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A relação entre as ciências em Ptolomeu

Capítulo 2: A astronomia antiga e a filosofia

2. Ptolomeu

2.2 As diferenças entre Ptolomeu e Aristóteles

2.2.2 As ciências em Ptolomeu

2.2.2.2 A relação entre as ciências em Ptolomeu

Após definir a matemática, Ptolomeu (1984, p. 36 [H6]) diz que o objeto dela fica, por assim dizer, entre o da teologia e o da física75. Duas são as razões para essa afirmação: em primeiro lugar, Ptolomeu afirma que o objeto da matemática pode ser “concebido tanto com a ajuda dos sentidos quanto sem ela”, e, em segundo, que esse objeto

é um atributo de todas as coisas existentes, sem exceção, tanto mortais quanto imortais: pois naquelas coisas que mudam perpetuamente na sua forma inseparável, muda com elas; naquelas coisas que tem uma natureza etérea, ela mantém a sua forma imutável constante (PTOLOMEU, 1984, p. 36 [H6]).

Com isso, Ptolomeu propõe uma nova relação entre as disciplinas, que baseará todo seu edifício científico e fundamentará sua preocupação ética.

Em seu comentário ao Almagesto, Téon de Alexandria faz uma leitura bastante aristotélica desse passo. Para ele, Ptolomeu está fazendo menção à abstração da matéria que o matemático deve fazer, segundo Aristóteles. Para Téon, todos os objetos da física, sendo limitados, possuem matéria, forma e movimento. Os objetos matemáticos, segundo Téon, são investigados a partir da abstração que se faz do corpo. Esse processo de abstração faria com que o matemático partisse de conceitos ligados à percepção sensível até chegar ao elemento que requer apenas o pensamento:

75 A tradução de Halma é mais explícita, e traz que a própria “ciência matemática”, e não o seu objeto, fica

[...] concebemos a superfície, sem consideração do sólido, e a linha, sem pensar no plano; enfim, reduzindo sempre mais, chegamos ao ponto considerado separadamente do comprimento que restava à linha, para chegar ao elemento mais simples, desnudado de toda grandeza (TÉON DE ALEXANDRIA, 1821, p. 5).

Também Taub (1993, p. 25) faz referência a essa teoria da abstração, ao comentar que Ptolomeu quis dizer que a matemática pode ser estudada com ou sem a ajuda de recursos visuais, como diagramas, por exemplo.

Outra interpretação possível é aquela que vê na matemática um intermediário entre o mundo sensível e o mundo inteligível, a partir de um ponto de vista platônico. Como vimos no capítulo anterior, Platão concebia que o trabalho dos geômetras estava numa posição intermediária entre o mundo sensível e o mundo inteligível: se, por um lado, procedem no mundo das Ideias, por outro, por não poderem justificar cabalmente seus “primeiros princípios”, ainda estão num nível de conhecimento inferior. Essa ideia platônica poderia aparecer em Ptolomeu e explicar tanto a menção ao fato de que o objeto da matemática pode ser concebido com ou sem os sentidos, quanto o caráter intermediário da disciplina.

Feke (2018, p. 24) afirma que Ptolomeu, em sua caracterização da matemática, está dialogando com Aristóteles, mas não apenas através da teoria da abstração, e sim também através da teoria aristotélica da percepção. Aristóteles (1991, p. 151-2 [De anima II, 418a10-20]), divide aquilo que pode ser percebido pelos sentidos em próprio e comum: “um é próprio de cada sentido, enquanto o outro é comum a todos”. Os sensíveis próprios só podem ser apreendidos por um sentido, como a cor pela visão, o som pelo ouvido e o gosto pelo paladar. Já os sensíveis comuns podem ser apreendidos por mais de um sentido, como o movimento, a figura e a grandeza.

Essas ideias aparecem também no Sobre o critério e o hegemonikon. Nele, Ptolomeu delineia um critério para a verdade, com o fim de se alcançar um método para a obtenção do conhecimento (PTOLOMEU, 1981, p. 75-7). Para ele, o processo cognitivo é como um tribunal que possui cinco componentes: aquilo que é julgado, ou o que é; aquilo através do qual é julgado, ou a percepção dos sentidos; aquilo que julga, ou o intelecto; aquilo pelo qual é julgado, ou a razão; e aquilo para o que é julgado, ou a verdade. Tal expediente de se elencar “componentes” do processo cognitivo também aparece em autores contemporâneos, como Sexto Empírico e Alcino. No esquema ptolomaico, os órgãos dos

sentidos percebem um objeto, cuja representação (phantasia76) é levada até a faculdade racional para ser julgada. De acordo com o grau de compreensão do objeto e de seu julgamento pela razão, o conhecimento obtido pode ser uma opinião (doxa) ou conhecimento propriamente dito (episteme). É interessante notar que Ptolomeu utiliza aqui termos platônicos para distinguir os tipos de julgamento do objeto e o conhecimento dali resultante.

O sincretismo de Ptolomeu se manifesta quando este faz referência à teoria dos sensíveis próprios e comuns de Aristóteles; os sensíveis próprios são aqueles específicos de cada sentido:

Por si mesma, cada faculdade diz por natureza a verdade, quando se volta apenas sobre a sua qualidade específica, sem ser desviada por juízos complexos [envolvendo

outras qualidades]. Como quando a vista vê as cores, o ouvido ouve os sons, o paladar os

sabores, o olfato os odores, o tato as qualidades (PTOLOMEU, 1981, p. 83).

Em seguida, Ptolomeu (1981, p. 83) descreve os sensíveis comuns fazendo menção às situações em que “das mesmas coisas há muitas apreensões, como, nos sensíveis, da grandeza, da quantidade, da forma, da posição, da ordem, do movimento”. Esses atributos são praticamente os mesmos que Ptolomeu mobiliza no Almagesto como exemplo daquilo que a matemática investiga: “forma, o número, o tamanho, o lugar, o tempo etc.” (PTOLOMEU, 1984, p. 36 [H5]). Dado que os sensíveis comuns são apreendidos por mais de um sentido, o intelecto tem a opção de considerá-los em relação a um sentido apenas, ou mesmo independentemente dos sentidos. Feke (2018, p. 24-5) afirma que acredita que Ptolomeu tinha isso em mente ao afirmar que o objeto da matemática pode ser “concebido tanto com a ajuda dos sentidos quanto sem ela”. Sua interpretação me parece adequada, considerando que Ptolomeu conhecia a teoria da percepção aristotélica e a retomou através de exemplos no Sobre o critério e no Almagesto.

Assim, o primeiro argumento de Ptolomeu acerca da posição da matemática se baseia no fato de que, enquanto o objeto da teologia é imperceptível e o da física é perceptível, seu objeto pode ser pensado como perceptível ou imperceptível. Como nota Feke (2018, p. 17), essa classificação leva em conta, logo, não apenas os aspectos ontológicos dos objetos das ciências, mas também o aspecto epistemológico. Dessa forma,

76 Manuli (apud PTOLOMEU, 1981, p. 76) traduz phantasia por “representação”. Ptolomeu (ibidem) define

enquanto a querela entre Platão e Aristóteles sobre a natureza da matemática se baseia apenas em considerações ontológicas, Ptolomeu se afasta de certa forma dessa discussão ao utilizar o critério epistemológico da percepção para diferenciar a matemática das outras disciplinas. Isso nos leva ao segundo argumento relativo à posição da matemática entre as duas outras divisões da filosofia teorética.

O segundo argumento de Ptolomeu sobre o lugar da matemática entre a teologia e a física é baseado no fato de que os atributos matemáticos estão presentes tanto nos objetos da teologia quanto naqueles da física. Ptolomeu afirma que, nas coisas mortais, os atributos matemáticos mudam de acordo com a mudança constante à qual estão sujeitos os objetos da física. Mas é sobretudo em relação à teologia que a matemática exerce uma função importante: Ptolomeu afirma que a matemática mantém constante a forma imutável dos objetos da teologia. Veremos na próxima seção em que consiste essa função da matemática em relação à teologia, mas por ora cabe um esclarecimento sobre a terminologia de Ptolomeu.

À primeira vista, parece haver certa confusão em Ptolomeu: primeiro, ele afirma que o objeto da teologia é imperceptível e se localiza nos limites do Universo, o que nos faz pensar que ele se refere ao Primeiro Motor aristotélico. Depois, Ptolomeu escreve, ao se referir aos objetos da teologia, que a matemática mantém constantes os atributos dos objetos que possuem uma natureza etérea. Podemos identificar esses objetos com os astros celestes. De fato, no De caelo, Aristóteles (2008b, p. 357 [II, 7, 289a10-5]) havia afirmado que os astros eram constituídos por éter, e Ptolomeu (1984, p. 40 [H14]) também afirma o mesmo no Almagesto. Seria estranho se Ptolomeu escrevesse que os astros são imperceptíveis. Para Feke (2018, p. 18), os dois argumentos de Ptolomeu são incompatíveis. Não creio que assim seja, e, novamente, o sincretismo da filosofia de Ptolomeu nos ajuda a contextualizar suas ideias: quando fala que o objeto da teologia é imperceptível, Ptolomeu está fazendo uma alusão à doutrina aristotélica; quando fala dos objetos de natureza etérea e menciona sua constância, Ptolomeu está se movendo dentro de um terreno platônico que vê os astros como seres divinos – e não apenas platônico, dado que também Aristóteles (2008b, p. 362 [De caelo II, 292b1-5]) considerava os astros como entes animados, ainda que não divinos. Assim, pode parecer que Ptolomeu inicialmente dá uma definição circunscrita do objeto da teologia, e em seguida, uma definição mais ampla, que também incluiria os corpos celestes como participantes, de certa forma, do caráter

daquilo que é divino e possuindo suas características. Essa inclusão é importante por permitir que Ptolomeu dê à astronomia um lugar privilegiado em sua filosofia.