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3 MERCADO, PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DAS FOLHAS

4. A MERCADORIA FOLHA E SUAS FORMAS

4.4 Trocas, dádivas, mercadorias

As sociedades humanas precedentes às nossas, ao contrário do que afirma o paradigma da economia clássica e contemporânea, não eram alheias ao mercado, de resto um fenômeno humano recorrente, mas desenvolviam, sim, outros regimes de troca e de contrato, inteiramente distintos, em que dar, receber e retribuir constituía o fundamento das transações humanas. Antecipando a argumentação de Karl Polanyi, Mauss, no Ensaio sobre a dádiva (1925), já afirmava o aspecto “enraizado” das relações econômicas na sociabilidade dos indivíduos da comunidade:

Em primeiro lugar, não são indivíduos, são coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias que se enfrentam e se opõem seja em grupos frente a frente num terreno, seja por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas maneiras ao mesmo tempo. Ademais, o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas um dos momentos, e nos quais a circulação de riquezas não é senão

um dos termos de um contrato bem mais geral e bem mais permanente. (MAUSS, 2003, pp. 190-191).

Quando a folha sai da esfera da circulação, realizando-se como valor de uso (para usar os termos de Marx), e é consumida na reclusão devota do ritual do candomblé – ou na privacidade doméstica do uso terapêutico –, ela assume a forma de oferenda, uma dádiva que realiza o “valor de vínculo”100 do devoto com a comunidade religiosa e as divindades, os

orixás. A mercadoria, que o era há pouco, no momento em que foi adquirida no mercado, transformou-se agora em oferenda/dádiva, mediada pelas encantações (ofó) proferidas e pela manipulação de avivamento de suas propriedades, trabalho vivo conduzido pelo(a) babalorixá/ialorixá, num evento revestido de todo o simbolismo do rito litúrgico que acompanha a oferenda votiva que é depositada no assentamento ou peji101 da respectiva divindade ou orixá.

No sistema da dádiva, a coisa dada leva algo do ser do doador que a faz retornar: no candomblé, ao fazer uma oferenda, o devoto se submete ao preceito ritual em que as folhas envolvidas estão relacionadas às divindades da sua cabeça (ori) e em algum momento nelas se transmitem seu hálito, seu axé, compondo a dádiva que será ofertada num ato devocional e ritualizado, ao mesmo tempo voluntário e obrigatório – dada porque devida – e que será retribuída pela divindade, o axé que retorna cada vez que é alimentado.

Para Elbein dos Santos (1976), o axé, o conteúdo mais precioso do terreiro, é o fundamento de toda a atividade religiosa, contido nos elementos utilizados nos atos litúrgicos e nos procedimentos rituais. Assim, o axé é cultivado e alimentado ao longo do percurso ritual dos indivíduos e da comunidade de culto, ou seja, a cada vez em que, individual ou coletivamente, são feitas oferendas e obrigações às divindades, o axé é transmitido, fixado ou revitalizado:

É a força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir. Sem axé, a existência estaria paralisada, desprovida de toda possibilidade de realização. É o princípio que torna possível o processo vital. Como toda força, o axé é transmissível: é conduzido por meios materiais e simbólicos e acumulável. É uma força que só pode ser adquirida pela introjeção ou por contato. Pode ser transmitida a objetos ou a seres humanos.

100 “Os economistas clássicos e Marx, seguindo Aristóteles, afirmam que os bens possuem um valor de

uso e um valor de troca. A definição restrita da dádiva permite mostrar que os bens e serviços valem também, e às vezes de maneira preponderante, em função da sua capacidade de criar e reproduzir relações sociais, laços, vínculos sociais. Não possuem, portanto, apenas um valor de uso e um valor de troca, mas também um valor de vínculo. Na dádiva, assim caracterizada, o fato fundamental é que o vínculo é mais importante que o bem em si.” (LEITE, 2009, p. 52).

101 Assentamento ou peji é o altar da divindade (orixás, voduns, inquices) onde ficam depositados os

símbolos, emblemas, objetos sagrados, recipientes de comidas votivas, quartinhas com água e outros utensílios.

[...] O axé é contido numa grande variedade de elementos representativos do reino animal, vegetal e mineral quer sejam da água (doce e salgada) quer da terra, da floresta, do “mato” ou do espaço “urbano”. O axé é contido nas substâncias essenciais de cada um dos seres, animados ou não, simples ou complexos, que compõem o mundo. (ELBEIN DOS SANTOS, 1976, pp. 39- 40)

No candomblé, determinados vegetais, sejam as folhas e/ou as raízes, os frutos e as sementes, são elementos portadores de axé, sendo utilizados de várias maneiras, segundo preceitos e ritos litúrgicos apropriados a cada finalidade, circunstância e divindade e ainda sujeitos às pequenas variações de ordem litúrgica, conforme as “nações” do culto, mas revestidos de segredos e interdições. Assim, as oferendas, os sacrifícios, os rituais de iniciação e de consagração implicam sempre a utilização das folhas/ervas como meio de transmissão, fixação e revitalização do axé.

Dada sua importância na prática ritual e a sua significação, [...] Òsányìm [é o] orixá patrono da vegetação, das folhas e de seus preparados.

As folhas, nascidas das árvores, e as plantas constituem uma emanação direta do poder sobrenatural da terra fertilizada pela chuva e, como esse poder, a ação das folhas pode ser múltipla e utilizada para diversos fins. Cada folha possui virtudes que lhes são próprias e, misturadas a outras, formam preparações medicinais ou mágicas, de grande importância nos cultos, onde nada pode ser feito sem o uso das folhas. (ELBEIN DOS SANTOS, 1976, p. 91).

Estas características do axé o aproximam de várias noções de poder mágico, de força mística e sobrenatural presentes nas coisas, na natureza e nos seres, que integram práticas rituais e cerimoniais de muitas sociedades tradicionais, tal como assinalado por Mauss (2003): A famosa noção de manitu, entre os Algonquinos, em particular os Ojibwa, corresponde suficientemente, no fundo, ao nosso mana melanésio. A palavra

manitu designa ao mesmo tempo, (...), não um espírito, mas toda espécie de

seres, de forças e qualidades mágicas e religiosas. (...) “as plantas têm

manitu”; (MAUSS, 2003, pp. 148-149).

É lícito, portanto, concluirmos que em toda parte existiu uma noção que envolve a do poder mágico. É a noção de uma eficácia pura, que no entanto é uma substância material e localizável, ao mesmo tempo que espiritual, que age à distância e no entanto por conexão direta, quando não por contato, móvel e movente sem mover-se, impessoal e assumindo formas pessoais, divisível e contínua. (MAUSS, 2003, p. 151).

Enquanto o mercado compreende mecanismos propiciadores de um padrão de relações de caráter impessoal, tal como assinalado por Weber (1999), ao confrontar em eventos efêmeros sujeitos sociais que se comportam como agentes neutros, a dádiva conserva elementos das relações anteriores que não se eliminam ao encerrar-se a transação dessas trocas. Se o mercado conserva do passado apenas o preço, a dádiva estabelece um vínculo social entre os sujeitos, expresso na tríade “dar, receber, retribuir”, num misto complexo de

liberdade e obrigação. Na dádiva, as coisas em circulação adquirem um valor simbólico e estabelecem um vínculo social entre os agentes, para além do valor de uso e do valor de troca característicos da forma mercadoria no circuito das trocas mercantis. Na situação de mercado, o indivíduo busca desfazer-se da dívida que contrai na compra da mercadoria com o imediato pagamento equivalente ao recebido, enquanto no sistema da dádiva procura alimentar a dívida simbólica, criando o vínculo social.

Ao considerarmos o uso ritual das folhas – a esfera do consumo que está fora, portanto, do circuito da economia – no âmbito privado dos processos ritualizados do candomblé, por exemplo, a coisa folha assumirá um valor de vínculo diferenciado, a depender do circuito de atuação, de operação e de trânsito: sob a forma sagrada de ewé, a folha circunscreve-se à esfera da dádiva, na medida em que a coisa (ewé) circula como oferenda que, por um ato voluntário do devoto ou iniciado, é presenteada às divindades, consistindo este próprio ato devocional numa “obrigação” (preceito religioso) cuja realização a comunidade religiosa espera que seja praticada pelo devoto/iniciado. Por outro lado, a dádiva, aqui representada pela oferenda que o devoto faz no peji do orixá, apesar de sua aparência livre e gratuita, implica, necessariamente, a expectativa de retribuição da coisa ofertada, para que se estabeleça o vínculo entre os sujeitos, neste caso, o devoto e a divindade, o orixá. Revela-se, então, de forma inequívoca, o caráter aparentemente desinteressado da dádiva, que, na realidade, propicia “uma espécie de implícita imposição ao contra-dom” (LEITE, 2009, p.42), manifestando-se, assim, o princípio de reciprocidade, pressuposto por Polaniy (2000), que faz emergir interesses dos sujeitos (do devoto-ofertante, pela graça obtida, e da divindade- orixá, pela fidelidade do praticante), ao produzir, de maneira indireta, vínculos sociais.

A dádiva, ou o dom é indissociavelmente livre e obrigado, interessado e desinteressado. Obrigado porque não se doa qualquer coisa a qualquer pessoa, em qualquer momento e de qualquer modo e porque os momentos e formas de dom, de doação são, em realidade, instituídos socialmente, como bem nota o holismo. Mas, inversamente, se se trata apenas de simples ritual e pura mecânica, expressão obrigatória de sentimentos obrigados de generosidade, então nada mais seria realmente realizado, porque o dom, mesmo se socialmente imposto, assume e adquire sentido somente em certo clima de espontaneidade. (MAUSS, 2003, p. 261).

A oferenda no candomblé, conforme a descrição acima, pode ser considerada como uma manifestação da dádiva da graça, em um processo intenso de vivência do extraordinário, quando o princípio de reciprocidade estabelece laços sociais ou vínculos entre ofertante e divindade, numa relação de troca inteiramente distinta da relação efêmera da troca mercantil, porque se trata de uma troca simbólica. O devoto, ao fazer sua oferenda, de maneira aparentemente livre, voluntária e desinteressada, estabelece um vínculo com a divindade,

sobretudo de caráter simbólico, de tal forma que a retribuição posterior da oferenda feita assume a forma de e representa uma graça concedida pela divindade. Pode ser aplicada aqui, a observação de Mauss sobre o contínuo entrelaçamento dos aspectos utilitário e simbólico, do interesse e do desinteresse que caracteriza a dádiva.

Na dádiva a manutenção da dívida entre os agentes é a condição de reprodução do sistema de trocas, ou seja, o ato de “retribuir” (o contra-dom) o dom recebido é cercado de incerteza, e, assim, habita uma zona de risco no que diz respeito à sua concretização, afastando-se da relação de equivalência entre coisas que define a transação no mercado, onde os agentes buscam liquidar a dívida contraída no ato de compra e venda, à sombra da relação contratual característica da troca mercantil. Mediada pelo dinheiro que paga o equivalente da mercadoria recebida, tal relação contratual encerra a dívida neste ato, esquivando-se, portanto, do surgimento de possíveis vínculos interpessoais. Uma vez que na dádiva a retribuição não é simétrica, nem imediata, sua efetivação posterior acaba por suscitar, e alimentar, o caráter simbólico da dívida. Entre o “receber” e o “retribuir”, estende-se um tempo de dívida simbólica do agente receptor da dádiva. Esse é o tempo de maturação do vínculo social entre os agentes. No exemplo da oferenda do candomblé, esta precisa consumir-se no peji da divindade antes que o contra-dom se efetive sob a forma de graça concedida pelo orixá, alimentando o sistema de trocas simbólicas ao estabelecer uma nova dívida que fará tudo recomeçar novamente. O vínculo social assume formas ritualizadas de culto de oferendas, de dons e contra-dons.

Ao contrário da dádiva, o mercado se orienta pela contratualidade efêmera e implícita das relações de compra e venda: o comprador paga no ato a mercadoria que recebe para liquidar a dívida de compra, impedindo, assim, o surgimento de qualquer vínculo interpessoal com o vendedor. Mas, quando as mateiras da Pedra, que são vendedoras, na Feira de São Joaquim compram entre si, isto é, quando adquirem de outras mateiras as mercadorias (folhas) de que precisam para completar um pedido de seus fregueses (compradores/barraqueiros), acabam estabelecendo um estreito vínculo interpessoal com as colegas de atividade, com quem criam laços de interdependência, amizade e solidariedade e junto a quem, igualmente, ao final das transações do mercado naquela jornada, irão quitar a dívida contraída. Vale observar que, mesmo nessa situação de mercado há outras determinações, que não apenas o ganho monetário, envolvendo as trocas. A lealdade e a solidariedade entre os supostos “concorrentes” ou “competidores” da definição (neo)clássica do homo oeconomicus são a manifestação mais evidente da existência de relações comunitárias, de vínculos simbólicos, com a formação de redes sociais, de caráter espontâneo, que caracterizam o sistema da dádiva.

As mateiras sabem que o mercado (afinal tudo que é levado por outrem, lhes é pago depois, ao preço do mercado, e numa próxima ocasião a situação pode ser invertida, com o devedor passando a credor) estabelece um regime diferente da “forma necessária da troca” (MAUSS, 2003, p.188). Observa-se, assim, a emergência de um padrão de relação comunitária no contexto do mercado que contradiz as afirmações de Weber (1999).