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Apresentação da sua história de vida

4 RESULTADOS: ENTREVISTAS, APRESENTAÇÃO DAS RECONSTRUÇÕES

4.1 A RECONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA DE ALINE

4.1.2 Apresentação da sua história de vida

Quanto ao interesse de apresentação de Aline durante a entrevista, este está voltado predominantemente à intenção de apresentar-se como uma boa mãe, dedicada ao cuidado e ao bem-estar dos seus filhos. Devido ao seu histórico de abuso de drogas na adolescência, estendendo-se até a vida adulta, Aline busca durante a entrevista trazer “provas” e argumentos de que está “limpa”, ou seja, de que não usa mais nenhuma substância tóxica que pudesse comprometer a sua vida e a de seus filhos. Ela traz diversos temas durante a entrevista que demonstram estar relacionados tanto de forma direta ao seu interesse de apresentação como também de forma indireta. Os temas trazidos por Aline que possuem uma relação direta com a sua apresentação foram: “a relação com a sua mãe”, “sua introdução passiva no consumo e abuso de drogas”, “o fim do consumo”, “a perda dos filhos”, “os maus-tratos sofridos pelos

filhos no abrigo”, “o retorno dos filhos”, “eu como mãe”, entre outros. Já os temas que apresentam ter uma relação indireta foram: “a catação e o consumo”, “a minha relação com a vila”, “a minha relação com a família do meu marido”, “generosidade” e “a minha relação com amigas e vizinhas”. Resumidamente, foram esses os temas que mais apareceram na entrevista de Aline.

No que tange ao tipo de texto, Aline tende a utilizar argumentações durante toda a entrevista, seja na fase inicial, na qual fala sobre a sua história de vida de forma autônoma, seja na fase de aprofundamento dos assuntos trazidos por ela na fase inicial. Durante a fase inicial, Aline faz uso de alguns relatórios, ou seja, narrativas pouco detalhadas, e isso na frequente combinação com argumentos.55 Somente na fase de aprofundamento da entrevista é que ela começa a produzir narrativas, em geral, para falar de acontecimentos de grande impacto biográfico, como a morte do pai ou o início da sua relação com o marido. Segundo Rosenthal56, o uso de textos argumentativos pode estar indicando a tentativa de o entrevistado manter o controle daquilo que é dito e apresentado. Nesse sentido, é de se questionar o que Aline busca controlar na sua entrevista e por quê. Tanto o campo temático, que estrutura a entrevista de Aline, como as dinâmicas de enquadramento poderão contribuir para entender a busca de controle pela entrevistada durante a interação. No caso de Aline, além do controle de apresentação do que é dito, ela demonstra passar por um processo de compreensão de experiências biográficas, que ainda lhe causam muito sofrimento, como, por exemplo, a relação com sua mãe ou o afastamento dos filhos.

Ao analisar a forma como Aline estrutura a sua fala na fase inicial da entrevista, pude observar que ela inicia descrevendo o número de filhos da mãe, ou seja, a existência de quatro mulheres e um homem. Logo em seguida, ela começa a falar sobre a mãe e sua relação com ela e sobre sua relação com os filhos, tema esse que domina a fase inicial da entrevista, assim como a fase de aprofundamento do primeiro encontro. Quando ela começa a falar da relação dos filhos com a mãe, Aline usa o provérbio “a dor ensinou a gente a gemer” (p. 1, linha 16/I Encontro). No sentido popular, essa expressão significa o fato de que a dor ensina a viver e conviver com as adversidades, ou seja, que se aprende a viver com a vida. A meu ver, em palavras sociológicas, tal expressão poderia indicar que se aprende a interagir e viver em sociedade pela socialização. O sentido, porém, que essa expressão pode ter para a biografia de

55

Mais detalhes sobre os tipos de texto, ver Rosenthal (2017, p. 294-295).

56 Informação obtida em seminário na Universidade de Göttingen, na Alemanha, em 7 de novembro de 2017 por Débora Rinaldi.

Aline, creio que só será possível entender após a compreensão de como Aline estrutura a sua apresentação.

No que diz respeito às diferentes fases da vida, Aline inicia falando sobre a infância, possivelmente por influência da entrevistadora, que pede que ela fale sobre a sua vida desde o nascimento. No decorrer da entrevista, Aline traz diversos temas, sem seguir as fases da vida, infância, adolescência e fase adulta, de forma cronológica, e sim as mesclando de forma, aparentemente, arbitrária. O que estaria fazendo, porém, Aline ao iniciar a sua fala pela infância? Biograficamente são inúmeras as possibilidades. No caso de Aline, ela se volta aos irmãos e a sua relação com a mãe. A fala é inteiramente negativa e foi formulada, especialmente, de forma argumentativa, como podemos observar na passagem que segue:

“A gente é, somo entre quatro filha mulher e um filho homem, minha mãe tem quatro filha mulher e um filho homem, então como a minha mãe é muito festera ela saía e deixava as criança com a gente. Desde pequeno a dor ensinou a gente a gemer né, a gente tinha que sair pra gente comer, a gente saía para pedir né, daí a gente já tinha que sobreviver né, de alguma forma, porque ela só dava polenta pra gente com cidrozinho, polenta com cidrozinho e a gente não aguentava mais né, porque tudo que era dinheiro ela pegava e saía pra beber [...]” (p. 1, linhas 14-20/I Encontro).57

Ao falar da mãe, Aline traz temas como maus-tratos, sofrimento coletivo em relação a ela e aos irmãos, promiscuidade, negligência, privação, violência física e psicológica.58 Esses temas são abordados tanto para falar de experiências com a mãe na infância como na adolescência. Nas falas sobre a vida adulta, a mãe pouco aparece, com exceção de situações ocorridas recentemente. Ela fala pouco sobre seu pai e demonstra ter tido pouco contato com ele. No entanto, as falas sobre ele são sempre positivas e surgem somente em relação à mãe. Aline classifica o vínculo com a mãe, de forma manifesta, porém controlada, como “não muito bom” (p. 1, linha 25/I Encontro) ou fala da falta do vínculo de mãe e filha (p. 25, linha 6/I Encontro). O que mais chama a atenção na fala de Aline sobre a mãe é o fato de que ela é predominantemente negativa, há somente uma passagem, e muito curta, na qual Aline traz um adjetivo de sentido positivo em relação à mãe, ela diz que a mãe “não é boba”, ou seja, ela é

57 Os trechos sublinhados nas falas são destaques meus. 58

Segundo Silva, Coelho e Caponi (2007, p. 96), a violência física seria a tentativa ou ocorrência de dano pela força física, ou por arma ou instrumento que pode causar lesões internas e externas. Já violência psicológica pode ser compreendida como “toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. Inclui: ameaças, humilhações, chantagem, cobranças de comportamento, discriminação, exploração, crítica pelo desempenho sexual, não deixar a pessoa sair de casa, provocando o isolamento de amigos e familiares, ou impedir que ela utilize o seu próprio dinheiro. A violência psicológica pode levar rapidamente à violência física.

experta (p. 17, linha 17/I Encontro). Em algumas passagens, Aline tende a comparar a si mesma como mãe com a sua própria mãe, como mostra a seguinte passagem:

“[...] até hoje eu tô com 26 anos, eu não esqueci, eu olho pra ela, eu não consigo ter aquele vínculo de mãe pra filha como eu tenho com meus filhos, cada vez que eu olho para ela, eu me lembro o que ela fazia pra gente, esse é o momento ruim que eu tenho. Até hoje eu guardo isso aí comigo. Tudo que meus filhos querem comer eu deixo os meus filho comer, seu eu não tiver dentro de casa, eu vou lá no bar e pego, eu dou para eles, eu deixo de comprar uma coisa pra mim pra comprar pra eles. A coisa que ela não fez pra gente, que a gente queria tanto que ela fizesse né e ela não fez, isso aí é muito ruim”

(p. 25, linhas 5-19/I Encontro).

Nesse sentido, argumento que a fala de Aline sobre a mãe durante a entrevista apresenta, no nível manifesto, a relação entre mãe e filha, mas no nível latente, a comparação do que é ser mãe. Por que Aline faz isso? Por que ela precisa se comparar com sua mãe e por que o tema “ser mãe” é assim tão relevante? Na seguinte passagem, Aline reclama de uma recente crítica realizada pela mãe em relação ao dinheiro e aos filhos:

“[...] cada vez que ela vem na minha casa, ela quer dinheiro pra comprar maconha e eu mal arrumo pra mim e pra os meus filho né, então não tá certo eu dar pra ela né se eu tenho que sobreviver com pouco vou cuida dos meus filho, só que ela acha ruim né, ela tava criticando esses dia, ela veio aqui e pergunto se eu levava os meu filho pro curso, só que eu falei pra ela que curso não é lugar de filho, o curso que eu tô fazendo não, é lugar de eu tá lá, meus filho tá no projeto no colégio, chegam só às seis horas [...]” (p. 1,

linhas 26-32 /I Encontro).

Essa crítica aparece nos primeiros minutos da entrevista. No dia a dia, ela aparenta ocorrer com frequência, pois Aline usa a expressão “cada vez”. Poderíamos substituir essa expressão por “toda a vez” e a frase não mudaria o sentido: “[...] toda vez que ela vem na minha casa, ela quer dinheiro [...] só que ela acha ruim [...]”. Alguns meses após a entrevista de Aline, pude conversar com a assistente social que a acompanhou durante dois anos, a qual me relatou, sem que eu mencionasse nada, que a relação de Aline com a mãe era conturbada e que Aline se sentia muito criticada por ela, principalmente devido ao acolhimento dos filhos. Aline fala muito pouco de forma manifesta sobre as críticas da mãe e muito menos sobre o possível sofrimento que essas críticas lhe causam. No entanto, de forma latente, as críticas já apareciam na infância e na adolescência através de atos violentos e humilhantes, como a raspagem do seu cabelo ou o dia no qual a mãe lhe colocou para fora de casa com seu filho na frente dos vizinhos.

Aline não demonstra somente se incomodar com as críticas da mãe, e sim com as críticas da sogra, do sogro, da filha caçula, das amigas, das vizinhas, ou seja, da “vila” (lugar onde mora), assim como das instituições do Estado. Durante a entrevista, Aline alega ter sido muito criticada pelas amigas na época que abusava de drogas e teve os filhos acolhidos. Quando fala da relação ambivalente com a sogra (Aline fala tanto de forma positiva como negativa da sogra), Aline reclama muito de um episódio no qual ela lhe chama, de forma pejorativa, de “nega” e das tentativas da sogra e do sogro de se envolverem na criação de seus filhos, dizendo como Aline deveria educá-los. De fato, Aline retrata muitos episódios nos quais foi criticada ou se sentiu criticada. Especialmente a seguinte passagem, na qual Aline fala sobre as críticas que recebeu dos agentes públicos envolvidos no dia do acolhimento dos seus filhos traduz, a meu ver, as consequências comportamentais que uma experiência desse tipo pode causar:

“[...] Foi eu tava dentro daquele quartinho ali com as criança, que eu só tinha aquele quarto daí, eu tava deitando quando me chega um oficial de justiça e uma viatura da polícia, a minha filha59 era pequenininha, ela tava mamando e eles pegaram e levaram

ela. Aí o outro não sabia o que era e eu desesperada e o brigadiano abusado [...] quando vocês disseram que eu era uma merda, uma friorenta que eu era drogada, agora eu sou gente, agora tu vai entrar na minha casa e você vai ver [...]” (p. 45-46, linhas 26-29; 6-

8/I Encontro).

A partir da perspectiva da psicologia de viés comportamental, é possível sustentar que tais experiências possam ter levado ao desenvolvimento de baixa autoestima, insegurança em relação as suas capacidades como filha, como mãe, como mulher, entre outros papéis sociais, os quais pressupõem, inevitavelmente, reconhecimento social para que possam seguir sendo praticados sem maiores complicações (PAPALIA; OLDS; FELDMANN, 2006). Aline demonstra, em geral, ter dificuldade de lidar com críticas, sejam elas de menor ou maior impacto. Geralmente, demonstra reagir de forma agressiva em situações conflitivas, mas esse aspecto não estará somente relacionado às experiências com críticas como também àquelas experiências de violências física e emocional sofridas com a mãe e confirmadas nas relações sociais cotidianas dentro da vila, entre os moradores e, especialmente, entre os moradores e o tráfico de drogas.

Ao retornar à análise da estrutura da entrevista de Aline, pude observar que ela realiza uma ligação entre a infância de maus-tratos e de sofrimento em relação à mãe com a catação. Aline diz ter começado a catar aos oito anos de idade, alegando que ela e os irmãos tinham

que comer comida do lixo para sobreviver. Assim, a primeira experiência com a catação, realizada ainda na infância com a mãe, é retratada de forma negativa, embora Aline verbalize em todo o primeiro encontro, bem como até um pouco mais da metade do segundo encontro, que gosta muito de catar, falando predominantemente de forma positiva sobre a catação. Tal aspecto pode ser explicado a partir das possíveis dinâmicas de enquadramento que se manifestam durante a entrevista com Aline.

O acompanhamento de Aline e de sua família nuclear por instituições da Assistência social se iniciou aproximadamente entre os anos de 2009 e 2011.60 Nesse sentido, partindo de teorias sociológicas da socialização, como a de Berger e Luckmann (2014), as experiências vivenciadas com a instituição da assistência social, assim como com os órgãos fiscalizadores dos direitos da Criança e do Adolescente na cidade de Porto Alegre, como o Conselho Tutelar, as Promotorias e os juízes da Vara da Criança e do Adolescente, causaram efeitos sobre sua socialização. Durante aproximadamente os últimos dez anos, Aline vem buscando enquadrar-se às exigências e expectativas sociais dos agentes envolvidos, no intuito de recuperar a guarda dos seus dois primeiros filhos. Fazem parte desse processo a incorporação e a padronização de conhecimentos típicos, necessários para o cumprimento da ação. Além da experiência institucional realizada devido ao acolhimento dos filhos, Aline e o marido fazem parte do grupo de catadores afetados pela Lei n. 10.531, que restringe o uso de carrinho e carroça pela zona urbana de Porto Alegre. Em virtude da lei, o casal passou a integrar, ao final de 2015, o programa “Todos Somos Porto Alegre”, responsável pela inclusão dos catadores em novas oportunidades de trabalho. Nesse sentido, como funcionária desse Programa, passei a fazer parte da rede social de Aline e de outros catadores. A defesa da atividade pelos catadores perante os funcionários do Programa fazia parte da nossa rotina de trabalho, postura esta que também pude observar na fala de Aline durante a maior parte do tempo de entrevista. Aline fala de forma positiva sobre a catação durante aproximadamente as três primeiras horas.

Quando fala sobre a catação, e isso de forma autônoma, Aline é seletiva, restringindo- se aos benefícios da atividade, como a obtenção de bens e renda, dando destaque principalmente ao consumo. Tais aspectos podem ser observados na seguinte passagem:

“[...] é muito bom trabalhar com lixo tudo, que eu tenho dentro da minha casa tudo é do lixo. A única coisa que eu comprei pra dizer que eu não comprei, comprei essa televisão aqui, comprei por cento e cinquenta real, fui buscar [...] com o meu padrasto [...] e comprei um rádio por cinco pila [...] e o telefone que eu comprei por trezentos real, meu telefone novo, que eu tenho que pagar no dia do curso, eu achei dois no lixo né, dois

60 Nenhuma das fontes consultadas, a própria Aline e uma das assistentes sociais que a acompanhou durante dois anos, pôde me passar essa informação com precisão.

igual ao teu assim ó, só que daí um deles tava com a tela preta e o outro tava trancando, aí eu vendi lá na frente pro vizinho por trezentos real. Quando a gente ganha coisa demais, quando eu vejo que eu gosto de uma coisa, eu arrumei uma estante, essa estante eu vou dar pra minha sogra, ela não tem né, daí eu vou pegar aquela estante pra mim, aí quando a gente vê que tem móveis demais, aquela geladeira lá é duzentos e vinte, eu não vou dar uma geladeira né porque, eu posso vender muito bem e comprar coisa pro meus filho, compra material [...]” (p. 11, linhas 1-26/I Encontro).

Analisando a passagem acima, bem como as demais passagens que tratam do mesmo tema, argumento que Aline vê na entrevistadora uma representante típica das instituições de especialistas com os quais vem lidando nos últimos dez anos, assumindo uma fala positiva e cuidadosa sobre a catação. Esse enquadramento explicaria, portanto, o uso de trechos mais argumentativos, sucintos, nos quais busca manter controle do que é dito, como forma de legitimar o seu trabalho e, em especial, do marido, uma vez que estão perdendo gradativamente o direito de circular de carroça pela zona urbana da cidade. Já ao final da entrevista, Aline demonstra sentir-se mais à vontade para falar abertamente sobre a catação comigo, de tal modo que verbaliza, de forma inesperada, que prefere que o marido saia para catar, alegando que nos últimos tempos tem sentido vergonha de realizar a atividade. Eis a passagem:

“[...] eu gosto muito quando ele traz, não gosto de sair catando na rua.

Entrevistadora (E): tu não gosta.

Aline (A): ah eu tenho vergonha, depois de uns tempo pra cá eu fiquei com vergonha,

antes eu gostava, vamo sair de carroça vamo, é comigo mesmo [...]” (p. 29, linhas 30-

34/II Encontro).

Além da catação, o seu interesse de apresentação como “boa mãe” e suas falas predominantemente argumentativas sobre a perda dos filhos, o tratamento das drogas e o retorno dos filhos poderiam ser explicados por esse enquadramento da situação de entrevista. O tema sobre a guarda e o retorno dos filhos é um dos principais temas da entrevista de Aline. Ele está presente quase que durante todas as quatro horas de entrevista e está fortemente relacionado com os demais temas trazidos por ela. De forma sucinta, antes de entrar no campo temático da entrevista com Aline, gostaria de apresentar alguns aspectos da sua fala sobre os filhos.

A fala sobre o acolhimento dos filhos aparece na metade da fase inicial da entrevista, na qual Aline estrutura sua fala de forma autônoma, sem a interferência do entrevistador. Tal aspecto pode estar indicando certo êxito por parte dela em tocar no assunto. Embora eu conhecesse um pouco Aline, eu não sabia que ela havia tido os filhos acolhidos nem sabia que

já havia passado por tratamento devido ao abuso de drogas. A fala sobre os filhos aparece após Aline relatar como começou a perder o controle do uso de drogas, sob a influência de uma vizinha. Toda a fala é realizada em forma de relatório/argumentação, um tipo de texto no qual narrativas com poucos detalhes se confundem com argumentações, uma vez que relatórios são, nesse caso, instrumentalizados como argumentos (ROSENTHAL, 2017). De forma geral, Aline apresenta sua história de vida como uma história de sofrimento, embora se possa perceber momentos nos quais ela retrata sucesso e superação, como quando compara a sua vida atual com a passada. No contexto de uma história de sofrimento, Aline demonstra transferir, com frequência, a culpa por suas experiências negativas a terceiros. Observo que essa terceirização da culpa ou a tendência à vitimização surge como forma de lidar com a própria culpa pelo acolhimento dos filhos. A seguinte passagem traduz um pouco essa tentativa de terceirização:

“[...] e essa guria me convidou pra fumar maconha com mescrado [...] mas até então eu não sabia o que era isso daí, pra mim era maconha com alguma coisa diferente e aí na mesma hora eu fumei aquilo ali e eu queria mais, mais, mais, mais e mais, aí eu morava lá [...] eu vim de lá [...] pra cá e ela disse, não é pra ti pegar e passar a dor que tu sente a decepção que tu tá grávida, o pai do teu filho foi preso, não sei o que, mas antes eu fumava, eu tinha bolinhos e bolinhos de maconha dentro de casa, mas eu nunca tinha fumado isso aí, aí foi a perdição, perdi meus filho pro conselho, conselho veio na minha casa, meus filho ficaram quase quatro ano longe de mim [...]” (p. 3, linhas 10-25/I

Encontro).

Biograficamente, existem muitas possibilidades de um indivíduo retratar uma fase da vida ou uma experiência na qual a sociedade lhe mostra que algo não está sendo feito dentro da expectativa, que essa sociedade possui sobre aquela experiência. No caso de Aline, um importante exemplo é a maternidade. O acolhimento dos filhos aparenta representar para Aline o atestado de má conduta como mãe. No nível manifesto, Aline tende a se eximir de