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3 MERCADO, PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DAS FOLHAS

3.1 Sobre o mercado, a produção e a circulação

Quando falamos de mercado, nos referimos a dois sentidos implícitos e diferentes do termo que definem também “dois tipos de entidades: um conceito econômico e uma realidade empírica”, como afirma Meunier (1978, p. 240). Inicialmente, enquanto realidade empírica, o mercado implica um lugar específico, segundo Polanyi (2012, p. 183), “tipicamente, um local aberto, onde as necessidades da vida, em especial alimentos frescos ou preparados, podem ser compradas em pequenas quantidades, em geral por valores predeterminados”. Para Meunier (1978, p. 241), além de designar o local “onde se efectua um certo número de transações”, o mercado é “onde se reúnem todos os que querem ceder, adquirir ou trocar produtos, sob a forma de troca directa ou utilizando moeda”. Assim, neste sentido empírico, concreto, falamos de mercado-local, dos mercados públicos de Salvador, a exemplo dos Mercados de

52 Cf. Marx (2008, pp. 246-251) para uma exposição detalhada das interações recíprocas e dialéticas

São Miguel e de Santa Bárbara, na Baixa dos Sapateiros, dos privados, como o Mercado das Sete Portas, ou dos mercados setoriais, como o Mercado do Peixe (Popular), na Água Brusca, e o Mercado da Pedra, na Feira de São Joaquim, onde se comercializam plantas rituais e medicinais.

No outro (e segundo) sentido, mais abstrato, enquanto conceito econômico, o termo mercado compreende, conforme Polanyi (2012, p. 183), “um mecanismo de oferta-procura- preço por meio do qual se realiza o comércio, embora esse mecanismo não esteja necessariamente preso a um local definido nem se restrinja à comercialização de alimentos”. Meunier (1978, p. 240) considera que “na teoria econômica clássica, o mecanismo do mercado caracteriza-se pela interacção da oferta e da procura solventes, que determinam as taxas a que são trocadas as mercadorias e, em contrapartida, as decisões de produção”. Assim, podemos falar do mercado de móveis, de imóveis, de quaisquer tipos de bens e de serviços, que, de maneira geral, abrange um conjunto de mecanismos e agentes sociais de comércio, de demanda e de oferta, distribuídos espacialmente de maneira dispersa e/ou concentrada.

No sentido mais abstrato do termo mercado, podemos falar do mercado de folhas em Salvador, nosso objeto de investigação, cuja configuração envolve um centro de abastecimento das mercadorias (Feira de São Joaquim), a partir do qual são distribuídas por um conjunto de estabelecimentos de comercialização no atacado e no varejo, que inclui a própria Feira e outros mercados e pontos de venda. O mercado das folhas compreende mecanismos específicos de comércio de plantas rituais e medicinais, a saber, i) produtores, ii) fornecedores, iii) transportadores, iv) vendedores, v) compradores e vi) consumidores, além, obviamente, das próprias mercadorias, vii) as folhas. A singularidade desse mercado de folhas soteropolitano já se insinua na acumulação de funções por parte de alguns dos agentes sociais envolvidos: os produtores da mercadoria, os mateiros – extrativistas que coletam plantas em áreas nativas –, e os horticultores, pequenos agricultores que cultivam determinadas espécies em hortas e quintais, são os próprios fornecedores que abastecem o mercado e que, ao mesmo tempo, também desempenham a função de vendedores dessa produção. Aqui, entre a produção e a circulação (troca) no mercado, não comparece a figura, frequente em muitos mercados, do intermediário, o típico atravessador que açambarca toda a produção antes que essa chegue ao mercado. No caso das folhas, na Feira de São Joaquim, os produtores levam sua própria produção ao mercado, sendo eles mesmos os fornecedores que o abastecem e que as comercializam diretamente, assumindo também a função de vendedores, como já assinalado. Na situação de troca mercantil, estes produtores (ao mesmo tempo fornecedores e vendedores) vendem suas mercadorias a quem as queira comprar, sejam compradores

estabelecidos em estruturas de comercialização distribuídas em várias feiras e mercados públicos (os chamados barraqueiros), grupos dispersos de vendedores avulsos (os chamados raizeiros ou erveiros ambulantes), ou compradores avulsos, os consumidores finais, representados pelo povo-de-santo e pela população em geral que faz uso de plantas medicinais.

O termo mercado, portanto, diz respeito, simultaneamente, a um fenômeno empírico – o local físico do encontro de pessoas que realizam trocas –, e também a uma variedade de comércio, um mecanismo competitivo do tipo oferta-procura, que embora seja, como afirma Polanyi (2012, p.184), “um fato empírico, [...] é intangível demais para se prestar com facilidade à investigação histórica; tem a natureza de um mero evento estatístico”. Polanyi chama de “elementos de mercado” à conjunção de traços institucionais definidos, que compreende desde i) o local físico existente, ii) as mercadorias disponíveis, iii) um grupo ofertante; iv) um grupo demandante; até v) costumes ou leis e equivalências. E ressalta:

Portanto, em termos institucionais, o mercado só postula uma situação de troca; [...] Implica um simples movimento de ida e volta de mercadorias entre “mãos”, conforme índices que podem ser determinados pelos costumes, pelo governo, pela lei ou pela própria instituição do mercado. (POLANYI, 2012, p. 185).

Para Weber (1999, p. 43), “a troca é um compromisso de interesses entre os participantes pelo qual se entregam bens ou possibilidades como retribuição recíproca [...]”, podendo realizar-se “de forma tradicional ou convencional e, portanto, irracional, do ponto de vista econômico [...] ou de forma racional, economicamente orientada”. É esta última forma a que caracterizará a troca peculiar que encontra no mercado as condições apropriadas para sua fácil realização. Assim, Weber (1999, p. 50) define a “situação de mercado de um objeto de troca” – enquanto uma das “categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica”53

como “a totalidade das possibilidades de troca do mesmo por dinheiro, que podem ser reconhecidas pelos interessados na troca, no momento de sua orientação na luta de preços e de concorrência”. Para Polanyi, entretanto, a situação de mercado diz respeito a

[...] uma quantidade de bens, por um lado, e um número de pessoas, relacionadas como compradores e vendedores desses bens, por outro. (...) “oferta e procura” pareceram inseparáveis como gêmeos siameses, quando, a rigor, formam grupos diferentes de pessoas, conforme disponham dos bens como recursos ou os procurem como necessidades. (POLANYI, 2012, p. 326-327).

53 Sob este título, no capítulo II de Economia e Sociedade, Weber (1999) apresenta o principal da sua

concepção de uma Sociologia Econômica, cujos conceitos conduzem à visão do fenômeno econômico como aquele em que interesses materiais, além do comportamento dos outros, dirigem a ação do indivíduo.

A “mercabilidade”, que compreende o “grau de regularidade com que um objeto costuma tornar-se objeto de troca no mercado”; a “liberdade de mercado”, entendida como o “grau de autonomia de cada interessado na troca, dentro da luta de preços e de concorrência” e a “regulação do mercado”, ou seja, a limitação material, “por determinadas ordens, [d]a mercabilidade de possíveis objetos de troca e [d]a liberdade de mercado para possíveis interessados na troca” seriam, para Weber (2000, p. 50), os aspectos característicos de tal situação de mercado.

Analisado como uma estrutura social, o mercado é concebido como “formas recorrentes e padronizadas de relações entre atores, mantidas por meio de sanções”, segundo a formulação de Swedberg (2004, p. 255). Para Bourdieu (2001), o que chamamos de mercado é o conjunto das relações de troca entre agentes colocados em concorrência, interações diretas que dependem, como disse Simmel, de um “conflito indireto”, ou seja, da estrutura socialmente construída das relações de força, em que os diferentes agentes participantes no campo contribuem, em diferentes graus e por meio das modificações que conseguem impor, em particular mediante a utilização dos poderes estatais que estão em condições de controlar e dirigir.

Distanciando-se da perspectiva canônica da ciência econômica, Abramovay (2004, p. 36) afirma que “o estudo dos mercados como estruturas sociais enraíza os interesses dos indivíduos nas relações que mantêm uns com os outros e não supõe um maximizador abstrato, isolado, por um lado, e a economia, por outro, como resultado mecânico da interação social”. Assim, é preciso considerar a subjetividade dos agentes econômicos, a diversidade e a história das formas de coordenação, as representações mentais que orientam as relações dos agentes entre si e sua capacidade de conseguir e infundir confiança, de negociar, respeitar contratos, definir e efetivar direitos. A propalada racionalidade dos agentes econômicos, defendida unilateralmente pela ciência econômica, não se mostra suficiente para a ação no contexto do mercado, visto que a conduta dos agentes individuais e dos grupos encontra sua explicação no social, sendo, portanto, influenciada por crenças comuns e regras orientadas por mecanismos oriundos das relações sociais.

Embora seja a instituição central sobre a qual se ergue e se estrutura a economia neoclássica, paradoxalmente, o mercado não foi, e continua não sendo, objeto de investigação e análise pela literatura da Economia e da História Econômica. Observa-se que o estudo do mercado tem sido preterido pelo enfoque sobre as empresas, as firmas, como assinalou Ronald Coase (1937): contemporaneamente, os economistas têm priorizado a determinação dos preços de mercado em detrimento da investigação sobre a praça de mercado. Para

Abramovay (2004, p. 36), “é o mercado como fato histórico localizado geograficamente e composto por entidades vivas, encarnadas, em suma, como instituição – não apenas como mecanismo geral de coordenação –, que tende permanentemente a ser ofuscado”54. Na literatura econômica, a expressão ‘estrutura de mercado’ refere-se antes a aspectos meramente quantitativos das firmas, da diversificação de produtos, do que ao ‘mercado enquanto instituição social’ facilitadora das trocas.

A abordagem canônica das ciências econômicas consolidou-se pelo padrão hegemônico dos princípios do ‘comportamento maximizador e racional’ do homo oeconomicus e do equilíbrio oferta-demanda-preços, característico do mercado auto- regulável, hipóteses consideradas como verdades inquestionáveis e absolutas. Apesar da divisão do trabalho que acabou destinando à Economia o estudo dos mercados, do dinheiro, dos investimentos etc., enquanto às Ciências Sociais coube a questão urbana, o poder, as sociedades tradicionais etc., a vida econômica, como aspecto importante da sociabilidade humana, sempre esteve na pauta das pesquisas históricas e estudos socio-antropológicos, incluindo autores clássicos como Marx, Weber, Simmel, Durkheim e Mauss, dentre outros, até autores mais contemporâneos, como Braudel, Polanyi e Bourdieu.

De forma articulada, em meados dos anos 1980, dissemina-se, a partir dos Estados Unidos, uma série de estudos inovadores que se apropriam de ferramentas conceituais alienígenas à teoria econômica para produzir explicações de fenômenos até então considerados da competência dos profissionais da economia. Na emergente Nova Sociologia Econômica, “os mercados passam a ser encarados como formas de coordenação social caracterizadas por conflitos, dependências, estruturas e imprevisibilidades muito distantes da imagem canônica consagrada na teoria do equilíbrio geral” (ABRAMOVAY, 2004, p. 39). Forçando as fronteiras disciplinares, a Nova Sociologia Econômica questiona muitos pressupostos fundamentais da teoria econômica neoclássica, sendo o principal deles o que coloca a economia como esfera autônoma da vida social, e reivindica a imersão da economia na vida social, como apregoara Karl Polanyi, anteriormente, na década de 1940, com a publicação de A Grande Transformação: as origens de nossa época.

A caracterização da ciência econômica como “uma categoria particular de práticas” dissociada “da ordem social na qual toda prática humana está imersa” (BOURDIEU, 2001, p. 11) remete ao postulado da economia como uma ciência ‘separada’, com que John Stuart Mill

54 Fernand Braudel é exceção à regra, ao investigar a dinâmica de mercados antigos e modernos, em Civilização Material, Economia e Capitalismo – Séculos XV-XVIII – Os Jogos das Trocas (2009) e A Dinâmica do Capitalismo (1987).

proclamara a (suposta) autonomia desta ciência em relação ao ambiente social. A dimensão subjetiva da ação econômica foi sistemática e intencionalmente ignorada ou, melhor, descartada, pelos teóricos da economia neoclássica que, no entanto, tinham conhecimento da sua existência e influência, tal como demonstrado por Mill, ao referir-se à interdependência de todos os fatos que operam na vida social, e Keynes, ao falar que as ações econômicas do homem eram determinadas por outras razões, negligenciáveis por seu caráter irregular, incerto e caprichoso, além do desejo de riqueza. Entretanto, reafirmou-se, então, a emancipação da economia de qualquer outra ciência do homem e da sociedade, passando a pairar, acima de tudo e de todos, qual o Espírito Absoluto hegeliano.

A ruptura desse paradigma, reivindicada pela Nova Sociologia Econômica, é, na verdade, uma retomada de proposições anteriores, como as formuladas por Weber, com sua concepção de Economia Social (Sozialökonomik), ciência envolvendo teoria, história e sociologia econômicas, em que o significado aparece como aspecto importante do fenômeno econômico; por Mauss (Ensaio sobre a dádiva), na década de 1920, ao confrontar o fetichismo da mercadoria com o sistema da dádiva recorrente nas sociedades tradicionais; e, posteriormente, por Polanyi (A Grande transformação), na década de 1940, ao formular uma concepção substantivista do econômico em contraposição à concepção formalista consagrada pela ciência econômica.

A ideia de ‘economia de mercado’, já o demonstrara Polanyi, não contempla a totalidade de ações imprescindíveis à reprodução social e à própria sobrevivência do homem. Em A subsistência do homem e ensaios correlatos (2012), Polanyi estabelece uma distinção definitiva e esclarecedora entre a economia substantiva – a materialidade da vida econômica – , e a economia formal, representada pela noção de racionalidade maximizadora, característica das interações de mercado.

O primeiro significado, o formal, provém do caráter lógico da relação meio- fins, como em economizar ou conseguir algo a baixo preço; desse significado provém a definição de econômico pela escassez. O segundo, o significado substantivo, aponta para a realidade elementar de que os seres humanos, como quaisquer outros seres vivos, não podem existir sem um meio físico que os sustente; eis a origem da definição substantiva de econômico. (POLANYI, 2012, p. 63). [grifos do autor].

Para Polanyi, portanto, o que o significado substantivo põe em relevo é o fato inquestionável e flagrante de que a sobrevivência do homem depende de suas relações com a natureza e com os seus semelhantes. A economia aparece, então, como a instância de interação institucionalizada com o meio natural, ao fornecer os meios materiais para a

satisfação das necessidades humanas55. A inegável imersão (embedded) da esfera econômica na vida social, assinalada desde os anos 1940 por Polanyi, foi amplamente ressaltada pelas “novas” abordagens propostas no campo da sociologia:

A sociologia econômica contemporânea tem justamente essa característica de conceber os mercados como resultados de formas específicas, enraizadas, socialmente determinadas de interação social, e não como premissas cujo estudo pode ser feito de maneira estritamente dedutiva. (ABRAMOVAY, 2004, p. 44).

Segundo Zamagni (1995), a concepção dos mercados como relações sociais reais e vivas implica conceber as relações de mercado como a constante investida dos agentes para alcançar o reconhecimento pelo outro, envolvendo, dessa maneira, a reciprocidade nesse reconhecimento. No entanto, para Marx, tal reconhecimento é camuflado pelo seu contrário, o ‘estranhamento recíproco’: no domínio do mercado, as relações entre os agentes são mediatizadas e fetichizadas sob a forma de coisas e de dinheiro. Em outras palavras, resulta que em sociedades mercantis como nossas sociedades capitalistas, as relações de mercado assumirão, necessariamente, um caráter alienante, pois a situação de mercado só consente aos agentes se relacionarem e se reconhecerem mediante coisas, tornando-se reféns de um dispositivo alheio à sua vontade e ao seu desejo. Marx, seguido depois por Weber, reconhece na troca despersonalizada o símbolo mais representativo da sociedade capitalista. Na exposição que faz das condições formais de ocorrência das trocas, no primeiro capítulo de O Capital, Marx assinala como fundamental a condição generalizada de proprietários de mercadorias, característica das relações entre os agentes: estes se reconhecem na generalidade de tal condição e não na particularidade de suas pessoas (subjetividades).

Ao ressaltar o caráter impessoal do mercado, mesmo que ainda o considere como um tipo ideal, no capítulo VI (inacabado) de Economia e Sociedade, Weber se aproxima da argumentação de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, sem que a ela se refira explicitamente: Quando o mercado é deixado à sua legalidade intrínseca, leva apenas em consideração as coisas, não a pessoa, inexistindo para ele deveres de fraternidade e devoção ou qualquer das relações humanas originárias sustentadas pelas comunidades pessoais [...] O mercado, em contraposição a todas as demais relações comunitárias que sempre pressupõem a confraternização pessoal e, na maioria das vezes, a consangüinidade, é estranho, já na raiz, a toda confraternização. (WEBER, 1999, p. 420). [grifo nosso].

55 Ao analisar as relações entre sociedade e natureza, Marx ([1968]; 1996; 2013) esboça a noção de

“intercâmbio orgânico”, ou “metabolismo social”. SCHMIDT (1982) contém uma abordagem aprofundada desta noção. Cf. também TOLEDO (2013) e TOLEDO e MOLINA (2014), para a proposição do conceito de metabolismo social para a discussão da questão ecológica contemporânea e da sustentabilidade.

As proposições da Nova Sociologia Econômica implicaram uma reorientação teórica quanto ao arcabouço conceitual sobre o mercado, que é, então, definido como “uma esfera pública da vida social, uma esfera de interação social cujo conteúdo depende de um conjunto de condições que não estão dadas de antemão”, segundo palavras de Abramovay (2004, pp. 48-49). O enfoque dos mercados, concebidos como socialmente construídos, destituídos das visões mágicas de moinhos satânicos (Polanyi, 2000) pulverizando as instituições culturais, científicas e sociais, retira-os da condição de instituição autônoma da sociedade, pressuposto caro ao cânone da economia (neo)clássica segundo a qual seriam “mecanismos neutros de equilíbrio entre indivíduos isolados uns dos outros [...] fatores de corrupção e pasteurização da cultura humana e das formas mais nobres de existência social” (ABROMOVAY, 2009, p. 76). A impessoalidade dos mercados, cuja autonomia e anonimato das unidades constitutivas que ocasionalmente se embatem guiadas pela flutuação dos preços, e o caráter autoritário e impositivo de suas ordenações para a obediência cega de indivíduos inertes têm sido alvo das críticas da nova sociologia.

A análise sociológica do mercado constitui, portanto, o objetivo privilegiado das investigações desenvolvidas pela Nova Sociologia Econômica, a partir da década de 1980. Embora a sociologia econômica clássica (Durkheim, Weber, Simmel, Veblen, Marx), surgida no final do século XIX, tenha reagido à preeminência da teoria econômica marginalista, denunciando seus pressupostos teórico-metodológicos, mediante os quais a ciência econômica se afirma independente e acima do meio social, a despeito de ser também uma ciência social, alguns teóricos da Nova Sociologia Econômica (SWEDBERG, 2004; GRANOVETTER, 2007; STEINER, 2006; ZELIZER, 2009) reivindicam uma (suposta) ruptura estabelecida nos estudos do fenômeno do mercado, ao “analisar os fatos econômicos de maneira a fornecer explicações alternativas às teorias econômicas, sobretudo à teoria standard neoclássica”, como assinala Raud-Mattedi (2005, p. 227).

Como visto, anteriormente, o caráter formalista, etnocêntrico e politicamente comprometido das teorias econômicas hegemônicas já havia sido questionado, anteriormente, por Karl Polanyi, a partir da publicação de A Grande Transformação: as origens da nossa época (1944), no qual formula uma definição substantiva do econômico para refutar a definição formalista e a noção autonomista e apologética do mercado auto-regulável, desvinculado do meio social, pressuposto defendido pela economia neo-clássica e ainda dominante na contemporaneidade.

A característica fundamental do sistema econômico do século XIX foi sua separação institucional do resto da sociedade. Numa economia de mercado, a

produção e a distribuição de bens materiais são efetuadas por meio de um sistema autorregulador de mercados, regido por leis próprias – as chamadas leis da oferta e da procura – e motivado, em última instância, por dois incentivos simples: o medo da fome e a esperança do lucro. (POLANYI, 2012, p. 95).

O conceito de embeddedness (enraizamento, imersão), formulado por Polanyi, explica a ruptura ocorrida no mundo moderno, quando a sociedade e a natureza foram tragadas pelo fenômeno do mercado, passando a acessórios deste: “em vez de a economia estar embutida [enraizada] nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas [enraizadas] no sistema econômico” (POLANYI, 2000, p. 77). A noção de enraizamento (embeddedness) é exposta claramente, ao apresentar a descoberta considerada mais importante das investigações históricas e antropológicas naquela época – “a economia do homem, como regra, está submersa em suas relações sociais.”

Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse de bens materiais, ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências sociais, seu patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus propósitos. Nem o processo de produção, nem o de distribuição está ligado a interesses econômicos específicos relativos à posse de bens. Cada passo desse processo está atrelado a um certo número de interesses sociais, e são estes que asseguram a necessidade daquele passo. É natural que esses interesses sejam muito diferentes numa pequena comunidade de caçadores ou pescadores e numa ampla sociedade despótica, mas tanto numa como noutra o sistema econômico será dirigido por motivações não-econômicas. (POLANYI, 2000, p. 65).

Nas palavras de Polanyi encontram-se ecos de formulações semelhantes de Weber, quando ressaltava a importância do significado da ação econômica, que era sempre social em