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4. MORREDEIRO: PROCESSO DE CRIAÇÃO CÊNICA

4.3 A chegada ao Morredeiro

Apesar da relevância desses primeiros experimentos, ocorridos entre o final de abril e o início de maio de 2018, sentíamos que não havíamos encontrado ainda um elemento que norteasse a criação cênica. Segundo a intuição do Maurício, precisávamos investir na descoberta de um texto que servisse de guia dramatúrgico

para nossas propostas. No encontro que se seguiu, realizamos a leitura de alguns textos que nos interessavam.

Os mais instigantes deles foram as leituras de trechos de A dor, de Marguerite Duras, em que a autora narra a luta de seu marido contra a morte e a decrepitude após o seu retorno dos campos de concentração nazistas; e Tripas, um conto do livro

Assombro, de Chuck Palahniuk. Este último eu já havia tentado ler para ambos, mas

em nenhuma ocasião consegui chegar ao final – tão agressiva é a narrativa, e tamanho é o desconforto físico que causa em meus colegas. Segundo relatos na internet, ao ser lido publicamente pelo próprio autor, na turnê de seu lançamento, o conto teria feito com que mais de cinquenta pessoas desmaiassem30. Narrado em primeira pessoa, Palahniuk conta a história de um adolescente que, ao se masturbar numa piscina, fica preso pelo duto do filtro e precisa arrebentar as próprias vísceras para sobreviver. Trata-se de uma descrição minuciosa e extremamente angustiante. Ainda que não nos interessasse adaptar esse texto para a cena – sobretudo porque na narrativa a situação de risco de morte diz respeito à casualidade de um acidente – foi extremamente provocativo perceber que a escuta de uma história pode ser também uma experiência bastante perturbadora. Ficou evidente então que a situação de risco físico e de morte de um personagem pode perturbar também através da palavra. A partir dessa constatação, nos colocamos o objetivo de experimentarmos perturbar não apenas pelo uso da imagem do corpo ferido, mas também através dos recursos da palavra vocalizada em cena.

Devo considerar ainda que a procura por um texto que pudesse servir de eixo para a criação do espetáculo sempre foi para mim motivo de inquietação, sobretudo porque eu não estava interessado em montar nenhum texto dramático já escrito, e tinha consciência de que a dramaturgia deveria ser construída a partir das descobertas feitas em sala de ensaio. Sou um leitor de literatura bastante assíduo, e desde que o horror se tornou meu interesse de pesquisa, tenho investido muito tempo em leituras e releituras de romances, contos e novelas. Esse trabalho se mostrava mais difícil também porque eu não estava interessado em adaptar nenhum texto mais facilmente reconhecido como literatura de horror.

Após o ensaio das leituras, decidi reler um livro que já conhecia há alguns anos e que até então não havia me dado conta que poderia servir aos nossos propósitos

cênicos: a novela Salão de beleza, do escritor mexicano Mario Bellatin. Narrado em primeira pessoa por um cabeleireiro homossexual e de temperamento inconstante, a história nos apresenta a um salão de beleza convertido em uma espécie de morredeiro – um lugar que abriga os últimos dias de homens vitimados por uma epidemia desconhecida e sem cura. Enquanto administra o lugar, o protagonista vai aos poucos nos dando notícias da degradação física dos seus hóspedes e nos revelando também a sua condição inescapável de contaminado. Após a releitura do livro, experimentei como exercício dramatúrgico transcrever os trechos que mais me interessavam, dando prioridade àqueles que tinham maior potencial de ser transposto para a cena, e ainda inserindo alguns textos curtos que fui escrevendo tendo em vista experimentos já realizados em sala de ensaio, como por exemplo, os vômitos e o canibalismo. Por minha própria conta e risco, levei para o ensaio essa primeira versão, e foi realmente uma surpresa perceber durante a leitura coletiva o interesse que o texto – já totalmente modificado pela minha recriação – despertava em meus colegas.

Pareceu-nos que havíamos encontrado no morredeiro uma justificativa dramatúrgica para criarmos situações de degradação física e de risco de morte, um mote poético para investirmos na espetacularização da morte. O texto abria margem para a investigação de diversos dos nossos interesses: a relação entre beleza e horror, morte e desejo; a personalidade contraditória do protagonista; e principalmente, a possibilidade de trabalharmos o morredeiro como uma alegoria para mortes políticas – um lugar onde pessoas morrem esquecidas pelos poderes públicos –, e dentro desse contexto ainda, abria a oportunidade de causarmos horror pela empatia corporal com a degradação física dos personagens.

Decidimos que não iríamos fazer uma adaptação literal do texto, nem mesmo dessa primeira versão reescrita por mim. Durante todo o processo foi necessário que selecionássemos trechos para trabalharmos, reestruturando constantemente o roteiro de textos e ações cênicas. Definimos desde o primeiro momento que tanto Rossendo quanto eu assumiríamos a figura do narrador-protagonista. Discutimos também a participação do público como os hóspedes do morredeiro. O Maurício chegou a mencionar a possibilidade de convidarmos outros atores ou mesmo usarmos manequins que pudessem representar os corpos dos doentes e dos cadáveres que vão se acumulando no salão. Contudo, sempre defendi a ideia de que somente Rossendo e eu deveríamos assumir essas figuras: sobretudo por possibilitarem

justamente a exploração de uma corporalidade perturbadora pela visualização de corpos que agonizam e se deterioram diante do público.

Em meados de maio de 2018, nos lançamos então a experimentar em nossos corpos os primeiros contatos com esse lugar de morte: iniciamos esse caminho explorando a imagem do salão de beleza. Realizamos improvisações guiadas pelo diretor a partir de ações com um secador de cabelo, ações como lavar e secar o cabelo um do outro, manipular a cabeça do outro pela ação de enxugar, usar a toalha para criar imagens de duplos, e por fim, lavar a cabeça e o corpo do outro como se lhe dedicasse os últimos cuidados antes da morte. Nessas primeiras improvisações com os textos narrados pelo personagem do cabeleireiro, experimentamos o uso do vídeo e projeção ao vivo das imagens – uma prática constante durante o processo. Em algum momento chegamos a ponderar a possibilidade de todas as narrações serem realizadas sob esse recurso, como um signo que definisse o personagem. Mais adiante, ainda nessa tentativa, improvisamos a primeira cena do espetáculo. Eu, particularmente, não estava satisfeito: preferia investir na presença corporal e na sua relação imediata com a plateia.