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MULHERES, GESTOS, REPRESENTAÇÕES: O TRABALHO E A HONRA

5 OS NÚMEROS DO TRABALHO: NA CASA, NA RUA OU UM MERCADO PARA MUITAS MULHERES

5.1 Portas a Dentro e Portas a Fora

Entre 1840 e 1869, conseguimos coletar para essa classificação o número de 2.289 anúncios, que foram extraídos sempre do mês de março de cada ano. O principal desafio dessa classificação é não interpretar de forma rígida os dados coligidos, pois a historiografia já demonstrou a possibilidade de dupla jornada de trabalho ou o exercício de múltiplos ofícios por uma mesma mulher.329 O serviço doméstico, por exemplo, incluía muito mais que o âmbito da casa, pois cozinheiras podiam ainda comprar para seus senhores ou patrões, ou quem sabe vender em algum momento do dia gêneros comestíveis por elas mesmas cozidos. Mas para maior segurança nos dados, seguimos as noções mais comuns para a época – presentes até mesmo nos anúncios consultados – que postulam ser os ofícios de cozinheira, ama-de-leite, mucama, engomadeira e costureira pertencentes ao domínio do trabalho de portas a dentro. Esta também é a visão de Sandra Graham, embora a autora considere o ofício de lavadeira como pertencente ao caso de domésticas que “saíam às ruas”.330 Concordamos que muitas lavadeiras saíam às ruas, mas para o critério aqui empregado, julgamos os casos em que aparecia a lavagem de roupas como Não Especificados, devido a uma peculiaridade do Recife, com as lavadeiras tanto lavando roupas em rios e açudes (configurando como PF), como lavando roupas nas inúmeras casas possuidoras de quintais com poços ou localizadas em sítios dos arredores do núcleo urbano (configurando praticamente como PD).

As expressões ambíguas (serviço de casa, serviço diário) são responsáveis por muitos dos casos interpretados com NE. Entretanto, quando seguidas de habilidades específicas claramente identificadas, optamos por seguir essas habilidades na classificação à expressão

329 Cf. KARASCH, Mary C. Op. Cit. E DIAS, Maria Odila da Silva. Op. Cit.

330 Idem, p. 51. Sandra Graham subdivide mesmo o serviço doméstico em dois: havendo os ofícios

desempenhados portas a dentro por cozinheiras, amas-de-leite, mucamas, costureiras; e ofícios das domésticas que “saíam às ruas”, que era o caso das lavadeiras, carregadoras d’água e compradeiras.

ambígua. A expressão – muito recorrente – todo o serviço foi interpretada no sentido amplo de serviços internos e externos (PDF), pois se tornou evidente que o significado dessa última expressão era mesmo um desdobramento comum da forma mais ampla “todo o serviço”. Do mesmo modo, ao lado de habilidades como cozinhar muitas vezes se indicava que a pessoa teria de fazer “o mais serviço de uma casa”, expressão essa que amplia o leque de responsabilidades da criada para também sair do espaço doméstico (compras, mandados, buscar água etc.), e então classificamos esses casos como Portas a Dentro e à Fora (PDF). Anúncios em que constava a função de tratar de uma criança foram classificados conforme a idade da criança: se já crescida, com condições de sair à rua para passear, é muito provável que a criada tivesse por função andar com a criança de Portas à Fora (PF) como mostram de forma inequívoca alguns avisos; mas em caso de serem ainda bebês, o tratamento devia constar de cuidados oferecidos dentro dos próprios lares por amas secas (PD); e o anúncio não apontando a idade da criança, preferimos classificá-lo como NE. Quando a tendência geral do anúncio assinalava para a administração geral de uma casa, incluindo muitas vezes a cor branca da pessoa que se oferecia ou era solicitada para esse encargo, interpretamos como PD, pois o status dessa pessoa impunha a necessidade de que outros criados da casa saíssem à rua sob suas ordens, enquanto internamente ela administraria os demais criados/as em seus serviços. Excluímos da amostra todos os anúncios que se referiam a serviços que seriam prestados fora da província por motivos óbvios: seriam serviços prestados em viagens a Lisboa e a outros lugares, em contextos que fogem ao propósito da quantificação aqui empreendida.

A validade dessa classificação reside na observância rígida desses e outros critérios. Ressalte-se aqui a atenção para não incluir na amostra anúncios repetidos, uma vez que a semelhança em sua construção tornava, em muitos casos, apenas o endereço um dos únicos elementos diferenciadores entre eles. A importância dessa abordagem estatística consiste em podermos construir um perfil abrangente das ofertas e das demandas do mercado de trabalho a partir de um importante código cultural do período: as categorias casa e rua. Embora entendendo essas categorias como códigos “fundamentais para a ordem e a vida doméstica”, e “reconhecidas por senhores e criados”,331 fazemos para elas as mesmas

331 Cf. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Op. Cit., págs. 16 e 28; Para a visão sociológica aqui adaptada e

ressalvas de Sandra Graham. Ora, se considerarmos que os significados de segurança e estabilidade (casa) e de insegurança e imprevisibilidade (rua), devem ser associados de forma acrítica a esses espaços, perdemos de vista a idéia bem apontada por Graham segundo a qual os significados convencionais que eles contêm podem ser revertidos ou se tornar ambíguos. A autora nota que, para os criados e criadas, a casa podia significar “um local de injustiça, punição, ou trabalho excessivo, enquanto a rua podia ser procurada como um local de maior liberdade”, assim como os patrões podiam, inevitavelmente trazer “criados desordeiros para os espaços ordenados da casa.”. 332

Não podemos adocicar a vida nos lares patriarcais, pois como notou Sandra Graham, o preço pago por uma suposta segurança (um quarto, vestuário, comida, remédios, proteção contra abusos sexuais pelos homens da rua) seria uma vida de reclusão e obediência à autoridade patriarcal333, que se utilizava sem cerimônia dos chamados “corretivos patriarcais”, um eufemismo de Gilberto Freyre para castigos e violências tanto físicos quanto psicológicos infligidos contra criados e criadas escravos, particularmente as crianças e adolescentes “relapsos ou, segundo a disciplina patriarcal, malcomportados.”.334

rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. E ainda o cap. O

Engenho e a Praça: a Casa e a Rua, In FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos; Op. Cit..

332 Cf. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Op. Cit., p. 16. Seguimos ainda a interpretação de Sueann Caulfied,

segundo a qual as noções de casa e rua são cultural e socialmente dinâmicas. Caulfield argumenta que “perspectivas divergentes sobre “a rua”, não somente entre pessoas de classes, gerações, gêneros e posições

ideológicas diferentes, como também entre indivíduos do mesmo grupo social, geravam uma variedade de conflitos nas relações pessoais, na administração municipal, no cumprimento da lei e na construção da imagem da nação. Uma análise desses conflitos mostra que o dualismo casa-rua não é um sistema cultural homogêneo ou estático. Os valores, práticas e relações associados a cada um desses pólos mudam ao longo do tempo e variam entre os diferentes grupos sociais e indivíduos. Contudo, este pensamento dual permaneceu significativo numa sociedade há muito dominada pelas estruturas paternalistas de poder das instituições criadas com base na família.” P. 33. Cf. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade,

modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Trad.: Elizabeth de Avelar Solano Martins. Campinas,

SP: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.

333 GRAHAM, Sandra. Op. Cit. Ver especialmente a nota 2 da pág. 160 a 161, que entende o uso da violência

como parte constitutiva do paternalismo: “Meu ponto de vista é que o paternalismo sempre teve seu lado feio e

grosseiro: o direito de punir com raiva, a recusa a conceder cuidados ou favores ou as formas mais obviamente brutais ou perversas de maus-tratos físicos. (...).” p. 160.

334 Cf. FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Op. Cit., p. 56. Ver

ainda o Diário de Pernambuco, 13/03/1835, ou 21/03/1859. Nesse último dia, por exemplo, um aviso denuncia o caso de uma senhora que castigava impiedosamente uma única escrava que possuía, de nome Juliana, que possuía de 7 a 8 anos apenas, e que provavelmente estava já aprendendo os ofícios domésticos, sendo este talvez um dos motivos da senhora para os tão freqüentes castigos. Ao final, o comovido denunciante apela para a intervenção da autoridade da rua (polícia) no âmbito da casa: “(...) e note-se que os lamentos dessa victima

infeliz serve de recreio entre os mais membros da família, cujo espectaculo é aplaudido com satisfação. Faria grande serviço á humanidade e particularmente a essa victima innocente, a policia, se lançasse suas vistas para o procedimento inqualificavel dessa mulher.” Casos assim freqüentes mostram o caráter relativo da

A tensão e a insegurança da casa poderiam recair sobre os próprios senhores e patrões. Gilberto Freyre registrou o caso de uma escrava da Costa “criminosa” que no dia 18 de maio de 1844 tentou assassinar sua senhora talhando-lhe o rosto com uma faca, além de inúmeros casos de queimaduras no corpo de cativas domésticas punidas por senhoras rigorosas.335 A permanência lado a lado com a autoridade da dona de casa, para as chamadas amas secas ou de leite, ajuda-nos a compreender que, para além das desigualdades de gênero do mundo patriarcal, as trabalhadoras sofriam outros tipos de opressão relativos a sua condição de raça e de classe. A categoria gênero, portanto, precisa ser associada a outras categorias para melhor percepção das múltiplas identidades femininas em convivência muitas vezes pouco harmônica.336

Na distinção que Freyre faz entre os escravos do eito e os domésticos, ele busca demonstrar por contraste, os dois lados opostos da hierarquia escrava. Para ele, exercer ofícios domésticos na casa-grande tinha as vantagens da “assistência moral e religiosa”, algo que os escravos do eito não tinham.337 Florentino e Góes assim interpretam essa

passagem de Freyre:

Eis a deixa para que Freyre encontre não apenas uma hierarquia que separa e realoca os escravos entre si, mas que também possui em seu topo uma “parte aristocrática [que] eram os escravos do serviço doméstico”. (...) O critério de diferenciação é aqui menos o do estatuto profissional propriamente dito do que a possibilidade de que a ocupação aproxime ou afaste o cativo da casa-grande, esta sim a ambígua fonte de princípios que podem contrabalançar a promiscuidade e a lassidão intrínsecas ao escravismo.338

Góes e Florentino, perscrutando o raciocínio freyriano, concluem que havia uma relação íntima entre a ocupação dos escravos e escravas e sua socialização, o que trazia maiores possibilidades deles e delas estabelecerem relações familiares estáveis, nos moldes prescritos pela cultura branca, dado que estariam em contato com os “elementos pedagógicos” do universo cultural senhorial. Os autores, por sua vez, confrontam a tese de

335 FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios., Op. Cit., pp. 74-75.

336 Cf. nosso As múltiplas identidades femininas e o uso do espaço urbano do Recife no século XIX. In

História & Perspectivas. Uberlândia, (25 e 26): 167-192, Jul./Dez. 2001/Jan./Jul. 2002.

337 Cf. o estudo clássico de FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira

sob o regime da economia patriarcal. 30ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 450.

338 Cf. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico

Freyre, e demonstram que a proximidade com a família senhorial não necessariamente conduz a um maior índice de parentesco sancionado pela norma.339 Creio, todavia, que não era intenção de Florentino e Góes negar a existência de hibridismo cultural. Mesmo porque a proximidade com os senhores/as pelas chamadas “crias” da casa influía na maior integração dos negros e negras na cultura dos brancos.340 O contrário também não pode ser negado, pois havia trânsito cultural. Entretanto, notar as implicações dos serviços prestados portas a dentro para senhores/patrões e escravas e criadas de cor, apesar de importante, mostra-se uma tarefa de difícil mensuração. Os caminhos mostram-se bastante enviesados, e só um estudo mais abrangente das relações familiares no Recife oitocentista poderá trazer respostas mais convincentes. Particularmente acredito que houve inevitável hibridismo cultural no interior dos sobrados, mas sempre em um quadro de tensão permanente.341 Seria simplista, por exemplo, acreditar que mulheres que serviam como criadas eram mais “morigeradas” (seguindo normas e preceitos estabelecidos) do que as vendeiras de rua. Ora, muitas dessas criadas (fossem elas forras, escravas ou livres pobres) conheciam e vivenciavam também o universo “perigoso” da rua. Isso só não ocorria com cativas realmente reclusas, cuja vida estava vigiada de perto pelos códigos e interditos da cultura senhorial e patriarcal.342

Essa questão de hibridismo cultural na relação entre senhores e escravas, ou entre patrões e suas criadas, não é de resposta fácil quando se analisa o espaço urbano. O contexto freyriano é o da casa-grande, e o autor pensa em situações nas quais as serviçais passavam gerações e gerações no seio da família senhorial. No meio urbano (pensando especificamente na cidade do Recife), os serviços exercidos de portas a dentro configuram um importante mercado de trabalho para inúmeras mulheres, mas estas eram continuamente alijadas das casas onde se inseriam em uma situação na qual a rotatividade era uma

339 Idem, ibidem, pp. 110-111.

340 Cf. OLIVEIRA, Maria Inês C. de. O liberto. Op. Cit., p. 69.

341 Concordamos com a leitura que Robert Slenes faz do trabalho de Eugene Genovese. Afirma que: “Para

Genovese, (...) a proximidade física e a interação diária intensa entre senhores e escravos, num regime “paternalista”, (entendido de forma diferente por dominantes e dominados), promoveram aproximações, acomodações e negociações culturais entre eles, apesar, ou mesmo por causa de, seus profundos

antagonismos.” SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da

família escrava. Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 39.

342 Para Mary C. Karasch, eram entre as meninas escravas domésticas que incidiam o maior número de

batizados, uma vez que estavam excessivamente próximas do universo católico senhorial. Cf. A vida dos

constante.343 Não havia uma convivência duradoura que permitisse laços estreitos e trocas culturais mais intensas. Portanto, a classificação dos Avisos Diversos quanto à natureza e local das ocupações não fornece pistas sobre os contatos culturais. Ela é fundamental do ponto de vista da percepção global do mercado de trabalho no qual mulheres empobrecidas, libertas e escravas eram compelidas a se engajar. Esse conjunto diverso de mulheres de distintas categorias jurídicas trabalhava nos lares recifenses, e permeava os anúncios, onde elas ofereciam serviços, ou eram solicitadas por pretendentes. Isso nos levou à segunda classificação discutida abaixo.