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3 MERCADO, PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DAS FOLHAS

4. A MERCADORIA FOLHA E SUAS FORMAS

4.1 A coisa natural (a folha da planta nativa)

O ponto de partida é a natureza, onde crescem, espontaneamente, determinadas plantas nativas não cultivadas, das quais os mateiros extraem galhos e ramos. Em seu materialismo, Marx opera com um conceito de natureza que é anterior ao trabalho:

O simples material natural (Naturmaterial), porquanto não há nele nenhum trabalho humano objetivado, porquanto é simples matéria e existe independentemente do trabalho humano, não tem valor algum, uma vez que valor é unicamente trabalho objetivado. (MARX apud DUSSEL, 2012, p. 172). [grifos do autor].

Portanto, aqui, a natureza (material natural), objeto de trabalho pelo homem, transforma-se, após o mesmo, em folha. Os galhos e ramos extraídos de determinadas plantas nativas são reunidos e compostos em feixes padronizados de folhas (os molhos) que os mateiros levam ao Mercado da Pedra, para serem comercializados como mercadorias específicas, as folhas, porque elas têm um valor de troca: elas são demandadas por indivíduos para quem possuem valor de uso. Aqui, revela-se o duplo caráter da mercadoria, simultaneamente, valor de troca e valor de uso95. Adquiridos por comerciantes, desdobrados em molhos menores e vendidos ao consumidor final, as folhas conservam a sua substância nessas formas pouco transformadas (galhos - ramos - feixes - molhos)96, que não lhes altera a composição físico-química. Quando é adquirida pelo consumidor, deixa de ser valor de troca e sai da esfera da circulação para se realizar como valor de uso, como objeto de procedimentos litúrgicos e rituais para “avivamento” de suas qualidades mágicas e medicinais, assumindo, então, a forma de ewé, erva sagrada. Ao ser manipulada pelo sacerdote, conhecedor dos procedimentos necessários para que produza os efeitos desejados, a coisa natural, a folha, é objeto do trabalho vivo do(da) babalorixá/yalorixá, que mediante enunciações, cânticos e manipulações, lhe restitui o axé, a força vital nela contida, suas potencialidades curativas, efetivando sua forma mais útil, mais apropriada e efetiva para o consumo.

A planta que é levada ao mercado não sofre, de fato, uma alteração substantiva em sua forma de coisa natural: a substância material natural é a mesma e se manterá assim até o fim do circuito, quando desemboca na esfera do consumo. O que pode ocorrer é a redução de suas

95 Para Marx (2013, p. 124), “elas só são mercadorias porque são algo duplo: objetos úteis e, ao

mesmo tempo, suportes de valor. [...] só aparecem como mercadorias ou só possuem a forma de mercadorias na medida em que possuemesta dupla forma: a forma natural e a forma de valor.”

96 Embora ocorram variações de acordo com a categoria da planta considerada (“grossa”ou “cheirosa”,

“quente” ou “fria”), geralmente os molhos são compostos por quantidades convencionadas de galhos ou ramos. De qualquer maneira, deve-se ressaltar que os molhos originalmente vendidos pelos mateiros são objeto de fracionamento pelos compradores/comerciantes que, dessa forma, e com acréscimo no valor unitário de revenda, obtêm lucro neste negócio.

potencialidades mágico-religiosas e medicinais decorrente da própria oscilação de seus princípios ativos, ao longo do tempo97 e de sua condição de matéria orgânica, portanto perecível – preferencialmente, as plantas devem ser utilizadas frescas e viçosas, havendo uma grande resistência quanto ao uso de folhas secas ou desidratadas.

Diagrama 14 – Metamorfoses da folha: de planta in situ a ewé

Fonte: Elaborado pelo autor, 2014.

A metamorfose fundamental por que passa essa mercadoria folha é a sua transformação ao final, realizando-se como valor de uso ao sair da circulação, quando deixa de ser molho de folha (inicialmente coisa natural apropriada, não valor de uso para o mateiro, valor de troca enquanto mercadoria em seu circuito de comercialização, e, finalmente, valor de uso para o consumidor) para se realizar enquanto ewé, erva sagrada, no âmbito privado (doméstico) ou comunitário (religioso) em que o seu uso é orientado por procedimentos convencionais e tradicionais, de acordo com sua finalidade. No espaço reservado dos terreiros, as folhas, extraídas da natureza ou cultivadas em hortas, têm diversos usos: maceradas em água para a lavagem e sacralização de objetos rituais; para a purificação da cabeça (ori) e do corpo de sacerdotes e devotos em etapas de iniciação e outros rituais; para a cura de doenças e malefícios e etc. Contudo, a folha enquanto erva sagrada (ewé) é a aquela que sofre o efeito transformador do trabalho vivo do(a) babalorixá/ialorixá que profere rezas, cânticos e encantamentos (ofò) que, ao invocarem a intervenção da divindade (Ossaim), propiciam a liberação do axé que se encontra nelas contido (VERGER, 1981).

97 O princípio ativo de determinadas plantas varia de acordo com as estações do ano, as fases lunares,

o tempo, a luminosidade etc. Uma mesma planta pode ser utilizada para finalidades distintas, a depender do horário da coleta, sendo por isso atribuída a uma ou outra divindade, por exemplo.

Diagrama 15 – Metamorfoses da mercadoria folha: a questão do valor

Fonte: Elaborado pelo autor, 2014.

Se considerarmos a atividade do produtor-horticultor, que é um agricultor no sentido estrito, de fato, a folha é fruto do trabalho sobre uma matéria (a terra), para o que são utilizados instrumentos de cultivo. Do ponto de vista do mateiro, a folha é fruto do trabalho extrativista, da coleta de material da natureza, utilizando instrumentos de extração. A folha enquanto coisa natural tem uma forma, que é a da sua substância natural. Esta forma, parte componente da forma planta, é que é apropriada pelo mateiro que detém um conhecimento “técnico” da sua utilidade como folha, valor de uso para terceiros, como remédio fitoterápico e/ou coisa mágico-religiosa, portadora de axé. Mas, tanto para o mateiro que a extrai na natureza quanto para o horticultor que a cultiva em sua horta, a folha é um não valor de uso (ñVU), que, na condição de valor de troca (VT1, VT2) é conduzida ao mercado como mercadoria para a troca

mercantil, até sair da circulação, adentrando a esfera do consumo como valor de uso (VU).