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C APÍTULO 4 A I NDONÉSIA E A ASEAN NO PERÍODO PÓS S UHARTO (1998-2017)

4.1. Habibie e Wahid (1998-2001)

4.2.2. A Cimeira de Bali e a Declaração ASEAN Concord

Com a presidência da ASEAN no horizonte, a Jacarta decidiu aproveitar a ocasião para reclamar a sua liderança na ASEAN e a relevância diplomática da ASEAN na comunidade internacional.

O cerne da visão da Indonésia para o futuro regional consistia na criação de uma comunidade de segurança ASEAN. Em linha com a maior abertura do governo indonésio à participação de actores não estatais na concepção da política externa In- donésia, os primeiros termos da proposta emergem via diplomacia track II59. O pro- jecto de criação de uma comunidade de segurança justificava-se com base no enten- dimento de que a ASEAN não podia continuar a considerar que a paz, a estabilidade e a prosperidade só podiam ser alcançadas por via da cooperação económica, pelo que seria positiva a incorporação formal do elemento de segurança no documento funda- cional da organização. Sufragava-se a visão de uma comunidade de segurança com- preensiva, em linha com as necessidades e características da região, em que aos ele- mentos não militares de segurança era dada relevância equivalente à dos elementos militares e que englobava a segurança humana.

Para alcançar tal propósito, a ASEAN devia reponderar o princípio da não in- terferência, admitindo a hipótese de, em casos de indesmentível gravidade, como aqueles em que conflitos internos tivessem efeito transfronteiriço ou em que uma crise

59 Os termos iniciais da proposta foram gizados por Rizal Sukma e vertidos num documento intitulado

“The Future of ASEAN: Towards a Security Community”, apresentado no seminário “ASEAN Coopera- tion: Challenges and Prospects in the Current International Situation”, na Missão Permanente da In- donésia nas Nações Unidas, em 03 de Junho de 2003.

interna tivesse um elevado impacto humanitário, houvesse abertura para a uma inte- racção amigável sobre o tema (Sukma, 2003). Concebia-se, ainda, a possibilidade de actuação da ASEAN para impedir a eclosão de conflitos abertos e violentos, com inequívoco impacto externo, e o desenvolvimento da capacidade regional para assu- mir um papel de manutenção da paz. Por outras palavras, propunha-se que os mem- bros da ASEAN admitissem que os interesses da comunidade pudessem prevalecer sobre os interesses nacionais em matérias que afectassem a comunidade (Weatherbee, 2015:63; Acharya, 2015:54; Emmers, 2014:556).

O resultado do debate indonésio originou uma proposta geral de Jacarta sobre a criação de uma comunidade de segurança que foi formalmente discutida na Cimeira de Bali, em Outubro de 200360, e o local escolhido dificilmente poderia ter tido maior simbolismo para a nação arquipelágica. Por um lado, foi na ilha de Bali que foi adop- tada a Declaração ASEAN Concord I. Por outro lado, os trágicos atentados terroristas ocorridos em território indonésio tinham ocorrido em Bali no ano anterior e foi uma forma de os parceiros da ASEAN expressarem apoio e confiança na capacidade da Indonésia para manter a segurança interna61.

As linhas gerais da perspectiva indonésia sobre o futuro da segurança regional foram colectivamente apoiadas pela ASEAN nos termos da Declaração ASEAN Concord II. A Declaração estabeleceu o objectivo de criação de uma Comunidade ASEAN (CA) em 2020, fundada em três pilares: (i) a Comunidade Económica ASEAN, que compreendia a criação de um mercado comum; (ii) a Comunidade de Segurança ASEAN (depois renomeada Comunidade Política e de Segurança), que previa a criação de uma comunidade de segurança; e (iii) a Comunidade Sócio- Cultural ASEAN, que complementava os outros dois pilares.

Redigida em termos amplos, para ulterior definição, a grande inovação da Declaração ASEAN Concord II consistiu em ser a primeira vez que o desígnio de criação de uma comunidade ASEAN se inscreveu, qua tale, na agenda política regio- nal, deixando de ser um mero slogan (Weatherbee, 2015:104; Oba, 2014:64). Foi

60 A proposta foi informalmente apresentada na 36.ª Reunião Ministerial, em Phnom Penh, em Junho

de 2003.

61 Suharto havia demonstrado solidariedade similar com Corazón Aquino, em 1987, quando apoiou a

realização da III Cimeira ASEAN em Manila, num momento em que a capital filipina estava assolada por violência, um gesto de liderança que promoveu a solidariedade intra-regional (Suryadinata, 1997:52).

também a primeira vez que o termo democracia foi utilizado num documento da ASEAN (Oba, 2014:71). Analisada a Declaração, fica a impressão de que houve sobretudo um reiterar de normas sedimentadas desde há muito, uma espécie de reno- vação de votos matrimonais, como apelida Smith (2004:430).

A Cimeira de Bali logrou um segunto feito assinável: a China e a Índia, pre- sentes no evento, assinaram o TAC (Smith, 2003).

Considerando a Cimeira um sucesso, Megawati Sukarnoputri assinalou a ASEAN como a prioridade da política externa indonésia (Wheatherbee, 2005:150) no discurso presidencial de 2004. Foi a primeira oportunidade, na era pós-Suharto, que a liderança indonésia reclamou o papel de contribuição para o futuro regional e reafir- mar a primazia da Indonésia na região (Wheatherbee, 2005:151; Emmers, 2014:556).

O concreto teor das ideias indonésias foi apresentado à ASEAN em 2004. Ja- carta elaborou um conjunto de propostas específicas que dariam à organização uma direcção distinta em pontos muito particulares. Entre as mais impressivas, para além da promoção da democracia e dos direitos humanos, contava-se o estabelecimento de uma força de manutenção da paz destinada a apoiar os membros que enfrentassem conflitos internos (uma preferência por uma ordem regional autónoma que, tendo raízes históricas profundas, estaria também associada à situação de Timor-Leste62), a “ASEANização” da cooperação militar e a criação de um centro regional de contra- terrorismo (Heiduk, 2016:11; Emmers, 2014:556).

A visão indonésia para o futuro da ASEAN gerou controvérsia e desconforto entre os membros que preferiam manter o status quo de uma cooperação militar con- cretizada extra-ASEAN por meio de acordos bilaterais e e multilaterais (Weatherbee, 2004:162) e o mínimo denominador comum, sendo sobretudo sensíveis as propostas relacionadas com a ordem interna dos estados (Emmer, 2014:556). A própria ASEAN tinha-se furtado, ao longo dos anos, a estabelecer um processo por meio do qual fosse definido que questões de segurança tinham impacto regional (Weatherbee, 2004:259). A resposta dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da ASEAN foi negativa e os té- cnicos trabalharam a proposta de modo a torná-la objecto de consenso, o que, na

62 Weatherbee (2004:162) refere que os comentários de Camberra sobre a possibilidade de um ataque

prática, conduziu a que os interesses nacionais continuassem a prevalecer. A proposta que foi aprovada foi a da constituição da CIPDH.