• Nenhum resultado encontrado

Hiparco e a astronomia babilônica

Capítulo 2: A astronomia antiga e a filosofia

2. Grécia

2.2 Três relações entre astronomia e filosofia na Grécia

2.2.3 A terceira fase da relação entre filosofia e astronomia: o caso de

2.2.3.1 Hiparco e a astronomia babilônica

Por muito tempo, a historiografia da filosofia e das ciências falou sobre um suposto “milagre grego”, em que tanto uma quanto as outras teriam surgido como uma ruptura abrupta com um passado baseado em crenças míticas e irracionais. Essa ideia origina-se no romantismo europeu, com autores como Goethe, que viam nos gregos a própria personificação da harmonia e da beleza (CHAUI, 2006, p. 25), e pode ser interpretada como uma instância da distinção ontológica e epistemológica entre “ocidentais” e “orientais” da qual fala Said, e que vimos ser uma das implicações de uma certa leitura anacrônica da história da ciência. Nessa leitura, a Grécia antiga seria o lugar privilegiado da razão, berço único das ideias que definiriam, até hoje, o que é ser “racional”, “científico” – ou se preferirmos, “ocidental”. A tríade “bom, belo e justo” poderia ser considerada a epítome de toda a produção grega, das artes à filosofia. Além disso, segundo

essa corrente, tanto a filosofia quanto a ciência grega não teriam ligações com os conhecimentos gerados em outras culturas.

Segundo essa concepção, as outras culturas e línguas contemporâneas à cultura e língua grega seriam fonte de misticismo, pseudociência e tirania. Essa ideia ainda é forte hoje, quando se fala de valores ocidentais em oposição aos valores orientais. Notam-se os efeitos dessa ideia também nos estudos acadêmicos em filosofia e história da ciência, em que os desenvolvimentos gregos são considerados o limiar do fazer científico e o foco único do fazer filosófico. Obviamente, não pretendo negar a especificidade e o valor das produções gregas em ciência e filosofia, mas apenas indicar que um entendimento dessas em abstração dos vínculos com o passado e com outros povos é, no mínimo, empobrecedor para uma compreensão mais completa das causas dessas produções.

Um dos casos em que essa ideia do “milagre grego” costuma aparecer é aquele da astronomia antiga. Para manter a primazia dos gregos, tende-se a se fazer brevíssima menção às influências importantes para os astrônomos do período helenístico, e a astronomia babilônica, por exemplo, é indicada apenas como fonte de dados observacionais para esses cientistas. Como nota Francesca Rochberg (2002, p. 673), essa visão tradicional faz com que a astronomia babilônica seja encarada como não científica ou pré-científica, de modo que seus avanços deveriam aguardar as contribuições gregas para que finalmente se metamorfoseassem em ciência tout court. Tal concepção é fortalecida por boa parte da filosofia da ciência do século XX (principalmente a corrente neopositivista), em que as teorias são consideradas como o produto mais elevado da atividade científica. Nesse sentido, o tipo de conhecimento astronômico produzido pelos babilônios careceria, já de partida, do objetivo “correto” do verdadeiro cientista: produzir uma teoria. Mesmo um autor de fora da corrente neopositivista, o filósofo Paul Feyerabend afirma que

As ciências, e especialmente as ciências naturais e a matemática parecem ser temas [subjects] teóricos por excelência. Elas surgem quando as tradições teóricas gregas substituem aquelas empíricas dos babilônios e gregos (FEYERABEND, 1981, p. 11)48.

48 A continuação da citação contém a crítica de Feyerabend às tentativas de se impor uma determinada noção

de racionalidade na história da ciência:

O interessante, porém, é que, após os primeiros passos abstratos, esses temas [subjects] se tornaram tradições empíricas (históricas) por conta própria. Noções abstratas e procedimentos eram usados apenas de forma intuitiva, que frequentemente divergia das suas definições abstratas. Isso foi

Outro problema relacionado à apreciação histórica e filosófica da astronomia babilônica é o da origem religiosa de seus conhecimentos. Aqui, aponto apenas para o fato de que a história da ciência é repleta de exemplos, e é desnecessário mencioná-los, em que ciência e religião, encarados como domínios diversos a partir de um ponto de vista contemporâneo, estão estreitamente imbricados.

Há que se notar, entretanto, que se a abordagem do milagre grego aparece em historiadores da astronomia como John Dreyer, há também outros como Giovanni Schiaparelli e Otto Neugebauer que se debruçaram sobre aspectos ditos “irracionais” da ciência grega, como a astrologia, e sobre os conhecimentos produzidos em outros povos, sobretudo na Babilônia. Nos últimos anos, o número de publicações de tabletes astronômicos babilônicos e de papiros do Egito romano tem aumentado, e têm surgido mesmo alguns estudos que analisam a astronomia babilônica a partir do ponto de vista da filosofia da ciência como o The Babylonian Theory of the Planets, de Noel Swerdlow (1998).

Talvez o problema da influência da astronomia babilônica sobre a grega seja um dos campos mais férteis para a relativização do mito de um milagre grego e para a compreensão de alguns pontos metodológicos da astronomia helenística tal como praticada por Ptolomeu, por exemplo. Cabem, então, algumas considerações sobre as influências sofridas pela astronomia de tradição grega, especificamente aquela dos métodos babilônios sobre o trabalho de Hiparco de Niceia.

Hiparco é famoso pelo desenvolvimento de uma teoria do movimento do Sol. O astrônomo grego desenvolveu sua teoria solar a partir de um fato básico: a diferença de duração das estações, já conhecida por babilônios e gregos havia alguns séculos, provavelmente. As estações podem ser definidas através da duração variável do dia e da noite (NEUGEBAUER, 1983, p. 246). Assim, o inverno é a estação que começa quando o dia é o mais curto do ano, e o verão é aquela que se inicia quando a noite é a menor (respectivamente, no solstício de inverno e no de verão). As outras duas estações intermediárias iniciam-se quando dia e noite são iguais (isto é, nos equinócios de outono e de primavera). Uma forma de entender a variação da duração dos dias e das noites é marcar as posições do Sol durante o ano contra o fundo das estrelas. Assim, se chegará à conclusão de que a cada estação o astro se encontra em uma constelação diferente,

entendido apenas muito recentemente, depois do colapso de todas as tentativas de dar um relato “racional” da mudança científica (FEYERABEND, 1981, p. 11-2).

movendo-se através da eclíptica. Cada um dos pontos de localização do Sol em que os dias e noites têm duração igual ou diferença máxima podem ser marcados, e daí surgem os pontos dos equinócios e solstícios. Se o Sol se movesse à mesma velocidade angular por toda sua órbita, a duração das estações deveria ser a mesma, o que não ocorre.

Para explicar esse fato, Hiparco cria sua teoria solar a partir da intuição básica dos babilônios presentes em seus sistemas A e B: a velocidade solar é desigual através da eclíptica. No entanto, pertencendo à tradição grega, Hiparco pretende utilizar círculos para descrever o movimento dos planetas e das estrelas. Para representar o Sol com velocidade desigual através da eclíptica, Hiparco cria um modelo geométrico em que o círculo no qual se move o astro não está centralizado na Terra: esse é o expediente geométrico utilizado na astronomia antiga, comumente chamado de excêntrico. Com a órbita do Sol descentralizada em relação à Terra, o Sol demoraria tempos diferentes para cobrir partes de seu percurso, causando assim a diferença na duração das estações. Dessa forma, Hiparco foi capaz de explicar a diferença das estações mantendo o princípio grego de utilizar círculos para representar o movimento dos astros. Sua teoria solar será utilizada posteriormente por Ptolomeu como a base lógica na criação do seu sistema astronômico.

Outra descoberta de Hiparco é a da precessão dos equinócios. Novamente, se definirmos o começo de uma estação, o outono, digamos, no ponto do caminho anual do Sol em que dia e noite são iguais, e chamarmos esse ponto de equinócio de outono, ou outonal, poderíamos pensar que uma forma alternativa de definir esse ponto é o de verificar em que constelação, e em que altura dessa constelação, se localiza o Sol. Assim, em vez de atentar para a duração dos dias e noites, diríamos que quando o Sol se localiza em uma ou outra constelação inicia-se uma ou outra estação. No entanto, isso não pode ser assim. Se em uma determinada data o equinócio outonal ocorre quando o Sol está, por exemplo, no começo da constelação de Áries, após cerca de dois mil anos esse equinócio – o ponto em que dia e noite são iguais – estará localizado no começo da constelação de Peixes. Isso ocorre porque as estrelas fixas apresentam um movimento no sentido leste de cerca de 1º a cada 72 anos: a precessão dos equinócios.

Hiparco descobriu esse fenômeno provavelmente devido ao aparecimento de uma

nova stella, uma estrela nova – provavelmente uma supernova – que ele pôde perceber nos

céus. Isso teria motivado a sua compilação de um catálogo de estrelas (EVANS, 1998, p. 247). Quando Hiparco comparou suas próprias observações das estrelas com aquelas de astrônomos gregos anteriores, como Timocaris e Aristilos, e de registros babilônicos,

percebeu que os dados não concordavam entre si. A estrela Spica, da constelação de Virgem, foi provavelmente a que serviu de base para a descoberta de Hiparco. Ele notou que, segundo suas observações, Spica se encontrava a 6º a oeste do equinócio de outono, enquanto os dados anteriores apontavam que ela se encontrava a 8º a oeste. O próprio Timocaris, que trabalhou provavelmente em Alexandria no início do século III a. C., é considerado o pai do registro sistemático entre os gregos, e ainda que pouco se saiba sobre ele, pode-se conjecturar que iniciou tal prática pela influência dos babilônios.

Entre as observações de Timocaris e Hiparco se passaram cerca de 150 anos, o que daria uma taxa de precessão de 1º a cada 75 anos, sendo que hoje se calcula essa taxa em 1º a cada 72 anos. O próprio Hiparco teria afirmado que essa taxa não era menor do que “um centésimo de grau por ano” (EVANS, 1998, p. 259), o que pode ser considerado como uma taxa que o astrônomo entendeu como limite mínimo.

Para medir a taxa de precessão, Hiparco teve que calcular a posição da estrela Spica na eclíptica, isto é, sua longitude, e isso era feito a partir de um método que somava a longitude do Sol com a distância entre a estrela e a Lua eclipsada. Alexander Jones (1991, p. 447) aponta que a longitude do Sol que Hiparco utilizava não vinha de cálculos trigonométricos baseados em sua teoria solar, mas no sistema A dos babilônios, em que, como vimos, a eclíptica era dividida em duas zonas de velocidades diferentes.

O uso de dados e de métodos de cálculo babilônicos por parte de Hiparco assume importância maior se levarmos em consideração que o astrônomo grego não criou um sistema dedutivo como Ptolomeu. Pelos títulos das obras de Hiparco, suas obras foram escritas para resolver problemas pontuais, e a teoria solar, que é a base do sistema ptolomaico, parece ser a última desenvolvida por Hiparco. Seus cálculos baseavam-se nos métodos babilônicos porque esses lhe pareciam suficientemente confiáveis, e a adaptação e reinterpretação desses métodos dentro da astronomia grega será um processo que culminará na obra de Ptolomeu. Com Hiparco, a astronomia grega torna-se mais atenta aos dados observacionais e passa a se preocupar também com a capacidade preditiva dos modelos. Se isso, por um lado, parece afastar de vez a astronomia da filosofia, com os praticantes da primeira criando modelos matemáticos preditivos capazes de “salvar os fenômenos”, enquanto os praticantes da segunda poderiam especular sobre o que estaria além dos fenômenos, por outro, pode indicar o surgimento de uma nova relação entre astrônomos e filósofos, em que a astronomia (e a matemática) terá algo a dizer em domínios que poderiam ser considerados estritamente filosóficos. Hiparco, nesse sentido, é

o astrônomo que inaugura aquela que chamei de uma terceira fase da relação entre astronomia e filosofia, e que culminará na obra de Ptolomeu.

Casos como o de Hiparco ajudam a entender, em primeiro lugar, a complexidade das relações entre a ciência e a filosofia grega e a de outros povos. A ciência grega não nasce sem antecedentes, sem influências, sem idas e vindas, da mesma forma que a ciência moderna não nasce da mente de uns poucos gênios isolados do mundo. Em segundo lugar, casos assim podem servir como modelo de um estudo mais amplo sobre a adaptação e reinterpretação de conceitos científicos entre culturas e línguas diferentes, em especial para os povos antigos. Entre os problemas desse campo estariam o da seleção dos avanços que são transmitidos e a maneira pela qual eles são reintroduzidos dentro de outros contextos científicos.