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A catação como forma de reconhecimento social

4 RESULTADOS: ENTREVISTAS, APRESENTAÇÃO DAS RECONSTRUÇÕES

4.3 A APRESENTAÇÃO DE DOIS TIPOS

4.3.2 A catação como forma de reconhecimento social

O primeiro contato de Vanessa com a catação e a reciclagem parece ter ocorrido bastante cedo na infância, ainda no seu local de nascimento, situado na zona leste da cidade. Nesse local foi fundada, entre os anos de 1991 e 1996, uma das primeiras associações de reciclagem por iniciativa de catadores de resíduos com o apoio do poder municipal (SILVA; NASCIMENTO, 2017). O bairro era tanto conhecido pela realização do trabalho da reciclagem de forma coletiva como individual. Com a queda do poder econômico e a mobilidade descendente provocada pela morte do pai, a família se mudou da zona leste para o centro da cidade, onde Vanessa, aos dez anos de idade, começou a trabalhar na catação e na venda de resíduos, no intuito de contribuir para a manutenção da família. Na nova localidade, o trabalho da reciclagem era realizado de forma intensa, configurando uma das mais importantes atividades laborais praticadas pelos seus moradores. Em ambas as vilas, pode-se observar que a catação possuía reconhecimento social e legitimação por parte daqueles que a praticavam, ofertando-se, assim, como uma atividade possível dentro do horizonte de possibilidades da família. A partir da fala de Vanessa sobre a sua primeira experiência na catação, observa-se de que forma a catação vai se tornando uma atividade atraente, uma vez que não somente possibilita a geração de renda como também a aquisição de determinados bens de consumo.

No que concerne ao desenvolvimento da atividade da catação no percurso de sua trajetória biográfica, Vanessa demonstra ter mantido, em grande medida, a experiência positiva realizada com a atividade na infância. Ela parece construir com a família uma espécie

de empreendimento familiar, no qual Vanessa se apresenta como a iniciadora e principal envolvida, desempenhando o papel daquela que sai para coletar os resíduos, tornando-se assim o contato dos fornecedores, enquanto os irmãos e a mãe desempenham uma atividade auxiliar na coleta e triagem. A tendência é de que Vanessa tenha adquirido conhecimentos e práticas exclusivas da atividade durante todo esse processo. Vanessa retrata ter trabalhado, sem interrupções, cerca de onze anos na catação de rua.

Aos 18 anos, paralelamente ao trabalho da reciclagem, ela passou a trabalhar numa cooperativa de limpeza urbana, ingressando, pela primeira vez, no mercado de trabalho formal. Ela trabalhou durante três anos nessa cooperativa e, pressuponho, que saiu quando se mudou da região do centro para a zona norte da cidade. A experiência de Vanessa em organizações e instituições de compartilhamento do conhecimento especializado começou na infância com a inclusão escolar e a participação em ações de cunho social e educativas. Nesse sentido, as experiências laborais de Vanessa não se limitam às organizações informais de trabalho, como a família, mas se expandem à participação em ambientes formais de qualificação profissional. Além da infância afetuosa e protetiva dos pais, em que Vanessa adquiriu as primeiras regras sociais, bem como desenvolveu a capacidade de controlar suas emoções e seus impulsos, a passagem por instituições formais provavelmente contribuiu para o aprimoramento e a ampliação desses conhecimentos e da expectativa social sobre eles. Portanto, todas essas experiências institucionais supracitadas podem ter contribuído para o desenvolvimento da atividade da catação no processo de socialização de Vanessa.

Embora não fique claro o motivo pelo qual Vanessa deixou de trabalhar na cooperativa de limpeza urbana, sabe-se, por meio de sua entrevista, que quando ela se mudou para a zona norte com a família, recebeu um convite para trabalhar na unidade de triagem localizada no loteamento, fundada e organizada por catadores de resíduos com o apoio do governo municipal. Ela iniciou sua participação com as demais mulheres na triagem dos resíduos e subiu gradativamente de posição até tornar-se responsável pela área financeira do galpão. Vanessa verbaliza ter contribuído para o aumento da renda mensal da unidade, que à época da entrevista se encontrava entre 1.100 a 1.200 reais. De maneira geral, ela começou a fazer parte do grupo de pessoas que lidera a unidade, demonstrando reproduzir no trabalho a noção de hierarquia e poder que construiu nas relações de parentesco.

No contexto da sua trajetória dentro da reciclagem, ela realizou, entretanto, uma nova experiência na unidade de triagem: de trabalhadora informal passou a ser membro associada de uma organização reconhecida e fomentada pelas ações públicas. Isso significa dizer que ela passou a participar e colaborar para o processo de formalização e profissionalização das

atividades da unidade de triagem, beneficiando-se diretamente do reconhecimento e da legitimação social do seu trabalho, que agora, porém, extrapolava os limites territoriais e simbólicos da vila. Devido à relação de convênio com a Prefeitura, Vanessa e os demais associados tiveram que rever seu processo de trabalho no intuito de torná-lo mais eficiente e rentável. Para tanto, passaram a ser acompanhados por engenheiros e outros especialistas, assim como a visitar cursos de qualificação. Começaram, inclusive, a participar de eventos de conscientização ambiental promovidos pelo município em diferentes pontos da cidade. Além dos eventos a céu aberto, ocorrem ainda visitas de instituições sociais e escolas à unidade de triagem, bem como reportagens de veículos de comunicação da capital, que passaram a divulgar o trabalho dos associados.85 De forma geral, todas as ações que possam ter cumprido uma função legitimadora, como a fundação do Movimento Nacional dos Catadores de Resíduos ou a integração dos catadores no Plano Nacional de Resíduos Sólidos, podem ter contribuído direta ou indiretamente para essa nova experiência dentro da reciclagem.

Quando Vanessa fala hoje sobre a catação, ela diz ter orgulho de ter trabalhado e de trabalhar com reciclagem, como mostra a seguinte passagem:

“[...] eu acho que se tocasse de vive esse momento de papel era eu queria vivê de novo, sabe, não tenho vergonha, todo mundo, onde tu trabalha, trabalho num galpão de reciclagem, com muito orgulho, não tenho vergonha do meu serviço, ah vamo fazê uma gravação lá q-, vamo fazê, vamo mostra, e não só eu, vamo mostrá o galpão intero, vamo fazê, é todos, não é só eu [...]” (p. 7, linhas 44-48).

Novamente encontra-se a dualidade orgulho e vergonha de trabalhar na reciclagem, aspecto este bastante presente no discurso de catadores sobre o seu trabalho e abordado pela literatura em geral. No caso de Vanessa, pude observar que ela manifesta seu sentimento de orgulho em um contexto de valorização e legitimação da atividade. No entanto, ela apresenta ter lidado em algum momento, seja no passado ou no presente, com olhares críticos de terceiros, dando destaque às experiências realizadas na catação de rua e na atual localidade de moradia.

Embora a entrevista com Vanessa tenha sido breve, ela pôde fornecer um material rico para a análise que me possibilitou encontrar um tipo bastante distinto daquele encontrado na relação de Aline com a catação. Com base nas experiências de Vanessa realizadas na catação e com os sujeitos envolvidos nesse processo durante toda a sua socialização, bem como a forma como ela retrata hoje a atividade, concluo que Vanessa vê na catação, de maneira

85 Todas as ações supracitadas, desde os cursos de qualificação até os eventos, foram executados pelo programa “Todos Somos Porto Alegre”, no qual atuei durante dois anos.

latente, uma forma de reconhecimento social. Pelo que tudo indica, a intensidade, a periodicidade e a presença que a atividade apresentava ter tido na antiga vila já lhe proporcionavam elementos suficientes para que pudesse encontrar na catação uma forma de reconhecimento social perante aqueles que a praticavam. Na unidade de triagem, esse reconhecimento parece extrapolar o grupo de catadores, estendendo-se à sociedade em geral. As experiências de aquisição e especialização de conhecimentos, bem como o reconhecimento do seu trabalho, podem ser vistos na trajetória de Vanessa como indicadores de um processo de profissionalização de sua atividade.86

Se, por um lado, determinadas práticas e discursos de especialistas e grupos sociais estabelecidos podem ser gradativamente assumidos, por outro, a percepção habitual sobre o seu trabalho demonstra resistir. Vanessa não usa, por exemplo, a expressão “catação”, e sim “puxar carrinho”, assim como ela não fala “catador”, e sim “papeleiro”. Nesse sentido, ela não incorpora durante a entrevista o termo político “catador” no seu vocabulário, demonstrando utilizar seus próprios conceitos sobre o seu trabalho. De forma geral, considero que mudanças no padrão comportamental possam acarretar, no médio e no longo prazos, mudanças na autocompreensão e na autodefinição dos sujeitos e vice-versa.87 Tal aspecto, possivelmente, tem implicações na forma como Vanessa vê os catadores e, consequentemente, a si mesma, podendo gerar conflitos de identidade e tensões.

No sentido auferido por Dubar (2012) à possibilidade da construção de uma identidade profissional, Vanessa demonstra ter construído uma trajetória profissional na reciclagem que se estende por mais de 16 anos. Foi através, especialmente, da catação que ela verbaliza ter enfrentado e superado as dificuldades financeiras da família. Após anos de dedicação à mãe e aos irmãos, Vanessa reconhece a possibilidade de dedicar-se à construção de algo inteiramente seu. Família e trabalho são apresentados por ela como importantes elementos biográficos do presente, construídos no seu processo de socialização, atuando como importantes fontes de reconhecimento social, por isso parte integrante da própria identidade. A respeito da catação, Vanessa demonstra ter gozado de reconhecimento social durante todo o seu processo de socialização, tanto na sua família, entre os catadores da vila e hoje na unidade de triagem, com a diferença de que, atualmente, a sua atividade dentro da cadeia da reciclagem mudou, assim como o reconhecimento pelo seu trabalho, que indica ter ultrapassado as paredes do galpão e os limites da localidade.

86

Ver a discussão realizada por Dubar (2012) sobre a socialização profissional.

87 Rosenthal et al. (2006) discutem, a partir de um estudo com jovens no mercado de trabalho, como mudanças nos padrões de comportamento podem acarretar em mudanças na autocompreensão.

Ao levar em consideração todas as atividades envolvidas no processo de trabalho de uma unidade de triagem, ou seja, a coleta, o fornecimento, a triagem, o empacotamento, a distribuição e a venda dos resíduos, a função de Vanessa se encontra ao final desse processo. Vanessa fala tanto sobre a catação que realizava no passado quanto sobre o trabalho atual. É preciso considerar que a maneira como fala do passado está fortemente marcada pelo presente. Logo, a valorização da catação ocorre num contexto de trabalho bastante positivo, que somente de forma parcial possui uma correspondência com a atividade realizada no passado.