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3.1. Caracterização do açúcar de cana como produto orgânico

3.1.1. A certificação

O acesso aos mercados consumidores de açúcar orgânico, como qualquer produto orgânico, se dá exclusivamente por meio da certificação. A certificação orgânica é uma auditoria independente, feita por um terceiro agente (que não é produtor e não é consumidor), custeada

pelo produtor, que realiza vistorias in loco e acompanha todo o processo produtivo, garantindo a obediência a determinados padrões previamente estabelecidos e de domínio público. A entidade certificadora, verificando a conformidade com os padrões, autoriza a utilização de seu selo ou certificado, indicando o produto como orgânico, o qual poderá ser reconhecido pelo consumidor como uma garantia da obediência às exigências da produção orgânica.

A certificação orgânica não pode ser atestada por características visíveis do produto final, pois se refere aos métodos e processos de produção, que são impossíveis de serem detectados pelo consumidor no contato direto com o produto final. A certificação orgânica constitui, assim, uma forma de agregar valor ao produto através do aumento da confiança do consumidor no produtor, pela intervenção de uma terceira parte, que teoricamente fiscaliza o produtor “em nome” do consumidor. Os produtos orgânicos são, por isso, classificados por alguns economistas como “bens de confiança” (SOUZA, 2000; FARINA;REZENDE, 2001).

Os prêmios de preço que o consumidor deve pagar por essa “garantia de confiança” em relação aos preços do produto convencional devem ser suficientes para cobrir os custos do processo de certificação, os aumentos dos custos de produção e, ainda, suficientes para estimular o produtor a investir na conversão de seu sistema produtivo.

Conseguir o selo junto a uma certificadora de produtos orgânicos não garante, no entanto, o acesso aos mercados orgânicos do mundo. É necessário, por sua vez, que as entidades certificadoras sejam credenciadas por organismos internacionais que estabelecem os padrões “básicos” internacionalmente aceitos para certificação de produtos como orgânicos. Atualmente existem dois esquemas internacionais desse tipo que credenciam certificadoras e publicam padrões “básicos” que servem de roteiro para a elaboração das normas e esquemas nacionais de certificação orgânica: o IFOAM (International Federation of Organic Agriculture Movements) e o CODEX (Comissão da FAO/OMS para o Codex Alimentarius).

O IFOAM iniciou-se como uma federação de movimentos de agricultura orgânica, tendo como membros mais de 750 organizações de mais de 100 países, mas atualmente assumiu o caráter de fórum padronizador das normas para o comércio mundial de alimentos orgânicos e credenciador de certificadores, através do IOAS - IFOAM (International Organic Accreditation Service). Publicou seus primeiros padrões básicos em 1998. Em 2000 seus padrões foram revisados e uma nova versão foi publicada. A Comissão do Codex Alimentarius incluiu no conjunto das suas normas gerais para alimentos as “Diretrizes para a Produção, Processamento,

Rotulagem e Comercialização de Alimentos Produzidos Organicamente”, aprovadas em sua sessão de junho de 1999. Recentemente a International Organization for Standardization (ISO) reconheceu o IFOAM como parte do corpo internacional de elaboradores de normas e padrões e convidou a entidade para participar da elaboração de normas ISO específicas para produtos orgânicos (GEIER, 1999).

Influenciados por esses esforços de harmonização de padrões e normas para certificação orgânica em nível internacional, cada país teve e continua tendo, entretanto, seu próprio processo diferenciado de incorporação dessas normas à sua legislação nacional.

Nos Estados Unidos, conforme vimos no capítulo I dessa dissertação, após 10 anos de discussões que provocaram grandes polêmicas com a comunidade de agricultura orgânica, as novas normas do Programa Orgânico Nacional do USDA (NOP) entraram plenamente em vigor em outubro de 2002. Apesar do NOP estabelecer pela primeira vez definições claras sobre a produção orgânica, o IFOAM criticou duramente o governo americano por limitar o poder da comunidade orgânica de garantir no futuro a confiança nos padrões estabelecidos (BULLARD, 2000).

Apesar da enorme influência do IFOAM como garantidor dos selos orgânicos junto aos mercados e movimentos orgânicos, os governos, tanto dos Estados Unidos como da Europa recusaram-se a dar-lhe status legal. Mesmo trabalhando com os mesmos critérios e padrões, obrigaram as certificadoras a um penoso e duplicado processo de credenciamento. Esta estratégia indica os governos garantiram para si o poder de, no futuro, divergir dos critérios hoje internacionalmente aceitos (BARRET;BROWNE et al., 2002).

Na Europa, o movimento de agricultura orgânica é muito mais antigo e tem muito mais influência política que nos Estados Unidos. Assim, os primeiros regulamentos para a produção orgânica estabelecidos no âmbito do Conselho Europeu entraram em vigor em 1991 (Regulation EEC Nº 2092/91) vinculando a legislação de todos os países membros. Em agosto de 1999 foi publicada uma nova normatização abrangendo a produção animal orgânica (Regulation EEC Nº 1804/99). Alguns países que adotaram as normas européias como base de suas regulamentações nacionais foram reconhecidos e listados como aprovados com qualidade equivalente à EEC 2092/91 pelo artigo 11(1) obtendo facilidades aduaneiras, entre eles Austrália, Hungria, Israel, Suíça e Argentina (BARRET;BROWNE et al., 2002).

A Argentina é, na América Latina, o país onde mais se desenvolveu a agricultura orgânica, sendo que muitos analistas avaliam que contribuiu para isso o fato de haver uma regulamentação clara da produção orgânica estabelecida desde 1992. Costa Rica também já possui regulamentos estabelecidos, enquanto que Paraguay, Chile e Brasil ainda estão em processo de consolidação de suas normatizações nacionais (LERNOUD, 2002).

No Brasil o governo federal publicou no D.O.U. em 19/05/1999 a Instrução Normativa nº 07 do Ministério da Agricultura e do Abastecimento que estabeleceu normas para produção, tipificação, processamento, envase, distribuição, identificação e certificação da qualidade de produtos orgânicos de origem animal ou vegetal. A IN 07/99 criou também um Órgão Colegiado Federal e órgãos correlatos estaduais para credenciamento de entidades certificadoras. Até o momento nenhuma entidade completou o processo de credenciamento a nível federal (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E DO ABASTECIMENTO, 1999).

As normas brasileiras não estão consolidadas e as certificadoras enfrentam um cipoal de caminhos burocráticos. Essa situação é ilustrada anedoticamente pelo coordenador do Órgão Colegiado Federal num evento franco-brasileiro sobre os desafios da cadeia orgânica, promovido pela organização CenDoTec em 29/11/2001 em São Paulo-SP, que apresentou um desenho do fluxograma para o credenciamento de certificadoras junto ao órgão que precisou de 10 páginas para ser apreciado integralmente, tamanha sua complexidade (PEREIRA, 2001).

Na avaliação de um entrevistado, membro de uma entidade certificadora, a normatização brasileira, em termos da história do movimento de agricultura orgânica no Brasil, significou uma mudança de postura do governo, até então muito voltado aos produtores de commodities da agricultura convencional. No entanto, esse mesmo entrevistado avalia que:

“As normas brasileiras editadas na IN 07/1999 já estão desatualizadas. Quem estiver usando-as, não estará apto a exportar os seus produtos. Uma adaptação das normas brasileiras às internacionais faz-se urgente. Somente assim o Brasil poderá, no futuro, fazer acordos bilaterais de comércio internacional para orgânicos. Cada vez mais adentram no mercado brasileiro produtos ditos orgânicos sem certificação. Cada vez mais existem certificadoras que operam seguindo critérios próprios, sem aterem-se ao rigor mínimo exigido. Por razões ainda não esclarecidas o uso do termo orgânico e o selo orgânico ainda não está sendo autorizado pelo Ministério da Agricultura às empresas que estão investindo em produção orgânica de origem animal, já causando desestímulo e prejuízos ao setor”.

Recentemente, vários dos principais representantes do setor orgânico no Brasil estiveram reunidos na APEX, a agência governamental para promoção das exportações, para uma discussão

sobre os desafios das exportações de produtos orgânicos, cujas conclusões estão relatadas no site da agência (grifo nosso):

“Para o grupo, falta uma política mais eficaz e diretrizes nacionais para o setor, além importantes melhorias na área de normatização, o que dificulta a organização da produção e comercialização, já que a situação da normatização brasileira não é compatível com a dos principais países importadores de produtos orgânicos. O setor diagnosticou também na reunião, que está, como um todo, ainda desorganizado e despreparado para atender adequadamente a grande e crescente demanda internacional.

O grupo reconhece a falta ou deficiência na comunicação, acesso à informação e articulação entre os agentes da cadeia produtiva e de comercialização. Outra discussão foi a inexistência de um banco de dados, mapeamento e de uma central de informações e serviços. Também foi ressaltado que a oferta brasileira dos produtos orgânicos infelizmente ainda é limitada para maioria dos produtos. As barreiras discutidas, somada à falta de uma entidade nacional ou comissão nacional que represente efetivamente os interesses do setor, coloca os produtos orgânicos brasileiros numa posição desvantajosa em relação aos principais países fornecedores, nossos concorrentes, e também em relação às necessidades do mercado interno” (APEX, 2002).

O Instituto Biodinâmico - IBD, a principal e mais influente entidade certificadora brasileira, iniciou seus trabalhos de certificação em 1999, mas já atuava como movimento de agricultura biodinâmica há muitos anos no Brasil. Com sede em Botucatu-SP o IBD, em virtude de suas ligações com o movimento Antroposófico, fundado por Rudolf Steiner na Alemanha dos anos 20, conseguiu angariar muito respeito entre as entidades orgânicas principalmente européias, sendo credenciado junto ao IFOAM, ao DAR (Deutscher Akkreditierungs Rat) para a Alemanha, ao JAS (Japan Agriculture Standard) e mais recentemente também junto ao NOP-USDA para o mercado norte-americano. O IBD certifica vários projetos com cana-de-açúcar tanto de usinas como Univalem de Valparaíso-SP, Albertina de Sertãozinho-SP e Goiasa de Goiatuba-GO, como de pequenos produtores de açúcar mascavo.

As outras duas entidades certificadoras que atuam junto a usinas de açúcar são grandes entidades internacionais que no ano de 2001 recrutaram profissionais brasileiros para abrirem escritórios de representação local.

A FVO, Farm Verified Organics foi escolhida pela Usina São Francisco – USFRA de Sertãozinho-SP, devido a seu poder de influência junto ao mercado norte-americano. O presidente da FVO, Fred L. Kirschenmann, foi até pouco tempo membro do Conselho Nacional de Padrões para Produtos Orgânicos (NOSB), órgão estabelecido pelo OFPA (Organic Food

Production Act) de 1990 e coordenado pelo departamento de agricultura do governo norte-

americano USDA, encarregado da elaboração das Normas para Produtos Rotulados como Orgânicos. Recentemente a FVO abriu um escritório de representação no Brasil localizado em

Recife-PE, mas que ainda não assumiu tarefas de fiscalização junto à USFRA, estando estas a cargo da equipe matriz norte-americana.

A ECOCERT, com grande tradição na França e influência por toda a Europa, foi escolhida mais recentemente pela USFRA para certificar seus produtos junto ao mercado europeu. A ECOCERT inaugurou sua sede brasileira em Porto Alegre em janeiro de 2001 e abriu escritórios em Florianópolis e São Paulo e tem desenvolvido atuação numa ampla gama de produtos orgânicos produzidos no país.

A usina Univalem também certificou seu açúcar orgânico junto ao Greenpeace, através do escritório brasileiro, no entanto, esta certificação não visava credenciamento junto a mercados orgânicos, sendo apenas um reforço de marketing à sua marca Zucc de açúcar orgânico para o mercado doméstico (de consumo final).

No processo de certificação, primeiramente o produtor certifica uma determinada área da propriedade, para poder certificar o produto agrícola, o processamento industrial e por fim a destinação final do produto, que deve ter sua rastreabilidade garantida por toda a chamada “cadeia de custódia”. Assim, a certificação orgânica, coerente com os princípios holísticos que lhe deram origem, exige a implantação de um completo sistema de gestão orgânica, que deve abranger todo o processo produtivo até o consumo final.

O açúcar de cana orgânico, portanto, é produzido somente a partir da cana-de-açúcar orgânica, a qual por sua vez só pode ser produzida em área agrícola previamente certificada para sua produção.

A certificação de uma área agrícola deve obedecer normas relativas ao tempo de conversão. Esse período de “quarentena” entre o fim da exploração convencional e o início da autorização para que os produtos produzidos nessa área pelo sistema orgânico possam ser certificados como tais, varia conforme a regulação nacional do mercado de destino. Por exemplo, para a cana-de-açúcar, os Estados Unidos exigem 4 anos de conversão; a Alemanha, 3 anos de conversão; Japão e Brasil, 2 anos de conversão. É possível, no entanto, certificar uma área de cana orgânica já no primeiro ano de implantação desde que fique comprovado que anteriormente não tenha sido utilizada com aplicação de defensivos ou fertilizantes químicos, como ocorre na incorporação de áreas de pastagem ou em pousio prolongado.

Segundo (GUTHMAN, 2000, p.341) um dos objetivos implícitos da regulação sobre a certificação orgânica, construindo legalmente barreiras à entrada e criando escassez relativa, é a

sustentação dos prêmios de preço para os alimentos orgânicos. Enquanto uma parte desse prêmio pode refletir aumentos de custos “reais” pelo fato do produtor orgânico estar internalizando externalidades negativas, a parte que sobra é por definição uma renda. Esta outra parte do prêmio de preço, sendo uma renda, é mais efêmera: tanto estimula novos entrantes, como está sujeita a ser transferida a outros atores dentro da cadeia de suprimento ou a ser eliminada em períodos de intensa competição. Assim, a base econômica da certificação orgânica, como um instrumento de “governança privada” ou “regulação através de mecanismos de mercado” põe em ação mecanismos que, inevitavelmente, empurram os produtores a intensificar sua produtividade por área e por unidade de trabalho. Isto é, a certificação orgânica, como mecanismo de mercado, está também sujeita às leis capitalistas da maximização dos lucros.

Os mecanismos de criação de barreiras à entrada via regulação da certificação orgânica se expressam principalmente nos diferentes períodos de conversão exigidos, quando o produtor, mesmo arcando com os custos do sistema orgânico, fica impedido de auferir os prêmios de preço.

Outro mecanismo importante é a inclusão ou exclusão, muitas vezes arbitrária, de substâncias químicas na lista de insumos permitidos. A “ênfase no insumo”, característica das regulações da certificação orgânica permite que, via mecanismos legais, sejam criados ou destruídos mercados de novos produtos orgânicos. Como, por exemplo, ocorreu com a permissão para o uso de pó de enxofre nas plantações de uva e do nitrato de sódio nas saladas mistas semi- processadas na Califórnia, provocando um boom desses mercados orgânicos (GUTHMAN, 2000).

Outro mecanismo de criação de barreiras à entrada é a exigência de documentação do histórico da área, que implicitamente cria grande favorecimento aos proprietários. O produtor não-proprietário, além do baixo estímulo de realizar investimentos na melhoria do solo de outro, depende inteiramente da boa vontade do proprietário para fazer frente às exigências documentais da certificação, tornando a empreitada virtualmente impossível.

Podemos dizer que, de maneira geral, o processo de certificação de produtos orgânicos no Brasil tem conseguido garantir a colocação do açúcar orgânico brasileiro no mercado orgânico internacional e doméstico, mas esse processo apresenta variáveis que não podem ser desprezadas pelos produtores, tais como as que listamos a seguir, inspiradas nas considerações de (JOLLY, 2002):

1. A crescente disputa entre os órgãos oficiais e os organismos privados de certificação pelo monopólio da confiança do consumidor, pode levar a mudanças na avaliação de mercado dos selos escolhidos, exigindo, para escolha dos selos, um conhecimento profundo do ambiente econômico e da política orgânica do mercado de destino, que varia de país para país, inclusive tendo em conta os conflitos entre as normas do país de destino com as normas domésticas;

2. Não existem, até o momento, normas específicas relacionadas à produção de açúcar, as quais inclusive permitem, embora os mercados geralmente não aceitem, o uso de vários compostos químicos de uso controlado principalmente para o processo de clarificação. Essa permissão teve como motivo uma tentativa de não inviabilizar a produção de açúcar de beterraba orgânico com qualidade aceitável pelo mercado, já que uma série de produtos químicos utilizados no seu processamento, tais como o ácido sulfúrico, o carbonato de sódio e o isoproponal hidróxido de sódio, são facilmente eliminados no processamento do açúcar de cana e não podem ser eliminados no processamento do açúcar de beterraba.

O açúcar, lembremos, é um produto “mal visto” por grandes parcelas dos consumidores de produtos orgânicos ou naturais, podendo esta ausência de normas específicas para o açúcar significar brechas para alterações, o que aumenta a incerteza quanto ao futuro;

3. O crescimento rápido da demanda pode trazer para o mercado um grande número de produtores, certificadores, traders e distribuidores que ampliarão a gama de variação de exigências sobre processos de produção, níveis de qualidade e segurança quanto à presença de contaminantes. Essa maior variabilidade de exigências pode, no futuro, minar a confiança nos selos e padrões para o açúcar;

4. No médio prazo, com o possível crescimento das linhas de produtos orgânicos processados, a confiança do consumidor no açúcar orgânico se fará principalmente por meio da confiança no produto final processado onde o açúcar entra como ingrediente, sendo que, além da confiança nos selos e regras de certificação, passam a ser determinantes as exigências e especificações próprias dessas indústrias;

5. No momento, não há informações sobre o impacto dos adoçantes naturais certificados como orgânicos derivados de amido de cereais como substitutos do açúcar (seja de cana ou de beterraba) como insumo industrial. Mas não se pode descartar que alterações nos processos tecnológicos permitam, em breve, a predominância de mercado de alguns desses substitutos do açúcar orgânico. Essa seria uma tendência esperada, decorrente da pressão da indústria

processadora, que já faz uso desses substitutos convencionais, em sua entrada no mercado orgânico.