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1 – O ESPAÇO E OS HABITANTES: UMA LEITURA DA EXPANSÃO URBANA DO RECIFE NO SÉCULO

QUADRO 1: FREGUESIAS DO MUNICÍPIO DO RECIFE (1855)

2 Santo Amaro de Jaboatão

1.2 A cidade em números: crescimento urbano e demográfico

Se uma cidade não se resume às linhas que a formam, o mesmo se pode dizer dos números. Os dados populacionais podem carecem de conteúdo, uma vez que quase sempre apenas fornecem momentos fixos de uma dada realidade. Entretanto, trabalhar apenas com dados quantitativos de uma população não é tão temerário quanto cunhar dados sobre o consumo de bens culturais, por exemplo. Nesse último caso, alerta Michel de Certeau, as categorias formais terminam por ocultar o que as pessoas realmente fazem com determinados bens45; mas no que tange a dados mais gerais, que dispensam o uso de categorias, o risco de ficar muitas perguntas sem respostas é menor. O único problema (e não é pequeno) é a própria precariedade da elaboração dos dados, o que confere um certo descrédito aos resultados das contagens. Essa era, particularmente, a situação das contagens realizadas no Brasil, em todo o século XIX. Apesar desse problema, as contagens do período fornecem elementos para o cruzamento dos dados disponíveis, o que possibilita uma visualização aproximada do que era realmente a cidade em termos populacionais.

Mas antes de falarmos do número de habitantes do Recife, tentaremos captar a forma da expansão da cidade no século XIX. O Recife constitui um dos principais centros em expansão no século XIX. Essa expansão da cidade tem como marco inicial a abertura dos portos em 1808. O espaço urbano vai ganhando os arredores antes cultivados com a cana- de-açúcar, e dos engenhos emergem alguns bairros da cidade, como Casa Forte, Torre, Engenho do Meio, Madalena, Apipucos e tantos outros.46 Em 1855, arrabaldes como a Passagem da Madalena, Remédios e Afogados, segundo a Câmara Municipal, já tinham suas plantas aprovadas, e “diversos moradores (...) requerem licença para edificar nos mencionados lugares.”47

Todavia, se os arrabaldes vão sendo urbanizados, esse processo é relativamente lento em todo o século XIX, e ocorre de um modo não uniforme. Poder-se-ia pensar que os

45 CERTEAU, Michel. Op. Cit., p. 93.

46 Carvalho, M. J. M. de. Liberdade. Op. Cit., pp. 47-8. Entre 1782 e 1850, “o Recife incorpora a chamada

“várzea do Capibaribe”, isto é, toda a extensão que vai da Boa Vista e da Madalena até Caxangá e a Várzea propriamente dita, subindo o rio e retalhando os antigos engenhos de uma e outra margem em sítios e chácaras, que, por sua vez, sobretudo a partir da década de 1840, serão objeto de loteamento.” p. 68.

MELLO, Evaldo Cabral de. Canoas do Recife: Um Estudo de Microhistória Urbana. In Revista do Instituto

Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. L, Recife: 1978, pp. 67-103.

bairros centrais do Recife, urbanizados mais cedo, foram gradativamente se expandindo pelos sítios e engenhos da Várzea do Capibaribe, que iam sendo loteados para que se erguessem habitações e ruas fossem traçadas. Mas não é assim nessa expansão contínua e ininterrupta como uma sombra. A situação é mais complexa. O crescimento do Recife, segundo Cabral de Mello, se dá de forma ganglionar. Os subúrbios vão surgindo a partir de pequenas povoações relativamente isoladas entre si pelos tufos de matas e sítios ainda existentes. O autor frisa que esse ganglionismo vai persistir mesmo até fins do século XIX. E isso “apesar da democratização do arrabalde e de todo o progresso verificado nas técnicas de transporte”. Em 1874, o engenheiro Fournié, procurando um local apropriado à construção de um asilo para alienados, faz o seguinte comentário: “Quando se passa de Apipucos, encontra-se no trecho entre Apipucos e Caxangá, uma série de colinas completamente cobertas de matas, as quais pertencem a vários engenhos, ainda não loteados (...).”48

A característica ganglionar do crescimento do Recife foi assinalada primeiramente por Josué de Castro. Para Castro, os engenhos foram

os germes desses centros ganglionares de crescimento, atraídos pela força absorvente da cidade-porto, ou melhor, da direção imposta pelo porto (...). Os engenhos, esgotadas as suas possibilidades e extintas as suas lavouras, transformaram-se em sítios ou chácaras (...).49

Castro percebe um ponto capital da urbanização do Recife. Ao mencionar a atração exercida pelo porto, ele inverte a posição do crescimento, que não se dá do “centro” já urbanizado para a “periferia”, mas ao contrário, embora condicionado “pela força absorvente da cidade-porto”.

Já se tornou um consenso que o surgimento dos subúrbios recifenses se deve à difícil conjuntura econômica da cultura da cana-de-açúcar, assolada por uma crise crônica caracterizada não tanto pela incapacidade produtiva, mas pela baixa no mercado internacional dos preços do açúcar, provocada em grande parte pela concorrência externa. Essa conjuntura desfavorável aumenta a disposição dos antigos proprietários em se

48 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit., p. 69. E ainda: Obras Públicas, 17/04/1874, Victor Fournié a Henrique

Pereira de Lucena. Arquivo Público de Pernambuco.

49 CASTRO, Josué de. Fatores de Localização da Cidade do Recife (um ensaio de Geografia Urbana). DF:

desfazerem de suas terras. Evaldo Cabral de Mello aponta que “Em vez de cultivar suas grandes propriedades das cercanias do Recife, estes senhores preferiam “alugar uma pequena porção delas por uma ínfima anuidade” (...)”.50

Os subúrbios, quando estes ainda eram povoados acanhados, com seus sítios e chácaras, ocupam uma função vital ao abastecimento da cidade no século XIX. Para Marcus Carvalho, os antigos engenhos acabaram se tornando celeiros do Recife, devido terem suas terras alugadas para a produção de horticultura.51 Embora não haja estudos acerca do abastecimento do Recife no período, podemos sugerir, com relativa segurança, que o abastecimento de verduras, frutas, leite, azeite e outros gêneros da mesma natureza, que circulavam pelas ruas e mercados, pelas mãos de vendeiras de tabuleiro e quitandeiras, era feito a nível local, nesse contexto de simbiose cidade-campo. Os sítios não distavam muito do centro da cidade, onde havia o foco do comércio, e além disso, muitos deles comportavam alojamentos para escravos e escravas, o que significava a possibilidade de associar a pequena produção ao comércio urbano através das escravas. Alguns senhores de cativas vendeiras foragidas indicavam nos anúncios de jornais um duplo endereço onde deviam ser entregues depois de presas: ou em alguma rua da cidade, ou em algum sítio que possuíam. Fica patente que tais escravas partiam dos sítios de seus senhores para os bairros centrais conduzindo os frutos de uma pequena agricultura e de atividades de criação realizadas no entorno da cidade.52

Flávio Guerra, tratando da origem de alguns subúrbios do Recife assinala o período já de fins do século XVIII, e princípios do XIX como marco do início da desagregação fundiária que originará as povoações. As terras do antigo Engenho Monteiro, no princípio do XIX, já não fabricavam açúcar ou sequer safrejavam, “de modo que as repartidas terras

50 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit., p. 69. O autor cita GRAHAM, Maria. Diário de uma Viagem ao

Brasil. São Paulo: 1956, p. 141, acerca do aumento dos loteamentos em 1821.

51 CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade. Op. Cit., p. 48. O mesmo se pode dizer para o Rio de Janeiro da

mesma época. Segundo Luiz Carlos Soares, verduras, frutas, legumes, aves e ovos eram provenientes de chácaras e sítios situados nos subúrbios fluminenses. E confirma o temos visto para o Recife: “(...) era muito comum que os senhores proprietários de chácaras e sítios deslocassem um ou dois escravos para a venda desses produtos (...).” p. 113. Cf. SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século