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1 Algo sobre democracia e participação política

1.4 A cidade como um espaço de dominação e lutas

Existem inúmeras diferenças entre os 5.565 municípios brasileiros29, fundamentalmente quando observamos as suas dimensões populacionais, as áreas geográficas, as configurações econômicas, políticas, culturais e sociais, o que Milton Santos conceituou como território, para além da ideia de espaço geográfico, da seguinte forma:

[...] não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o território usado, não território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida (2002, p. 10).

O território em que vivemos é mais que um simples conjunto de objetos mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos; mas é também um dado simbólico. A linguagem faz parte desse mundo de símbolos, e ajuda a criar esse amálgama, sem o qual não podemos falar de territorialidade (SANTOS, 1998, p.61).

Os últimos anos do século XX, de acordo com Santos (2000), testemunharam grandes mudanças no planeta. De certo modo, o mundo unificou-se em virtude das novas condições técnicas, bases sólidas para uma ação humana mundializada. Entretanto, observa Santos, o que se impõe à maior parte da humanidade é uma

globalização perversa. Vê-se a tirania do dinheiro e da informação, fornecendo as bases do sistema ideológico que legitima as ações mais características de nossa época e, ao mesmo tempo, buscam conformar, segundo um novo ethos, as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. Ocorre um desvirtuamento quanto à noção de bem público e de solidariedade, sendo emblemática a redução das próprias políticas sociais do Estado, a ampliação da pobreza e os crescentes agravos à soberania, enquanto se amplia o papel político das empresas na regulação da vida em sociedade.

O palco onde se verifica e se refletem essas dinâmicas é o local onde as pessoas estão, onde vivem, sobretudo nas grandes cidades. Somos, cada vez mais, um planeta urbano. Em nove metrópoles brasileiras moram 50 milhões de pessoas, ou seja, mais do que a população de muitos países (MARICATO, 1996).

Tem-se notado que o processo de imbricação campo-cidade se acelerou nestes últimos tempos. E como mais uma vez diz Santos (1993), o poder público é chamado, nos últimos trinta anos, a exercer um papel extremamente ativo na produção da cidade. Seguindo o movimento geral do sistema capitalista, que consagra concentrações e centralizações, a cidade do capital concorrencial cede lugar à cidade do capital monopolista ou oligopolista. Esta é, cada vez mais, a situação das cidades atuais.

O próprio poder público torna-se criador privilegiado de escassez. Estimula, assim, a especulação, e fomenta a produção de espaços vazios dentro das cidades. Não resolve o problema da habitação, que empurra a maioria para as periferias e empobrece ainda mais os mais pobres. Estes são forçados a pagar caro pelos precários transportes coletivos e a comprar caros bens de um consumo indispensável, além de serviços essenciais que o poder público não é capaz de oferecer. Para Davis (2006, p. 14), noventa e cinco por cento deste aumento final da humanidade ocorrerá nas áreas urbanas dos países “em desenvolvimento”, cuja população dobrará para quase 4 bilhões de pessoas na próxima geração. A população urbana conjunta da China, da Índia e do Brasil já é quase igual à da Europa e da América do Norte.

Além disso, a escala e a velocidade da urbanização do Terceiro Mundo amesquinham completamente a Europa vitoriana. Londres, em 1910, era sete vezes maior do que em 1800, mas Daca (Bangladesh), Kinshasa (Congo) e Lagos (Nigéria), hoje, são aproximadamente quarenta vezes maiores do que eram 1950. E a China, que se urbaniza “numa velocidade sem precedentes na história humana”, somou mais moradores urbanos na década de 1980 do que a Europa inteira (incluindo a Rússia) em todo o século XIX. Todos esses argumentos e análises de Davis e Santos sobre as populações são para ratificar que somos hoje um planeta urbano.

Também é notório que os territórios e as cidades são espaços de relações sociais, de construção da sociabilidade, de convivência, de lutas, de interação e de pertencimento dos indivíduos, famílias e grupos sociais, de expectativas, sonhos e frustrações. São também espaços de disputas, de lutas, contradições e conflitos, expressando os significados atribuídos pelo diferentes sujeitos. Nesse sentido, os territórios são espaços políticos privilegiados. Os territórios são também o terreno das políticas públicas, onde se expressam as manifestações da questão social, revelam a situação social em que se encontram os diferentes grupos sociais. Pode- se dizer que é nesses espaços que as lutas de classe se apresentam com mais plenitude. Sob a égide do capital, este processo reforça a segregação, desigualdade, preconceitos e pobreza existentes.

Castells (1983, p. 45) observa que:

[...] a urbanização ligada à primeira revolução industrial e inserida no desenvolvimento da produção capitalista, é um processo da organização do espaço, que está ligada sobre dois fatores fundamentais: 1) A decomposição prévia das estruturas sociais agrárias e a emigração da população para centros urbanos já existentes (esse fenômeno é perceptível cada vez mais nas cidades hoje), fornecendo a força de trabalho essencial à industrialização; 2) A passagem de uma economia doméstica para uma economia de manufatura, e depois para uma economia de fábrica o que quer dizer, ao mesmo tempo concentração de mão-de-obra, criação de um mercado e constituição de um meio industrial [...].

Santos (2008, p. 129) demonstrou que, entre 1940 e 1980, ocorreu uma verdadeira inversão quanto ao lugar de residência da população brasileira. Neste período, a população ativa agrícola aumenta de 0,0016%, ou seja, praticamente nada, passando de 13,087 milhões para 13,089 milhões. O processo de urbanização conhece uma aceleração e ganha um novo patamar, consolidado na década de 1990. Observa também (2008, p. 130) que a complexa organização territorial e urbana do Brasil guarda profundas diferenças entre suas regiões. Já na década de 1980, é a região Sudeste (estados de SP, RJ, MG, ES) a mais urbanizada, com um índice de 82,79%. A menos urbanizada é a região nordeste (BA, CE, MA, PI, AL, PE, PA, SE, RN), com 50,44% de urbanos, quando a taxa de urbanização do Brasil era de 65,57%. Essas desigualdades são permanentes, embora diversas, segundo os períodos, conforme o quadro abaixo, mas presentes até hoje:

Tabela 1

Taxas Regionais de Urbanização

Fonte: Apud Santos (2008 p.131).

De acordo com dados do quadro, na década de 40, as taxas regionais eram baixas, apresentando pouca diferença entre as regiões, o que muda significativamente na década de 60, apontando a região sudeste mais modernizada, com importantes avanços no processo de urbanização. Já em 1980, todos os índices aumentam, e o sudeste mantém sua predominância.

Santos (2008, p. 131) indica que a diferença entre as taxas de urbanização das várias regiões está intimamente ligada à forma como, nelas, a divisão do trabalho se deu, ou seja, pela maneira diferente como foram afetadas pela divisão interregional do trabalho. Nesse sentido, a situação anterior de cada região tem um peso sobre os processos recentes. Algumas áreas eram de antigo povoamento,

1940 1960 1980

Norte 27,75 37,80 51,69

Nordeste 23,42 34,24 50,44

Sul 27,73 37,58 62,41

servidas por infraestruturas antigas, representativas de necessidades do passado e não respondendo, assim, às vocações posteriores. Pode-se notar que, no nordeste, ainda hoje, existe uma estrutura fundiária desde cedo hostil a uma maior distribuição de renda, a um maior consumo e a uma maior terciarização, o que ajuda a manter na pobreza milhões de pessoas e impede uma urbanização mais expressiva. Por isso, a introdução de inovações materiais e sociais iria encontrar grande resistência de um passado cristalizado na sociedade e no espaço, atrasando o processo de desenvolvimento e urbanização da região.

A partir dos anos 1960, e, sobretudo na década de 70, as mudanças são não apenas quantitativas, mas também qualitativas. A urbanização ganha um novo conteúdo e uma nova dinâmica, graças aos processos de modernização que o país conhece e que explicam a nova situação.

Harvey (2010, p. 68), ao estudar o pós-modernismo na cidade, afirma:

[...] no campo da arquitetura e do projeto urbano, considera o pós- modernismo no sentido amplo como uma ruptura com a ideia modernista de que o planejamento e desenvolvimento devem concentrar-se em planos urbanos de larga escala, de alcance metropolitano, tecnologicamente racionais e eficientes, sustentados por uma arquitetura absolutamente despojada (as superfícies “funcionalistas” austeras do modernismo de “estilo internacional”)[...] Como é impossível comandar a metrópole exceto aos pedaços, o

projeto urbano (e observa-se que os pós-modernistas antes projetam

do que planejam)30, deseja somente ser sensível às tradições

vernáculas, às histórias locais, aos desejos, necessidades e fantasias particulares, gerando grandes formas arquitetônicas especializadas, e até altamente sob medida, que podem variar dos espaços íntimos e personalizados ao esplendor do espetáculo, passando pela monumentalidade tradicional [...].

O que se verifica em Harvey (2010) é que os pós-modernistas se afastam de modo radical das concepções modernistas sobre como considerar o espaço. Enquanto estes olham o espaço como algo a ser moldado para propósitos sociais e,

portanto, sempre condicionado à construção de um projeto social, os pós- modernistas o olham como coisa independente e autônoma a ser moldada segundo objetivos e princípios estéticos que não têm necessariamente alguma relação com qualquer objetivo social abrangente.

Atenta à segregação espacial e social, Caldeira (2000), na perspectiva de compreender o padrão de estruturação da vida pública nas cidades, explicita as várias visões criminalizadoras e moralizadoras sobre a pobreza, aponta que a culpa por tudo o que acontece, nessas visões, é atribuída à população pobre e não à ausência de política de Estado, mesmo que no interior da ordem burguesa. A segregação social no espaço urbano, a partir dos anos 1980, tem gerado espaços privatizados, erguido muros e desenvolvido tecnologia de segurança, impedindo a circulação e a interação em áreas comuns. Ampliam-se o que Caldeira chamou de “enclaves fortificados”, justificados pelo medo do crime e da violência.

1.5 Bairro da Liberdade: caracterização e organização - bairro negro e