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A classificação das ciências em Aristóteles

Capítulo 2: A astronomia antiga e a filosofia

2. Ptolomeu

2.2 As diferenças entre Ptolomeu e Aristóteles

2.2.1 A classificação das ciências em Aristóteles

Aristóteles procurou sistematizar e organizar o saber produzido até a época em que viveu, como forma de determinar totalmente o real. Hegel (2013, n. p. [capítulo 3, primeira parte, seção 3]) afirma que Aristóteles é “um observador pensante do mundo, capaz de tomar em consideração todos os aspectos do Universo […]; todos os aspectos do saber

70 Ainda assim, Falcon (2017, n. p. [capítulo 2, seção 5]) escreve que, para melhor compreender a influência

de Aristóteles na Antiguidade, deve-se “reconhecer que uma leitura autêntica de Aristóteles não existe” e que é melhor falar de “aristotelismos possíveis”.

encontram lugar no seu espírito”. Um dos passos principais daquilo que Hegel vê como a “empiria total” de Aristóteles é a classificação das ciências. Para Pierre Aubenque (2009, p. 80), Aristóteles foi

[...] um prodigioso organizador do saber, ao mesmo tempo preocupado com a generalização, sem a qual não há ciência possível, e respeitoso das diferenças, que não apenas distinguem os indivíduos entre si, mas também impedem de reduzir uns aos outros os grandes gêneros de fenômenos e, consequentemente, as ciências que os estudam.

No corpus aristotélico, há várias classificações das ciências. Aristóteles inicia a

Metafísica (2004, p. 5-7 [I, 981a20-982a3]) observando que aqueles que possuem arte,

entendida como um sinônimo de ciência, são mais sábios do que aqueles que possuem apenas a experiência. São as necessidades humanas que dão origem às primeiras artes, as úteis, seguidas pelas que geram prazer, e por fim, aquelas relacionadas à contemplação, advindas da atividade de homens livres – Aristóteles dá como exemplo o surgimento da matemática entre os sacerdotes do Egito. Com o passar do tempo, aqueles que detêm esse saber contemplativo (ou teórico) foram considerados como sempre mais sábios que os outros, detentores dos demais saberes. Daí, o Estagirita lança sua primeira classificação das ciências: em primeiro lugar as teoréticas, superiores, e depois todas as demais agrupadas sob a denominação de poiéticas (BERTI, 1965, p. 79). Há também, na Metafísica (ARISTÓTELES, 2004, p. 73 [II, 993b19-21]), uma classificação das ciências em teoréticas e práticas. Noutras vezes ainda, Aristóteles considera como verdadeiras ciências apenas as chamadas ciências teoréticas, devido à indeterminação intrínseca, ao caráter probabilístico e à falta de certeza sobre a produção dos efeitos desejados nas ciências práticas e poiéticas (GOURINAT, 2002, p. 593-4). No entanto, a classificação mais conhecida e utilizada, até mesmo pelo maior desenvolvimento que Aristoteles dá a ela, é aquela tripartite dos livros VI e XI da Metafísica.

Na Metafísica VI 1 e XI 7, Aristóteles divide as várias ciências a partir de um ponto de vista ontológico. Se cada ciência deve examinar um tipo de objeto, é a natureza deste que definirá aquela. A primeira classificação é o esquema tripartite que divide as ciências, a partir do princípio de movimento do objeto, em práticas, poiéticas (ou produtivas) e teoréticas. Tanto as ciências práticas quanto as ciências poiéticas tratam das ações, cujo princípio de movimento está no sujeito produtor, e não nelas mesmas; a diferença entre elas se dá no escopo dessas ações: enquanto nas primeiras a ação tem seu início e seu fim

no sujeito, nas segundas essas ações geram algo exterior ao sujeito (REALE, 2004, p. 977). Já os objetos das ciências teoréticas têm em si mesmos o princípio de movimento.

Essa classificação baseada no princípio de movimento tem como fundamento uma distinção que Aristóteles faz na Ética a Nicômaco (2008a, p. 533 [III, 1112a30-32]), entre aquilo sobre o que podemos deliberar, e aquilo sobre o que não podemos deliberar. Podemos deliberar sobre o que está em nosso poder e sobre o que podemos fazer. Esses são os objetos das ciências práticas e poiéticas: as primeiras incluem a ética e a política, enquanto as segundas incluem a poesia, a medicina e as técnicas diversas (a retórica é uma ciência mista, prático-poiética) (JORI, 2003, p. 284). Grande parte do resto das coisas sobre as quais não podemos deliberar é objeto das ciências teoréticas – excluídas as ações de outras pessoas e aquilo que se produz por acaso (GOURINAT, 2002, p. 586-7). Assim, essa primeira classificação baseia-se numa ontologia e leva em conta a distinção entre sujeito e objeto, sendo teoréticas as ciências nas quais não há nem pode haver nenhum tipo de influência do observador sobre aquilo que é observado. A questão da distinção entre o sujeito e o objeto na ciência continua sendo tema de debate ainda hoje.

Aristóteles subdivide posteriormente as ciências teoréticas em três: teologia, física e matemática. Novamente, os critérios utilizados são de tipo ontológico, mas diverso daquele utilizado na primeira classificação. O Filósofo combina dois critérios dicotômicos: os objetos podem ser (i) separados ou não-separados, e (ii) móveis ou imóveis. Segundo Giovanni Reale (2004, p. 979), o termo “separado” possui três significados na Metafísica de Aristóteles: (1) separado da matéria, isto é, transcendente; (2) existente por si, capaz de subsistir sem ser inerente a outra coisa; e (3) separável logicamente ou com o pensamento. Já a dicotomia móvel-imóvel se refere a objetos que podem sofrer mudanças (os objetos móveis) ou não (os objetos imóveis).

Assim, os objetos da teologia são caracterizados como separados e imóveis, enquanto os da física, como separados71 e móveis. Os objetos da matemática são

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A questão da separabilidade ou inseparabilidade dos objetos da física é tema de discussão entre os comentadores de Aristóteles. Segundo Jean-Baptiste Gourinat (2002, p. 1052-3), os manuscritos originais da

Metafísica VI, 1026a14 trazem o termo grego achôristos, que significa “não-separado” ou “não-separável”, e

são os intérpretes de Aristóteles que corrigem o texto mudando o termo mencionado para chôristos (“separado” ou “separável); em sua menção ao trecho em questão, Gourinat (2002, p. 596) usa “inseparáveis”. Gourinat afirma que não se pode entender o significado de “separado”, nesse contexto, no sentido de uma substância existente por si só tal como os objetos da teologia, dentro da acepção (1) de Reale – este afirma que se deve entender o termo chôristos na acepção (2). De todo modo, tanto Reale quanto Gourinat, se discordam da letra, concordam com o espírito do texto aristotélico, em que os objetos estudados pela física só existem como união individual de forma e matéria, ainda que o objeto da física seja o

caracterizados, à primeira vista, de uma forma um pouco mais dúbia: Aristóteles afirma inicialmente (2004, p. 271 [Metafísica VI, 1026a6-10]) que não é claro se os objetos da matemática são separados ou não, mas, de todo modo, são tratados pelos matemáticos como imóveis e separados. Em seguida, a incerteza é dissipada pela declaração de que a matemática lida com objetos imóveis mas não-separados. De fato, a classificação dos objetos matemáticos como não-separados pode ser melhor entendida dentro da controvérsia de Platão e Aristóteles acerca do estatuto da matemática: enquanto o primeiro afirmava a transcendência ideal dos objetos matemáticos, o segundo a negava, mantendo a distinção entre teologia e matemática. Para Aristóteles, os matemáticos tratam de objetos não-separados da matéria, mas considerados como se assim o fossem, por abstração do corpo individual no qual se encontra a propriedade matemática. Assim, a caracterização dos objetos da matemática como “não-separados” se move dentro do campo semântico das acepções (2) e (3) de Reale, mencionada supra, enquanto os da teologia e os da física se movem no campo (1) e (2), respectivamente: cada ciência se debruça sobre um “gênero particular do ser” (ARISTÓTELES, 2004, p. 269 [Metafísica VI, 1025b19]), mas apenas duas delas (a teologia e a física) têm substâncias como objetos, isto é, entes que possuem existência própria, em si mesmos e não atrelados a outra coisa; os objetos da matemática não têm existência própria, apesar de serem tratados como se a tivessem.

Além de distinguir as ciências, Aristóteles também define a hierarquia entre elas a partir das características ontológicas dos respectivos objetos. Assim, “a ciência mais alta deve ter como objeto o gênero mais alto de realidade” (ARISTÓTELES, 2004, p. 273 [Metafísica VI, 1026a21]), isto é, a teologia é a ciência mais alta por tratar do objeto mais elevado, enquanto a física e a matemática tratam de objetos mais baixos, em comparação. Para Aristóteles (2008a, p. 691 [Ética a Nicômaco VI, 1139b20-25]), a ciência diz respeito ao que não pode ser diferente do que é, ou seja, ao que é necessário, eterno, não-gerado e incorruptível; desse modo, a teologia é não apenas a ciência mais alta, mas “a ciência”,

stricto sensu.

Em geral, os comentadores de Aristóteles afirmam que, para ele, a matemática está acima da física. Essa hierarquização, que versa sobre a exatidão das ciências e aparece na

Metafísica XIII, 1078a9-13 (ARISTÓTELES, 2004, p. 601), é baseada na simplicidade do

objeto de estudo da disciplina. Assim, quanto mais simples o objeto, mais exata a ciência

movimento e não as qualidades da matéria per se (ARISTÓTELES, 2004, p. 497 [Metafísica XI, 1061b6-7]). Utilizo aqui a versão mais comum nas edições de Aristóteles, chôristos.

que trata dele. Nessa hierarquia, a física vem depois da matemática, e ambas após a teologia. Porém, Aristóteles afirma, no undécimo livro da Metafísica (ARISTÓTELES, 2004, p. 513 [Metafísica XI, 1064b1-15]), que a física seria a ciência principal caso não houvesse objetos teológicos, isto é, se não houvesse objetos separáveis e imóveis. Concordo com a interpretação de Jacqueline Feke (2018, p. 14), segundo a qual a separabilidade é, em Aristóteles, um critério logicamente anterior à imobilidade; ora, ambas as ciências, a física e a matemática, compartilham uma das características da teologia, a principal ciência: a física compartilha a separabilidade, e a matemática, a imobilidade; se a física fica acima da matemática no caso da inexistência dos objetos teológicos, isso se deve, então, ao fato de que seus objetos são separáveis. Seja como for, parece haver em Aristóteles um duplo critério de hierarquização das ciências, um baseado na simplicidade e outro na dignidade do objeto – ambos os critérios, porém, são de tipo ontológico. Desse modo, podemos dizer que em Aristóteles, tanto a divisão quanto a hierarquização das ciências se fazem a partir de critérios puramente ontológicos.