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4. T RAMITAÇÃO PROCESSUAL

4.2. O DESPACHO INICIAL

4.2.5. A CESSAÇÃO ANTECIPADA

53 autorizá-la no despacho inicial ou posteriormente, sempre a requerimento do devedor porque não conhece oficiosamente das suas circunstâncias pessoais e familiares237.

Ora, a partir desta possibilidade de ressalva de outras despesas em momento posterior, desde que provada a sua superveniência, a jurisprudência abriu caminho para uma eventual alteração do rendimento disponível, superando o argumento do caso julgado do despacho inicial. Assim, ainda que fique vedada a alegação e consideração de factos conhecidos à data do despacho inicial, o devedor sempre poderá alegar uma alteração superveniente dos pressupostos atendidos para a fixação do rendimento disponível238. Uma vez que o período de cessão é suficientemente largo para permitir alterações na vida e nas necessidades do devedor e do seu agregado, permite-se uma interpretação conjugada com o art. 619.º-2 do CPC para atender ao agravamento superveniente e imprevisto das despesas relevantes para o sustento minimamente digno do devedor que devam ser excluídas da cessão239.

Na prática judiciária são frequentemente alegadas situações de alteração da composição do agregado familiar, seja por nascimento de um filho ou por morte de um elemento familiar240. Poder-se-á incluir situações que atinjam a capacidade de gerar rendimento do próprio devedor, como a degradação das condições laborais (por perda de subsídios, prémios ou redução do horário de trabalho) ou despedimento sem justa causa241, mas também situações em que o rendimento existente deixa de ser suficiente para o sustento básico do agregado em virtude do aumento do custo de vida (pelo crescimento da taxa de inflação ou dos preços de bens essenciais).

54 supervenientemente um comportamento indevido do devedor que lhe retire a dignidade para obter a exoneração242 (n.ºs 1 a 3) ou (ii) logo que se verifique a satisfação integral dos créditos sobre a insolvência (n.º 4). Enquanto a primeira situação corresponde a uma sanção pelo incumprimento das regras da exoneração243, a segunda provoca a inutilidade superveniente da lide porque, em rigor, deixa de existir passivo restante suscetível de exonerar244.

O conhecimento oficioso do juiz está limitado à situação em que se mostram integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência, ainda que o devedor e o fiduciário (mesmo sem competências de fiscalização245) possam requerer o encerramento do incidente com esse fundamento (n.º 4 do art. 243.º). Nos restantes casos, para interromper antecipadamente o procedimento de exoneração, os credores da insolvência (independentemente do valor da dívida246), o administrador de insolvência (se ainda estiver em funções) ou o fiduciário (se incumbido pelos credores de competências de fiscalização ao abrigo do art. 241.º-3247) terão de provocar o conhecimento pelo juiz com fundamento nas causas tipificadas nas als. do n.º 1 do art. 243.º.

A cessação antecipada funciona contra o devedor, impedindo o acesso deste ao perdão final das dívidas remanescentes, pelo que o ónus de alegação cabe aos legitimados já indicados, enquanto factos impeditivos (art. 342.º-2 do CC), devendo oferecer a respetiva prova logo no requerimento sob pela de preclusão do pedido de cessação248. Visa-se, essencialmente, evitar prejuízos para os credores, o que corresponde a dizer que cabe a estes, direta ou indiretamente (através do fiduciário com poderes de fiscalização), o ónus de alegação e prova da má-fé do devedor249.

242 LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito…, p. 351.

243 LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código..., p. 868.

244 ASSUNÇÃO CRISTAS, “Exoneração…”, p. 173, e LUÍS CARVALHO FERNANDES/ JOÃO LABAREDA, Código..., pp. 868-869. Defendendo a manutenção do procedimento de exoneração em caso de existência de outras dívidas (não reclamadas e verificadas no processo de insolvência) que possam vir a ser exigidas posteriormente face ao efeito exoneratório do art. 245.º-1, v. ANA PRATA/JORGE MORAIS CARVALHO/RUI SIMÕES,Código…, pp. 673-674.

245 LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código..., p. 869 e ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um Curso…, pp. 553-554.

246 ANA FILIPA CONCEIÇÃO, La insolvencia…, p. 536.

247 Apontando para incompreensibilidade da solução, tendo em conta o papel do fiduciário e as causas que justificam a cessação (e a revogação), v. LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código..., p. 868.

248 Pretende-se que o juiz decida rapidamente, sem atrasos com posteriores diligências probatórias [in ANA PRATA/JORGE MORAIS CARVALHO/RUI SIMÕES,Código…, p. 675].

249 ANA FILIPA CONCEIÇÃO, “Disposições…”, p. 59.

55 O requerimento de cessação também deverá incluir prova demonstrativa da tempestividade do pedido, uma vez que a lei impõe a sua apresentação no prazo de 6 meses a contar do momento em que o legitimado teve ou poderia ter conhecimento da causa invocada250, sempre limitado pelo prazo de cessão. No espírito de eficácia dos mecanismos de perdão de dívidas trazido pela Diretiva sobre Reestruturação e Insolvência, o legislador nacional teve de equilibrar este limite processual com a redução do período de cessão para 3 anos, optando por encurtar o prazo para apresentação do requerimento de cessação antecipada de 1 ano para metade.

Nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 243.º, a cessação antecipada pode ocorrer com fundamento na violação dolosa ou com culpa grave de alguma das obrigações do devedor durante o período de cessão (art. 239.º-2 e 4), desde que prejudique por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Segundo a al. b), a cessação antecipada ocorre por verificação ou conhecimento superveniente de algum dos fundamentos de indeferimento liminar previstos nas als. b), e) e f) do n.º 1 do art. 238.º251, funcionando quase como um segundo controlo da legalidade252. Por ser o momento onde o juiz conhece dos fundamentos do art. 238.º-1, a superveniência é aferida por referência ao despacho inicial253, podendo ser objetiva (pela verificação posterior dos factos) ou subjetiva (pelo conhecimento posterior dos factos)254. Assim, por exemplo, o incidente é encerrado antecipadamente se transitar em julgado

250 LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código..., p. 868 e ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um Curso…, p. 553.

251 ASSUNÇÃO CRISTAS, em congruência com o disposto no art. 246.º-1 quanto à revogação, afasta a ideia de taxatividade do elenco de causas de cessação antecipada ao apontar para uma interpretação extensiva, de forma que a cessação também ocorra com fundamento nas als. b) a g) do n.º 1 do art. 238.º [in

“Exoneração…”, p. 171]. Em sentido discordante, CATARINA SERRA entende que é o normativo da revogação que merece uma leitura mais restritiva por referência à norma de cessação antecipada [in Lições…, pp. 573-574]. Concorda-se com a primeira autora porque se a lei permite o mais a final também o deve permitir antes, caso contrário o conhecimento posterior de um elemento que possa ser reconduzido às als. c) ou d) durante o período de cessão não se coaduna com o requisito processual do n.º 2 do art. 246.º (prova do desconhecimento até ao trânsito em julgado do despacho de exoneração), ficando o credor sem espaço para alegar a má-fé do devedor e o seu desconhecimento anterior não imputável. Em relação à al.

g), note-se que o incidente de exoneração pode correr em paralelo com o processo de insolvência, se este seguir para liquidação, não contando para o tempo deste face à al. e) do n.º 1 do art. 230.º.

252 JOSÉ GONÇALVES FERREIRA, A exoneração…, p. 98.

253 LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código..., p. 867 e LUÍS M.MARTINS,Recuperação…, p. 157.

254 ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um Curso…, p. 556. O conhecimento do requerente tem de ser superveniente porque, caso contrário, se já existia à data do despacho liminar, não se poderia ter conformado com a prolação deste, reagindo por meio de recurso (art. 14.º).

56 uma condenação do devedor pelos crimes previsos na al. f) do n.º 1 do art. 238.º após o despacho inicial255.

Por último, se for aberto incidente de qualificação da insolvência que conclua pelo apuramento de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, a cessação antecipada ocorre por força da al. c) do n.º 1 do art. 243.º. Neste caso, a própria sentença de qualificação da insolvência como culposa será a causa da cessação do procedimento, pressupondo a verificação de dolo ou culpa grave ao abrigo do art. 186.º256. ANA FILIPA CONCEIÇÃO diz-nos que o conhecimento direto e oficioso da qualificação da insolvência não dispensa apresentação de pedido de cessação com base nesse facto257.

O requerimento de cessação fundado nas causas das als. a) e b) do n.º 1 do art.

243.º obriga ao contraditório, ouvindo o devedor, o fiduciário (ainda que sem competências de fiscalização) e os restantes credores da insolvência (n.º 3). Segundo CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, a dispensa de audição no caso de cessação com fundamento na al. c) justifica-se porque já existe uma decisão judicial antecedida de contraditório sobre o comportamento do devedor ao abrigo do art. 188.º258.

No entanto, nos termos do n.º 3 do art. 243.º, o procedimento de exoneração cessará sempre, mesmo que sem uma avaliação de mérito sobre o requerimento de cessação, se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer as informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações no prazo que lhe seja fixado ou, quando convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las. Portanto, a falta de colaboração do devedor é automaticamente sancionada com a cessação antecipada259.

Importa frisar que a decisão de cessação antecipada não prejudica os efeitos dos pagamentos realizados durante a vigência do período de cessão, podendo os credores da

255 Ac. do TRC de 18-05-2020, proc. n.º 1078/16.0T8VIS.C1.

256 LUÍS M.MARTINS entende que a remissão para o art. 186.º não permite que o juiz considere outro tipo de culpa [in Recuperação…, p. 158].

257 La insolvencia…, pp. 535-536. LETÍCIA MARQUES COSTA aponta para a perplexidade desta situação, visto que será o próprio juiz (do processo) a proferir a decisão que declara a insolvência como culposa [in A insolvência de pessoas singulares, 1.ª ed., 2021, p. 148].

258 Código..., p. 868.

259 ANA PRATA/JORGE MORAIS CARVALHO/RUI SIMÕES,Código…, p. 675 e ANA FILIPA CONCEIÇÃO,

“Disposições…”, p. 59.

57 insolvência voltar a executar os bens do devedor que estavam destinados à cessão (art.

242.º-1 a contrario)260.

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