• Nenhum resultado encontrado

A legitimação da catação no Brasil

2.2 CATADORES, RECICLAGEM E MUNDO-DA-VIDA

2.2.3 A legitimação da catação no Brasil

Enquanto o termo “catação” surge para classificar o trabalho dos catadores, o termo “reciclagem” é uma palavra empregada, em princípio, de forma técnica, derivada do inglês recycling, para designar o processo de transformação pela indústria de materiais descartados. Assim como o próprio termo “catação”, a palavra “reciclagem” não possui somente um

31

Informação obtida em reuniões e debates dentro das minhas atividades no Programa “Todos Somos Porto Alegre”.

sentido técnico, e sim, em grande medida, um sentido político. Devido ao seu valor econômico e ambiental instituído a partir dos eventos anteriormente citados, a reciclagem em si já é um mercado legitimado. A partir dessa perspectiva, lança-se a seguinte questão: quem tem o direito de explorar esse mercado, como e por quê?

Os catadores, assim como os demais agentes envolvidos, buscam a partir de práticas e discursos legitimadores o direito de exploração desse mercado. Alguns resultados de suas conquistas podem ser encontrados na inclusão de cooperativas ou outras formas de associação de catadores nos serviços de coleta e triagem dos resíduos, assim como estipulado por lei (Lei n. 12.305), bem como o reconhecimento do seu trabalho como ocupação pelo Ministério do Trabalho. No que corresponde à situação das associações de catadores na cidade de Porto Alegre, essas vêm gradativamente conquistando seu espaço dentro do mercado da reciclagem através de incentivos financeiros e reconhecimento dos setores público e privado, mesmo que esse processo não possa ser visto como contínuo, apresentando momentos de crise.

Antes de seguir com exemplos, gostaria de discutir de que forma Berger e Luckmann (2014) explicam os mecanismos por trás de processos de legitimação. Para os autores, o processo de legitimação faz parte dos processos que compõem a dialética da construção social da realidade, que são a tipificação, a institucionalização, a legitimação e a socialização. A Figura 7, a seguir, ilustra a tríade da dialética da construção social da realidade, assim como os processos que a constituem (KNOBLAUCH, 2005).

Figura 7 – Dialética da construção social da realidade

Embora não se deva entender a dialética da construção social da realidade como processos independentes e estanques, mas, sim, como processos que ocorrem todo o tempo, simultaneamente, o processo de legitimação estaria localizado, para Berger e Luckmann (2014), na dialética entre os processos de institucionalização e socialização, uma vez que é pela legitimação que objetivações institucionalizadas buscam suas “justificativas” e “explicações” para possíveis contradições que as impossibilitem de circular. A objetivação designa o processo pelo qual tipificações e tipos de sujeitos passam a existir para além da atuação dos indivíduos. Segundo os autores:

A legitimação enquanto processo é melhor definida dizendo-se que se trata de uma objetivação de sentido de “segunda ordem”. A legitimação produz novos significados, que servem para integrar os significados já ligados a processos institucionais díspares. A função da legitimação consiste em tornar objetivamente acessível e subjetivamente plausível as objetivações de “primeira ordem”, que foram institucionalizadas (BERGER; LUCKMANN, 2014, p. 122).

O conceito de objetivação ou conhecimento de primeira e segunda ordem foi cunhado por Alfred Schütz (2004): enquanto o conhecimento de primeira ordem designa as teorias dos homens comuns no mundo-da-vida, chamadas de senso comum, o conhecimento de segunda ordem refere-se às teorias desenvolvidas em outras realidades (Sinnprovinzen), como a ciência ou a religião, as quais, por sua vez, sempre buscam suas referências no mundo-da- vida.

Sempre que objetivações institucionalizadas passam a ser transmitidas, extrapolando o seu meio e grupo formador, não podendo ser mais somente mantidas por hábitos e uma memória coletiva, elas necessitam encontrar formas de se legitimar, ou seja, formas de se justificar e explicar para continuarem a existir. Na transmissão, sua existência é colocada em dúvida, mas, cada vez que a dúvida é superada, esse elemento da realidade social vai tornando-se mais maciço.

Berger e Luckmann (2014) distinguem quatro níveis de legitimação, que, embora aqui apareçam analiticamente separados, na realidade social emergem de forma conjunta. Eles se diferenciam principalmente pelo seu grau de explicação e o grau de poder que exercem sobre os homens (ABELS, 2007). O primeiro nível de legitimação faz referência às afirmações simples ligadas à tradição, o que os autores chamam de “explicações fundamentais” (Primärwissen). Assim como quando se pergunta o porquê de algo e se recebe a resposta “porque sim” ou “porque é assim que se faz”. Esse nível é pré-teórico, ou seja, existia antes do surgimento de legitimações com base em teorias densas. Além disso, esse nível é, mais do

que tudo, “o fundamento do „conhecimento‟ evidente, sobre o qual devem repousar todas as teorias subsequentes, e inversamente, que estas devem atingir para serem incorporadas à tradição” (BERGER; LUCKMANN, 2014, p. 125).

O segundo nível de legitimação faz uso de proposições teóricas em forma rudimentar (theoretische Postulate in rudimentärer Form). Nesse nível, são realizadas explicações com base em esquemas de relações objetivas. Trata-se de um verdadeiro instrumentário de máximas morais, ditados, valores, crenças e mitos, usados de forma quase poética para legitimar ações concretas. A frase “eu poderia estar roubando, matando, mas eu estou aqui trabalhando” é um exemplo emblemático desse tipo de legitimação entre trabalhadores informais. Algumas argumentações de muitos catadores sobre a maneira como percebem o seu trabalho, como “é sujo, mas é honesto”, também remetem a esse tipo de estratégia legitimadora. Além de essas explicações refletirem os valores compartilhados por um grupo ou sociedade, elas traduzem os mecanismos sociais inerentes às práticas sociais.

Somente no terceiro nível é que se encontra a teorização explícita (explizite Legitimationstheorien), a qual é reservada a um grupo específico de sujeitos, capacitados institucionalmente para executar tal atribuição. Nesse nível, um setor institucional é legitimado pelo seu conhecimento, o qual é transmitido “por meio de procedimentos de iniciação formalizados” (BERGER; LUCKAMNN, 2014). Teorias sobre a classificação e manuseio do resíduo, a explicação sobre a importância do descarte adequado para a não contaminação do solo e vias pluviais, a proteção do meio ambiente, práticas sustentáveis, empreendedorismo, assim como uma exposição sobre direitos e deveres de sócios de uma cooperativa de catadores são exemplos desse nível de legitimação. Não se trata somente do que é passado, mas como é transmitido. Portanto, o ritual tem um papel legitimador fundamental. Uma vez legitimadas, pessoas e teorias alcançam um grau de legitimidade que extrapola sua aplicação prática, tornando-se “teoria pura” (BERGER; LUCKMANN, 2014). Não é de se espantar, portanto, como o catador anteriormente isolado, agora supervisor de uma unidade de triagem, que passou por cursos de qualificação, goza de legitimidade diferenciada. Ele passa a fazer parte, em menor ou maior escala, do quadro dos especialistas, ou seja, papéis institucionalizados legitimados para falar33.

De forma geral, é importante se atentar para o fato de que essas proposições e teorias aplicadas no mundo social têm como base uma série de instituições e níveis de legitimação.

33

Para Berger e Luckmann (2014) os especialistas são os indivíduos que dominam o conhecimento especializado, bem como detém a legitimação pelo seu compartilhamento a partir de determinados rituais institucionais.

Nenhum nível cumpre tão bem esse papel integrador entre objetividade e plausibilidade como os universos simbólicos (symbolische Sinnwelten), representando o quarto e último nível da legitimação. Os universos simbólicos trazem consigo a explicação do todo. Nas palavras de Berger e Luckmann (2014, p. 127), isso significa dizer que:

[...] todos os setores da ordem institucional acham-se integrados num quadro de referência global, que constitui então um universo no sentido literal da palavra, porque toda a experiência humana pode ser agora concebida como se efetuando no interior dele. O universo simbólico é concebido como a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais.

Os universos simbólicos não oferecem somente explicações sobre a vida, suas fases e facetas, mas também sobre a morte e tudo aquilo que está localizado além da experiência prática da vida cotidiana, como o mundo de sonhos, fantasias, a ciência, a religião e assim por diante. Exemplos desse tipo de legitimação são explicações como “o capitalismo”, “a cultura cristã”, “o Alcorão”, mas também “a pós-modernidade”, ou seja, explicações abrangentes sobre a totalidade da vida humana (ABELS, 2007). O conhecimento é concebido socialmente de forma diversa, percorrendo caminhos que se estendem desde o saber elementar da vida cotidiana até as interpretações simbólicas (KNOBLAUCH, 2005). Sempre que surgir alguma desordem entre os diferentes saberes da realidade social, os universos simbólicos irão integrá- los, tornando-os significativos de um só mundo. Assim, toda prática sustentável não significará somente uma técnica adequada de descarte, e sim um ato que divide “pessoas de bem” das “pessoas do mal”.

A legitimação é cognoscitiva antes de ser normativa, ou seja, pressupõe conhecimento para funcionar como normativa (BERGER; LUCKMANN, 2014). Para que o sujeito possa definir o que é bom e o que é mal, ele terá antes que conhecer os papéis sociais ao seu redor. Não lhe é somente explicado o dever ser de algo, mas também o porquê das coisas. Os sujeitos podem pagar preços altos quando a legitimidade de suas práticas é questionada. O exemplo da restrição do uso de carrinho e carroça nas ruas de Porto Alegre, decretada em 2010 pela Lei n. 10.531, é um exemplo emblemático de como uma prática institucionalizada tem sua legitimidade colocada à prova (PORTO ALEGRE, 2010). Da mesma maneira que os agentes sociais podem questionar o direito de exploração dos resíduos no mercado da reciclagem, também podem levantar questões referentes ao direito de uso e às formas de uso do espaço público pelos catadores. Especialmente, a maneira como o catador circula e se apresenta na paisagem urbana demonstra ser motivo de reprovação entre aqueles que criticam e buscam rever a sua movimentação pelo espaço público (DIAS, 2002). Em linhas gerais, a

presente lei previa a redução gradativa do uso de veículo de tração animal (VTA) e veículo de tração humana (VTH) até 2016, afetando um grande número de catadores de rua, que usam VTA e VTH para trabalhar. O efeito da lei foi prorrogado recentemente para o ano de 2020 (CMPA, 2017).

Com a ajuda especialmente do Movimento de Catadores (MNCR) e de partidos políticos que legitimam essa prática, os catadores buscam manter sua atividade. Para tanto, usam discursos legitimadores que justifiquem essa atividade a partir da perspectiva da justiça social, da garantia de direitos, da geração de renda, do argumento ambiental, dentre outros. Devido ao pequeno grau de instrução e, consequentemente, do conhecimento que a maior parte desses trabalhadores detém, os catadores muitas vezes não conseguem recorrer “de forma adequada” aos discursos legitimadores, disponíveis no estoque social de conhecimento. A linguagem assume verdadeira importância no processo de constituição do conhecimento de uma sociedade e no seu compartilhamento, pois é nela que o estoque de conhecimento (e assim a estrutura social) social está armazenado e é transmitido.

Portanto, ao serem compartilhadas, as práticas sociais recebem uma “embalagem” adicional, a qual não faz mais referência à prática em si, e sim a elementos exteriores a ela. Quanto à catação, observo que seja possível encontrar diferentes estratégias de legitimação no decorrer do tempo, manuseadas de forma dinâmica por diferentes atores sociais. Se, de forma muito pragmática, o sentido da ação de catar de um sujeito seja coletar e vender objetos de valor para cessar a fome e adquirir vestuário, dentre outras possibilidades, a legitimação e os legitimadores lhe dão um novo sentido: a catação passa a ser compreendida como a consequência de relações desiguais no interior de uma sociedade, fruto da injustiça social, uma prática ambiental, sustentável, empreendedora, profissional, entre outras possibilidades. Quanto maior o grau explicativo da “teoria” empregada, maior será seu poder de legitimação, ou seja, mais difícil será contestá-la.

De forma geral, ao retomar a questão apontada no início desta discussão sobre o direito de exploração do mercado da reciclagem, gostaria de destacar a crescente obtenção de reconhecimento e legitimidade pelos catadores à medida que aproximam suas práticas às formas dominantes de organização profissional do trabalho das sociedades modernas. Ao passo que relacionam a sua atividade com um determinado discurso social, seja, por exemplo, o discurso da profissionalização ou da proteção ao meio ambiente, passam a interpretar e defender o seu trabalho com mais legitimidade. É especialmente nesse nível de organização que se pode observar uma tendência por parte dos catadores de reivindicar o reconhecimento do seu trabalho como profissão, bem como de assumir determinadas práticas de fechamento

social34, que consistem na tentativa de criminalizar, culpar e excluir catadores de rua do ciclo da reciclagem (MICHELOTTI, 2006; OLIVEIRA, 2010). Portanto, o direito de exploração dessa atividade demonstra estar diretamente relacionado à posse de determinado conhecimento e práticas, bem como seu poder de legitimação perante aquela sociedade.

A dificuldade de contestação não é, porém, nem o único nem o mais importante elemento da legitimação. Uma teoria não pode ser somente complexa e abrangente, ela tem que se tornar plausível social e biograficamente. Assim, na próxima e última seção deste capítulo, discuto de que forma essa realidade objetiva, construída e legitimada, é compartilhada e internalizada no processo de socialização.