• Nenhum resultado encontrado

2. A CENA DE HORROR COMO ESPETÁCULO DA MORTE

2.2 A morte tornada espetáculo

Embora o medo da morte constitua-se nosso medo primordial – e a danificação da integridade física a nossa experiência visual mais dolorosa –, é inegável também que, paradoxalmente, assistir à morte alheia manifestou-se ao longo da história da humanidade uma experiência que sempre exerceu sobre o ser humano um estranho poder de atração. Essa atração pela visualização da desgraça alheia, embora histórica – ou talvez por isso mesmo – manifesta-se também no cotidiano de pessoas comuns, em qualquer cena de rua, por exemplo. Sontag assim exemplifica:

Todos sabem que não é a mera curiosidade que faz o trânsito de uma estrada ficar mais lento na passagem pelo local onde houve um acidente horrível. Para muitos, é também o desejo de ver algo horripilante. Chamar tal desejo de “mórbido” sugere uma aberração rara, mas a atração por essas imagens não é rara [...] (SONTAG, 2003, p. 80).

Talvez pudéssemos presumir que, na visualização dos infortúnios do outro, aquele que assiste encontra um certo tipo de prazer moral: não na própria situação da desgraça, mas por saber-se o tipo de gente que se preocupa e se horroriza diante do sofrimento alheio (FEAGIN apud CARROLL, 1999). E talvez ainda o subtexto que perpassa esse espectador seja: “Poderia ter sido comigo!” – e uma satisfação advenha quem sabe do fato de perceber-se são e salvo. De qualquer forma, recorrendo ou não para essas possíveis explicações diante desse fascínio, não podemos deixar de reconhecê-lo, e mesmo de nos perturbarmos diante desse reconhecimento.

Em um sentido mais coletivo, podemos pensar também nas multidões que costumavam acompanhar os rituais públicos de condenações de criminosos, prática bastante comum ao longo da História. Essa performance da violência alcançou

estatuto de espetáculo sobretudo a partir da aplicação das sentenças da Inquisição, na Idade Média, quando as “execuções passaram a ser direcionadas ao observador, às grandes massas que acompanhavam as técnicas de tortura pública como espectadores” (CARLSON apud OLIVEIRA, 2017, p. 59-60). Esse público tornado espectador provavelmente experimentava uma catarse coletiva através desses rituais demonstrativos de punição – a dor infligida aos culpados como representação da justiça alcançada. A aplicação das leis, tanto do estado como da Igreja, na carne e no corpo dos criminosos como uma dramatização para a comunidade, reforçando o controle e as hierarquias de poder. Poderíamos falar então de uma performance de morte porque a ação de morrer – ou a ação de matar – acontecia diante dos olhos atentos de uma plateia. Tratando-se assim de uma espetacularização da morte na medida em que essa performance acontecia tendo como foco satisfazer o olhar sedento dessas plateias.

Esses rituais públicos de execuções capitais tornaram-se uma prática penal disseminada por toda Europa até meados do século XIX – em Vigiar e Punir:

nascimento da prisão, Michel Foucault (2014) identifica o desaparecimento dos

grandes espetáculos de punição física há cerca de apenas 200 anos, quando novos sistemas de penalidade passaram a ser implantados. Até o princípio do século XIX então, o corpo era o alvo principal da repressão penal – e a ostentação dos suplícios constituía-se parte fundamental das penas. Não bastava levar os condenados à morte: era preciso mostrar no corpo supliciado a aplicação das leis através do espetáculo punitivo. E a pena capital compreendia todos os tipos de punição: açoite, mutilação, morte na fogueira, morte na roda, na forca, por esquartejamento, por estrangulamento, etc. – sendo a decapitação na guilhotina considerada a pena dos nobres por reduzir o sofrimento a um único e instantâneo gesto. Tais espetáculos de agonia não acabavam após a morte, previam ainda que os cadáveres fossem exibidos ao público, os corpos arrastados, divididos em postas, expostos à beira das estradas (FOUCAULT, 2014). Foucault não deixa de analisar ainda a participação dos espectadores nesses rituais de mortes públicas.

Nas cerimônias do suplício, o personagem principal é o povo, cuja presenç a real e imediata é requerida para sua realização. Um suplício que tivesse sido conhecido, mas cujo desenrolar houvesse sido secreto, não teria sentido. Procurava-se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado. [...] Nessa cena de terror o papel do povo é ambíguo. Ele é chamado como espectador: é

convocado para assistir às exposições, às confissões públicas ; os pelourinhos, as forcas e os cadafalsos são erguidos nas praças públicas ou à beira dos caminhos; os cadáveres dos supliciados muitas vezes são colocados bem em evidência perto do local de seus crimes. As pessoas não só tem que saber, mas também ver com seus próprios olhos. (FOUCAULT, 2014, p. 58).

Talvez encontrássemos na raiz dessa espetacularização da morte uma predisposição humana para a visualização da tragédia: o olho humano curioso por descobrir as diferentes estratégias usadas pela morte para destruir o corpo do outro, do estrangeiro, daquele que é diferente e que não merece piedade. Podemos conjecturar também que, por nunca conseguirmos dominá-la por completo, nem compreender seus mecanismos, a morte do outro se torna um modo de visualizarmos àquela que nunca poderemos visualizar: a nossa própria morte – pois quando ela finalmente chegar, já não poderemos dar testemunho dessa nossa última experiência.

Os motivos que levam a essa atração diante do sofrimento alheio, sugeridos nesse texto, não são o foco da pesquisa, e certamente estudos antropológicos, psicológicos, sociológicos, etc. podem apontar outras múltiplas explicações17. Contudo, se por um lado os motivos que levam à atração pela visão do sofrimento não são o foco do interesse aqui, por outro mostra-se uma constatação extremamente relevante para pensarmos que tal atração nos levou a transformar a morte em espetáculo – seja na vida real, seja na ficção.