestrado em Letras na UFBA.

3.4. Os modos de saber histórico: a gramática narrativa da memória

Friedrich Nietzsche em seu texto Segunda consideração intempestiva se dedica a analisar a construção do discurso histórico, ou, em suas palavras: “O valor e a falta de

valor da história”112. Ao adotar a idéia de traçar considerações intempestivas é denunciada a virtude de admiração da história, quando levada a termo com afinco e dedicação excessivas impedindo a urdidura de novas temporalidades, como um traço hipertrofiado que pode levar um povo à degradação. Assim, trabalhar intempestivamente com a história, ou pela história não é soterrar o passado, é sim trabalhar “contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro”113 pensando o passado como uma abertura para o por vir.

Quando comparado ao animal o que se vê é um homem absorto, mergulhado no seu passado, em uma memória que em lugar de ser instrutiva torna-se alienante, vez que obscurece a possibilidade do amanhã. O animal vive a-historicamente, desligado e liberto que está ele de ilações temporais que o tragam qualquer sentimento ou perspectiva de falência, sendo o tempo uma invenção humana é sobre o homem que pesa o fracionamento do tempo por ele produzido. Por conta disso é que a filosofia Nietzscheana afirma que a todo agir liga-se um esquecer, ou seja, a incapacidade de esquecer ou o apego desmedido ao passado impõe o imobilismo:

Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante ao que se obrigasse a abster-se de dormir ou ao animal que tivesse de viver apenas de ruminação e de ruminação sempre repetida114.

Assim sendo, a ausência de lembrança não conduz à impossibilidade da vida, para isso há o aprendizado, há a construção diária da experiência115, entretanto, para o filósofo, é absolutamente impossível viver sem o esquecimento. Ao se colocar diante do passado como uma herança sob a qual os ombros do homem de hoje sucumbem, há a construção de um dado grau de insônia improdutiva que dirigem qualquer presente ao vazio. Por outro lado, se sobre este passado se aplica uma dada capacidade de releitura, de análise sempre ambivalente e, principalmente, se o homem tem a força para recortar em torno de si um horizonte determinado, um limite, uma área de convivência com o passado a sua relação com a lembrança e o esquecimento se torna fluida e menos sufocante.

112 NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva; Da utilidade e desvantagem da história

para a vida. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

113 Idem, p. 7. 114 Idem, p. 9.

115 Descartando, certamente, as síndromes e doenças neurológicas que impõem, por exemplo, a perda de

Esta é a força plástica que faz com que um homem, um povo ou uma cultura possam traçar uma linha que aparte aquilo que é alcançável, visível e claro, daquilo que subsume para além, no obscuro do esquecimento. É esta força que possibilita a saber lembrar e esquecer no momento certo, ou seja, é ela que possibilita sentir historicamente e a-historicamente no tempo mais correto, abrindo a possibilidade da construção da “novidade”, é daí que se indaga: Onde encontramos feitos que puderam ser empreendidos pelo homem sem antes imiscuir-se naquela névoa espessa do a-histórico? Há, entretanto, um terceiro tipo de relacionamento com a história que é construído pelo homem supra-histórico que é aquele que se coloca acima da lembrança e do esquecimento, compreendendo tanto o passado como o presente como similares, ou seja: compartimentalizando-os. O resultado para o homem supra-histórico é o mesmo, uma vez que os vê como instantes prontos e acabados, iguais em sua multiplicidade, não tendo, portanto, nada mais a acrescentar a nada nem a ninguém.

Podemos assim, pensar que, como nos aponta Nietzsche, são, inicialmente, três as formas de se relacionar com a história. O primeiro, usando o sentido histórico e tendo uma tal fidelidade ao passado e uma memória tão firme que se torna um obstáculo intransponível; depois, sendo a-histórico e, assim, minorando a importância e o peso do passado, recortando e compreendendo a relatividade de sua pressão sobre o presente e pensando muito mais como o alimento do futuro e, finalmente, sendo supra-histórico e imobilizando-se sobre passado e presente, compreendendo-os como iguais e infrutíferos e, portanto, inviabilizando qualquer projeção para o futuro. Mas é importante destacar que quando se fala em história não podemos compreendê-la como um bloco homogêneo. Ela se modifica e reconfigura a depender do tipo de relacionamento que se constrói com ela e é a partir daí que Nietzsche nos aponta a possibilidade de pensar em três tipos de história, a monumental, a antiquária e a crítica.

No horizonte de vivências de um povo há um conjunto de acontecimentos que rebrilham como grandes marcos irrepetíveis através dos quais pode ser forjada a sua historiografia. São para o povo a referência inescapável da travessia entre passado e presente que servem ao futuro como herança. A “consideração monumental do passado” serve aos homens do presente não apenas como o culto ao que há de clássico e raro no passado, mas, principalmente, os exorta à tentativa de erguer novos marcos históricos para as futuras gerações. Desta forma, tanto quanto demonstrar a permanência icônica dos feitos do passado, a importância da história monumental é traçar uma linha de continuidade entre temporalidades distintas. Há, no entanto, um porém:

[…] O quanto da diversidade precisa ser desconsiderado aí para que a comparação possa produzir aquele efeito fortalecedor, o quão violentamente a individualidade do passado deve se encaixar em uma forma universal e o quanto todos os seus ângulos e linhas acentuados precisam ser destruídos em favor da concordância!116

Para Nietzsche, a mecânica de construção da história monumental é formada, basicamente, por uma estratégia de conversão dos acontecimentos em uma naturalizada ilação de “efeitos puros”, em outras palavras, minorando a participação das causas e elevando as suas conseqüências a efeitos em si, o que é celebrado em festas populares, comemorações religiosas e de guerras é o que sobra, o que emerge quando vai à pique o navio do passado. Neste circuito, a história monumental se converte em uma espécie de ficção mítica e é esta, e não qualquer pretenso nível de corporalidade e inteireza histórica, que é cultivada.

Por outro lado, abandonando a distância a partir da qual se admira o monumento, a história é passível de ser recolhida e abraçada por uma mão zelosa que cuida dos fatos passados. Estando atenta ao mínimo acontecimento, a alma preservadora e veneradora do homem antiquário alimenta a história com a sua dedicação absoluta, contando-a com seu corpo, convertendo-a em sua própria história, narrando-a a partir daquilo que se encontra ao alcance de seu olhar. A conseqüência disso é a limitação do campo de visão tornando-o excessivamente restrito e isolado, mergulhado na avalanche de fatos, cenas, datas, ocasiões que são para ele igualmente relevantes, ele torna-se incapaz de vislumbrar as distinções entre os vários níveis e as diversas profundidades no solo histórico: para ele tudo é igualmente importante. Neste ínterim emerge um impulso à negação e hostilidade com tudo o que é novo, sem perceber, este homem está sufocado na memória e tem diante de si um presente infrutífero:

Quando o sentido de um povo se enrijece desta forma, quando a história serve de tal modo à vida passada, quando o sentido histórico não conserva mais a vida, mas a mumifica: então a árvore morre de maneira nada natural, de cima para baixo, paulatinamente em direção às raízes – por fim, mesmo as raízes perecem junto117.

116 NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva; Da utilidade e desvantagem da história

para a vida. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.p.21.

Obcecado pela reunião dos sobejos do passado, ele compreende que a vida deve ser meramente conservada, ela não é uma força geradora, o futuro ou o presente são indignos de sua atenção.

Quando nos defrontamos com as posturas tão dicotômicas de um, cego ao minimalismo, adorador inveterado de grandes ídolos e míope àquilo que foge ao grandioso e monumental e de outro, preso a cada grão de história, entorpecido e viciado em cada um de seus mais mínimos acontecimentos e é incapaz de lançar o seu olhar para além da cegueira do ontem, percebemos que em ambos há um traço que os destinou cada um a sua hamartía118: o embotamento de consciência.

Nenhum deles se mostra capaz de ocupar um lugar mais distanciado e friamente analítico, compreendendo não apenas a criticidade que se deve oferecer a todo fato histórico, mas, também, a relatividade e precariedade de cada olhar lançado sobre o passado. Apenas através do modo crítico de narrar a história é que se pode fazer “explodir e dissolver um passado, a fim de poder viver”119. Trazendo o passado de um povo para o banco dos réus, o que se descobre é que todo ele seria condenado em qualquer tribunal honesto vez que o crime é uma força estruturante de qualquer poder. As rapinas, violências, roubos, sevícias, traições, escamoteamentos e omissões são constituintes de toda a história humana, se muito, o que se pode fazer é investir na tentativa de amenizar a sua gravidade, maquiavelicamente, com as boas intenções que lhes serviram de motivação:

O melhor que podemos fazer é confrontar a natureza herdada e hereditária com o nosso conhecimento, combater através de uma nova disciplina rigorosa o que foi trazido de muito longe e o que foi herdado, implantando um novo hábito, um novo instinto, uma segunda natureza, de modo que a primeira natureza se debilite120.

Conforme sabemos, o melhor caminho é o do meio, é, portanto, importante compreender que a exclusividade de qualquer opção analítica, seja ela a monumental, antiquária ou crítica levará o analista e o resultado de seu estudo a um mesmo esvaziamento e imobilismo, assim, é conveniente utilizar sempre de mesclas balanceadas destas formas distintas de retorno à história.

118 Hamartía é o erro de julgamento que leva à catástrofe.

119 NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva; Da utilidade e desvantagem da história

para a vida. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.p.31.

120 NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva; Da utilidade e desvantagem da história

Quando se propõe a analisar os discursos da genealogia e da história a partir do pensamento nietszchiano, Foucault aponta uma possibilidade de pensar a análise histórica para além dos lugares já marcados pela “tradição” analítica. Confrontando o pensamento genealógico com o discurso histórico, ele nos anuncia que a genealogia é cinza e lenta, demora-se na leitura de cada acontecimento, pacientemente documentária, ela “trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescrito”121 sugerindo a oposição alegórica, a história seria então pintada com cores mais vivas e harmônicas, jovem delicadamente maquiada para o seu baile, ansiosa, não se prende senão à evidência pura, lógica, tangenciando apenas, por conta de seu furor juvenil, a carne dos acontecimentos. Mas não é, conforme o autor, à história que a genealogia se opõe, mas sim ao excesso aberto pela visão cotidiana do estudo histórico: ela se opõe à busca da origem. Tal idéia parece, a princípio, contraditória. Mas, se bem compreendida a questão nada faz mais sentido: se todo o trabalho da genealogia está em emaranhar-se nas malhas do acontecimento para compreender a sua complexidade, interessa-lhe mais as teias relacionais que se podem estabelecer entre eles do que a busca ontológica ou causalista da ordem verdadeira das coisas, que, impreterivelmente, cala a legião de vozes que grita em cada fato histórico em favor do erguimento de uma identidade “cuidadosamente recolhida em si mesma, em sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental e sucessivo”122.

O jogo histórico põe em cena, para a sua construção, uma ingenuidade parva, que impõe, a todo gesto, ainda aqueles maquinalmente construídos e inspirados a fim de culminar em um dado resultado de fuga, morte, traição, punição ou negação, a sombra de uma articulação acidental, quase divina, que não pode se dissipar ainda que sob a mais rigorosa das ventanias. O esforço de costurar cada trecho do tecido arrombado de qualquer evento é tão concentrado que, em favor da busca de uma identidade última, da busca da essência das coisas em seu sentido verdadeiro, as mãos que se dedicam a cerzir a narrativa não percebem as diferentes texturas, o discurso das urdiduras, o jogo das tramas. Não quer compreender que a realidade metafísica é, por definição, um oxímoro inconciliável, se há um segredo nestes movimentos é o de que as coisas não têm essência per si, ou, ainda, que a essência propalada no discurso que reivindica a autoridade e o lugar de legitimidade sobre determinado acontecimento é uma construção

121 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In:_______. Microfísica do poder. Rio de

Janeiro: Graal,1979. pg15.

122 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: _______. Microfísica do poder. Rio de

montada com afinco, peça por peça, a partir de elementos absolutamente estranhos entre si, assim a tarefa do genealogista seria:

Demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou ao contrário as inversões completas – os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe de valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existe a verdade e o ser, mas a exterioridade e o acidente123.

No momento em que acreditamos demonstrar que estes enunciados não recuperam a emergência original e originária dos Estudos Literários no PPGLL do ILUFBA, e sim, confabulam para a compreensão dos elementos e variáveis que penetraram, naquele momento, no campo discursivo de Letras e abre-se um espaço para que se possa apostar em leituras multifocadas e polifônicas que são trazidas à tona pelo jogo relacional dos enunciados. A nossa compreensão é a de que o mais corriqueiro dos gestos humanos é a construção de discursos que embasem a tradição, esta, por sua vez, perfilha o futuro, filho bastardo seu que se reconhece no pai mais pela obediência compulsória à ordem naturalizada das coisas que por real identificação. Assim, quando nos propomos a, neste momento do trabalho, apontar algumas bases sobre as quais se ergueram os Estudos Literários na paisagem por nós escolhida o fazemos cientes de que findamos por delimitar o lugar de onde se inventa a tradição da Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras na UFBA.

123 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: _______. Microfísica do poder. Rio de

4. Micropoderes e polissistemas: