• Nenhum resultado encontrado

A causa no período medieval

No documento Guilherme Fontes Bechara.pdf (páginas 41-43)

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA

2.3 A causa no período medieval

Conquanto tenham os romanos abordado o assunto, é a partir do esforço dos glosadores de harmonizar passagens desconexas do Corpus Iuris Civilis que surgiu o início da primeira sistematização do que pode se chamar de teoria da causa.95,96

A ascensão do cristianismo e sua influência no direito medieval é de suma importância para o desenvolvimento do estudo da causa no campo contratual. Dentre diversos dogmas católicos embutidos no pensamento jurídico, ganha destaque o respeito à palavra dada e a consequente necessidade de cumprir o que se prometeu, ainda que de forma exclusivamente verbal.97

O dogma do respeito absoluto aos pactos afrontou o formalismo romano em matéria contratual, ainda que tal formalismo tivesse sido mitigado ao longo da evolução histórica do próprio direito romano.

A influência católica trouxe outro elemento importante para o desenvolvimento dos estudos sobre a causa no período medieval. Esse elemento é a retomada da filosofia aristotélica e, dentro dela, a teoria das quatro causas, a qual induziu diversas ideias relacionadas ao campo das obrigações e dos contratos. Assim, a causa eficiente influenciou a concepção sobre a igualdade e reciprocidade das obrigações, a causa material inspirou o estudo sobre os requisitos da licitude, possibilidade e determinabilidade do objeto do negócio jurídico, a causa formal provocou o princípio da liberdade formal e a causa final, que direcionou a concepção de causa contratual aqui analisada.98

Fato é que o abandono do formalismo romano e a aceitação da obrigatoriedade dos pactos ditos desnudos, desprovidos de forma, abriram espaço para o desenvolvimento do estudo sobre a causa contratual. Deixou-se de analisar o negócio somente em função de forma para apreciar seu conteúdo, perquirindo-se, assim, a vontade dos contratantes e as razões que os levaram a celebrar o contrato.

95

PENTEADO, Luciano de Camargo. Doação com encargo e causa contratual. Campinas: Millenium Editora, 2004, p. 63.

96

“Os juristas medievais continuaram a elaboração romanística, e a eles se deve, em muito, o conceito atual de causa. Sob a influência do método e conceitos escolásticos, e convictos de que o Digesto era algo completo e perfeitamente concordante, começaram a elaborar um sistema, do qual emergiu a moderna ciência do direito”. COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 47. 97

MARTIN-CORDOVA, Tomas de Zumalacarregui. Causa y abstraccion causal en el derecho civil español. Tesis Doctoral. Madrid: Centro de Estudios Hipotecarios, 1977, p. 41-42.

98

Deve-se aos canonistas, pois, a noção de que o fim seria mais importante do que a forma de uma obrigação. A força obrigatória do contrato, então, residiria nesse fim, que seria a própria causa.99

A transição do formalismo romano para a finalística canônica é assim sintetizada por Castro Y Bravo:

Esta doctrina, al atender a lo que em conciencia obliga, perturba el esquema romanista. En una doble y opuesta dirección: atribuyendo plena eficacia jurídica a las simples promesas y atendiendo ilimitadamente al significado moral de la causa. Se parte de la premisa de que toda promesa vale u obliga ‘secundum canone’; pues, se dice, que lo mismo que el juramento obliga también la palabra dada (‘loquelan nostram’), ya que como en el uno ha de haber perfidia ‘en vuestras palabras no debe haber mentira’. Con lo que la afirmación de que cualquier promesa quedaba vestida, al ser corroborada con juramento, pierde importancia, al considerarse obligatoria cualquier promesa. A la máxima de los civilistas, de que los pactos nudos no obligan, se opondrá entonces la afirmación de los canonistas de que: ‘pactus nudus obligat’. De otro lado, se ponteciará al máximo el valor de la causa: así, se codena la usura, se consideran rescindibles los contratos en que se sufre lesión o en el que precio no es justo, y se condenan los contratos com causa ilícita o inmoral.

En esta dirección, se llega a decir que, según el Derecho Canónico, el contrato innominado carecerá de causa sin ‘una prestación equitativa” (Baldo), y a que se piense no basta una causa civil para la obrigatoriedad de promesa, sino que además se requiere una ‘causa natural’. Esta consideración exclusiva o principalmente moral de los pactos, lleverá también a que por algunos se concluya que su obligatoriedad debería decidirse por la jurisdicción eclesiástica. El juramento, por su parte, solo podría ser relajado por la autoridad eclesiástica, no siendo obligatorio el prestado ‘contra bonos mores’. Las promesas hechas sin juramento, habrían tambíen de juzgarse ‘secundum canone’, y en general se añadirá que la validez de los contratos debería de dilucidarse entonces in ‘foro ecclesiatisco’ según la doctrina de la ‘denuntiatio evangelica’.100

Luciano de Camargo Penteado, no entanto, entende que o direito canônico privilegiava a causa impulsiva e não a causa final. Segundo o autor, procurava o direito canônico conferir maior relevância ao conteúdo do ato e à causa impulsiva, ou seja, o motivo que levou à contratação. Ausente a causa impulsiva ou mesmo ilícito o motivo, negava-se eficácia ao ato, se bem que sua validade permanecesse intacta.101

99

MARTINS-COSTA, Judith. A teoria da causa em perspectiva comparativista: a causa no sistema civil francês e no sistema civil brasileiro. Asjuris, 45/213-2245, ano XVI, mar. 1989, p. 218.

100

CASTRO Y BRAVO, Frederico de. El Negocio Juridico. Reimpressión. Madrid: Editorial Civitas, S.A., 1997, p. 170.

101

PENTEADO, Luciano de Camargo. Doação com encargo e causa contratual. Uma nova teoria do contrato. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 67-68.

Antonio Junqueira de Azevedo levanta, ainda, outro aspecto relevante do direito medieval que teria influenciado a sistematização dos estudos sobre a causa contratual. Esse aspecto, segundo o autor, seria a indagação feita pelos juristas da Idade Média sobre a causa da juridicidade dos atos humanos, ou, especificamente, a causa que faria surgir o vínculo obrigacional entre os contratantes. E a resposta, segundo o autor, conforme mencionado no capítulo precedente, é dupla: a própria natureza das coisas geraria a obrigação, sendo natural o fundamento da obrigação ou, por outro lado, o ato humano da convenção celebrada entre as partes – seja pelo consenso, seja pelo cumprimento das formalidades -, de modo que, na segunda hipótese, o fundamento da obrigação não seria natural, mas sim civil.102

Essa indagação, na visão deste trabalho, relaciona-se com a retomada da filosofia aristotélica pela escolástica durante o período medieval. Ao retomar-se as quatro causas aristotélicas, indaga-se a razão da obrigação, principalmente seu nascedouro e sua finalidade. A causa natural e a causa civil decorrem da resposta sobre a causa eficiente do vínculo obrigacional.

De toda forma, a partir da diferenciação entre a causa natural e a causa civil, entende Luciano de Camargo Penteado que começa a se delinear uma construção teórica mais sistemática ao redor da causa.103

Esse delineamento culmina com a teoria desenvolvida pelo francês Jean Domat, tido como precursor do estudo sistemático da causa.

No documento Guilherme Fontes Bechara.pdf (páginas 41-43)