• Nenhum resultado encontrado

Causa e consideration

No documento Guilherme Fontes Bechara.pdf (páginas 119-124)

3 A CAUSA DOS CONTRATOS

3.6 Distinção de causa e figuras afins

3.6.4 Causa e consideration

Por fim, é necessário estabelecer a relação e a respectiva distinção entre a causa e a consideration, esta última instituto originário da Common Law.

Segundo Fabio Siebeneichler de Andrade, é difícil precisar o início da teoria da consideration, uma vez que sua construção foi fruto de soluções judiciais, tendo sido desenvolvida pouco a pouco, assim como outros institutos da Common Law.347

A despeito da dificuldade, o autor pondera que a noção inicial de consideration envolveria a bilateralidade da troca patrimonial, ou seja, na vantagem para um dos contratantes e no consequente decréscimo patrimonial do outro fundado na vontade contratual (promessa) das partes.348

346

BIANCA, C. Massimo. Diritto Civile. V. III. Il Contratto. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1998, p. 420. 347

ANDRADE, Fabio Siebeneichler de. Causa e consideration. Revista da Ajuris, v. 53, p. 276-284, ano XVIII,

nov.91. Porto Alegre: Ajuris, p. 280.

348

“Na noção clássica de consideration, ela está ligada sempre à noção de promessa ou de atribuição patrimonial. Então, ela consistiria sempre numa vantagem ou compensação para o promitente ou num sacrifício

Vislumbra-se, então, que a noção clássica de consideration relaciona-se, de certa forma, com a causa de atribuição patrimonial, a qual, como visto, não se confunde com a causa do negócio jurídico.

Também se relaciona com a doutrina da mutualidade das obrigações, a qual é bem definida por John D. Calamari e Joseph M. Perillo:

The doctrine of mutuality of obligation is commonly expressed in the phrase that in a bilateral contract ‘both parties must be bound or neither is bound’. But this phrase is an over-generalization. The doctrine is not mutuality of obligation; rather it is mutuality of consideration. In essence, this means if one party to a bilateral contract has not suffered detriment, neither party is required to perform. The point is that if B’s promised performance is not consideration, B may not enforce A’s promise. Conversely, A may not enforce B’s promise even though A has suffered detriment because ordinarily this would not be fair. 349

Fundados nesse racional, os mesmos autores, anteriormente, estabelecem que a noção clássica de consideration abarca três elementos concomitantes: (i) o promissário deve sofrer detrimento legal; (ii) o detrimento deve nortear a promessa e (iii) a promessa deve nortear o detrimento.350

correspondente (perda, limitação, risco, responsabilidade), suportado pelo destinatário. Como já se afirmou, deve provir do destinatário da promessa, deve ser provocada por uma promessa, ou por um pedido seu.” (Ibidem, p. 281.)

349

Tradução livre: “A doutrina da reciprocidade das obrigações é comumente expressa na frase que, em um contrato bilateral 'ambas as partes devem ser obrigadas, ou nenhuma é obrigada a. '. Mas esta frase é uma supergeneralização. A doutrina não representa a reciprocidade de obrigações; pelo contrário, é a reciprocidade de

consideration. Em essência, isto significa que se uma das partes de um contrato bilateral não sofreu prejuízo,

nenhuma das partes é obrigada a cumprir o contrato. O ponto é que se o cumprimento contratual prometido por B não é consideration, B não pode executar a promessa de A. Inversamente, A não pode executar a obrigação contratual de B ainda que A tenha sofrido prejuízo porque ordinariamente isso não seria justo.” CALAMARI, John D. e PERILLO, Joseph M. Contracts. Second edition. St. Paul: Wes Publishing Co., 1990, p. 163.

350

“A promise which is not supported by consideration or its equivalent is not enforceable. For a promise to be supported by consideration, three elements must concur: (a) The promisee must suffer legal detriment – that is, do what the promisee is not legally obligated to do; or refrain from doing what the promisee is legally privileged to do; (b) The detriment must induce the promise. The promisor must have the promise in exchange, at least, in part, for the detriment to be suffered by the promisee; (c) The promise must induce the detriment. This means, as indicated above, that the promisee must know of the offer and intend to accept”. Tradução livre: “Uma promessa que não é suportada por uma consideration ou seu equivalente não é exequível. Para uma promessa de ser apoiada por uma consideration, devem concorrer três elementos: (a) o promissário deve sofrer detrimento legal – ou seja, fazer o que o promissário não é legalmente obrigado a fazer; ou abster-se de fazer o que o promissário legalmente tem o privilégio de fazer; (b) o prejuízo deve induzir a promessa. O promitente deve ter a promessa em troca, pelo menos, em parte, para o prejuízo a ser sofrido pelo promissário; (c) a promessa deve induzir o detrimento. Isso significa que, como indicado acima, o promissário deve saber da oferta e pretender aceitá-la.” Ibidem, p. 148.

Contudo, o mais relevante aspecto da consideration, desde a noção clássica até os dias atuais, é sua qualidade de requisito para que o contrato ganhe força obrigatória e seja passível de execução forçada em juízo.351

A noção clássica de consideration sofreu alteração com a evolução dos tempos, notadamente a partir do final do século XIX nos Estados Unidos da América. A noção de que a consideration deveria encerrar detrimento e benefício aos contratantes deu espaço à noção de que a consideration poderia ser tudo aquilo que fosse negociado, barganhado pelas partes. A noção foi abarcada pelo Restatement of Contracts, promulgado nos Estados Unidos em 1933, e ratificada pelo Restatement Second, no qual a barganha é definida como aquilo que é concedido pela parte em contrapartida de sua promessa.352

Segundo Allan E. Farnsworth, o advento da noção de barganha trouxe duas consequências: a primeira, de tornar inexequíveis alguns contratos até então exequíveis, haja vista que, em determinadas situações, a contratação não prescinde de barganha. A segunda, e talvez, em nossa opinião, a mais relevante, foi a de tornar a noção de consideration menos valorativa ou axiológica, na medida em que a análise da justiça do conteúdo do contrato foi afastada para dar espaço à análise do processo atravessado pelas partes para a formação do vínculo contratual. Ainda de acordo com o autor, esse racional modelava-se à tendência norte- americana do século XIX de livre iniciativa econômica e valoração da criatividade do indivíduo.353

Diante da conceituação acima proposta, verifica-se que a noção atual de consideration não guarda relação com a noção de causa do contrato. Como visto, a causa está relacionada à razão prática do contrato, evidenciada pelo regulamento dos interesses dos agentes do negócio.

Não se vislumbra, assim, vínculo entre a causa do contrato e a consideration, muito embora, como visto, a noção clássica da consideration tivesse relação com a causa de atribuição patrimonial.

351

“Consideration has long been the doctrine used to distinguish between promises that are legally enforceable

and those that are not. (In the simplest terms, contracts supported by consideration are judicially enforced, while those lacking consideration are not).” Tradução livre: “Consideration tem sido a doutrina utilizada para

distinguir as promessas que são legalmente exequíveis e aquelas que não o são (Em termos simples, contratos suportados por consideration são exequíveis em juízo, enquanto aqueles que não são suportados por

consideration não o são).” SCOTT, Robert E. e LESLIE, Douglas L. Contract Law and Theory. Second edition.

Charlottesville, Virginia: The Michie Company Law Publishers, 1993, p. 109. 352

FARNSWORTH, E. Allan. United States Contract Law. Revised Edition. United States of America: Juris Publishing, 1999, p. 73-74.

353

No entanto, a despeito das considerações acima, menciona-se interessante julgado da United States Discrict Court, Southern District of New York, datado de 1930, contemporâneo, assim, à mudança de perfil da consideration.

Discutiu-se no caso a presença de consideration em determinado caso concreto. O caso versava sobre o pleito de execução contratual formulado por uma mulher contra a massa falida de um indivíduo354, fundado em pretenso contrato por eles firmado. A requerente e o falido mantiveram relacionamento extraconjugal e, no âmbito de seu relacionamento ilegal, celebraram ajuste pelo qual o falido comprometeu-se a (i) pagar à requerente a quantia de US$ 1.000,00 enquanto durasse a união do casal; (ii) contratar apólice de seguro de vida em benefício da requerente no valor de US$ 100.000,00, ficando o falido obrigado a pagar tal quantia à requerente caso deixasse de manter a apólice vigente e (iii) pagar, pelo período de quatro anos, o aluguel da casa que a requerente havia alugado. Em contrapartida, a requerente pagaria ao falido a quantia de U$ 1,00 e ‘outras boas e valiosas contrapartidas’. Em primeira instância, a pretensão foi acolhida, tendo ascendido o caso à instância superior.355

A instância superior reverteu a decisão por entender ausente a consideration na hipótese, visto que a quantia de US$ 1,00 seria nominal e não teriam sido demonstradas as “outras boas e valiosas contrapartidas”. No entanto, a despeito do resultado do caso, o que chama atenção para os efeitos deste estudo é que, no corpo do julgado, há menção à ilegalidade de acordos destinados à coabitação ilícita decorrente de relações adulterinas por imoralidade do propósito. O seguinte trecho ilustra bem a análise feita pelo Judiciário no propósito objetivo dos contratantes, inocorrente no caso específico analisado356:

354

De acordo com o direito norte-americano, especificamente o Bankruptcy Code, a falência é remédio adequado à proteção de pessoas insolventes, inclusive indivíduos: “Bankruptcy Code §109 focuses on whether a debtor is of a type for whom bankruptcy relief is appropriate. Section §109 limits potential debtors under the Bankrutpcy Code to a ‘person’ defined by §101(41) to include individuals, partnerships, and corporations – who ‘resides, or has a domicile, a place of business, or property in the United States’, and to municipalities.” Tradução livre: “O artigo 109 do Código de Falência foca em saber se o devedor é é uma pessoa para a qual a proteção falimentar á adequada. O artigo 109 limita potenciais devedores abrigado ao Código de Falências a “pessoa”, definida pelo artigo 101(41) de forma a incluir indivíduos, sociedades e corporações que residam ou tenham domicílio, local de negócios ou propriedade nos Estados Unidos e nos municípios.” ADLER, Barry E., BAIRD, Douglas G. e JACKSON, Thomas H. Bankruptcy: cases, problems and materials. Fourth edition. Nova Iorque: Foundation Press, 2007, p. 55.

355

O precedente é citado na obra de SCOTT, Robert E. e LESLIE, Douglas L. Contract Law and Theory. Second edition. Charlottesville, Virginia: The Michie Company Law Publishers, 1993, p. 113.

356

Ibidem, p. 113-114. Tradução livre: “Um contrato para futura coabitação ilícita e ilegal. Há consideration presente em tal caso, mas a lei invalida o contrato por sua imoralidade. Williston on Contracts, § 174. Aqui, a relação ilícita havia sido desfeita anteriormente à feitura do contrato, de modo que a regra acima não é infringida. Esse caso é um daqueles em que o motivo que levou o falido a celebrar o contrato no qual o pleito é baseado foi a ilícita coabitação pretérita entre ele e a autora. A lei diz que uma promessa de pagar uma mulher em razão de coabitação que tenha terminado é nula, não por ilegalidade, mas por ausência de consideration. A

[...]

IV. A contract for future illicit cohabitation is unlawful. There is consideration present in such a case, but the law strikes the agreement down as immoral. Williston on Contracts, § 1745. Here the illicit intercourse had been abandoned prior to the making of the agreement, so that the above rule is not infringed. This case is one where the motive which led the bankrupt to make the agreement on which the claim is based was the past illicit cohabitation between him and the claimant. The law is that a promise to pay a woman on account of cohabitation which has ceased is void, not for illegality, but for want of consideration. The consideration in such a case is past. The mere fact that past cohabitation is the motive for the promise will not of itself invalidate it, but the promise in such a case, to be valid, must be supported by some consideration other than past intercourse. Willinston in

Contracts §§ 128, 1745.

Portanto, mesmo que de forma isolada, verifica-se a preocupação do direito norte- americano com a causa, ainda que, na hipótese, a noção utilizada pelo julgado aproxime-se da noção subjetiva da causa. Na hipótese de a causa do contrato residir em coabitação ilícita futura, ainda que haja consideration, o contrato será considerado ilegal por ser imoral, nos termos do precedente acima citado. No entanto, se a causa for coabitação ilícita que já tenha se encerrado, tal causa não invalida o contrato, exigindo-se, contudo, a presença de consideration, que não pode ser a mera coabitação passada.

Aproxima-se, a decisão, da ideia de causa como mecanismo limitador da autonomia privada.

Contudo, tal preocupação, externada no precedente e na regra nele mencionada, não afasta as considerações anteriores sobre a ausência de relação da causa do negócio jurídico com a consideration da Common Law, notadamente a praticada nos Estados Unidos da América.

invalide por si só, mas a promessa, em tal caso, deve ser suportada por alguma consideration outra que a relação pretérita. Willinston in Contracts §§ 128, 1745.”

No documento Guilherme Fontes Bechara.pdf (páginas 119-124)