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A combinação de de a advérbios, quantificadores e epítetos

Além do comportamento diferenciado em relação às demais preposições, há ainda outros aspectos que evidenciam a neutralidade semântica de de. Um deles envolve as chamadas preposições complexas, exemplificadas em (46) a seguir: de pode se combinar tanto a um morfema locativo, como nos casos em (a), como a locuções de natureza adverbial (preposição seguida de substantivo), exemplificadas em (b). A preposição a também pode

compor uma preposição complexa, como em (c), mas os casos são bem menos freqüentes e produtivos que as realizações com de.

(46) a. dentro de, antes de, depois de, acima de, atrás de, detrás de, abaixo de b. ao lado de, na frente de, ao fim de, ao encontro de, ao término de, a ponto de c. em frente a, junto a

Notemos que a locução preserva o significado do nome ou do advérbio, com a preposição de não trazendo qualquer contribuição semântica. A necessidade de que o morfema locativo ou o nome se associe a de parece consistir numa condição para que essas categorias possam ganhar um complemento, como podemos observar nos casos em (47) a seguir. Contrariamente, se o argumento do advérbio não estiver in loco, como nos casos em (48), a preposição de deixa de ser requerida, com a sua realização, nesses casos, sendo inaceitável. Uma análise viável para esse paradigma é a de que a preposição de esteja sendo inserida por razões de Caso, nos mesmos moldes que o assumido por Chomsky (1986) em torno de of-insertion nos contextos de complementação nominal do inglês.

(47) a. Deu muito cupim atrás *(de) o guarda-roupa. b. Está cheio de gente na frente *(de) a igreja. c. Teve uma briga antes *(de) a reunião.

(48) a. O guarda-roupa deu muito cupim atrás (*de). b. A igreja está cheia de gente na frente (*de). c. A reunião teve uma briga antes (*de).

Preposições complexas podem ser tomadas então como a associação de um item semanticamente pleno (um nome ou um advérbio) a um item semanticamente vazio (a preposição de), de modo a garantir que o complemento da relação seja adequadamente licenciado, provavelmente para efeitos de Caso. A relação é similar à observada no interior de uma perífrase verbal, formada pela reunião de uma categoria auxiliar (que consiste num verbo semanticamente esvaziado) a um verbo dito principal, semanticamente pleno, como em tenho comprado, estou comendo, foi lavado etc.: a preposição de estaria para os auxiliares ter, estar e ser, assim como os nomes e os advérbios estariam para os verbos principais comprar, comer e lavar.

Construções que expressam quantidade, como as destacadas em (49) a seguir, podem ser tratadas nos mesmos termos. Em tais casos, em vez de ser combinada a advérbios, a preposição de se associa a constituintes nominais que expressam quantidade. O termo junto à preposição pode tanto ser a combinação de um quantificador e um nome (dez litros, vários copos), como corresponder a um elemento que indica quantidade em si mesmo (toneladas, milhares) ou um quantificador existencial isolado (três, alguns). Da mesma forma que entre as preposições complexas que envolvem advérbios/locuções adverbiais, a preposição de nestes casos exerce apenas um papel funcional: ela não interfere na semântica da quantidade e nem porta qualquer conteúdo semântico, atuando apenas como um elemento que licencia (o que também pode se dar em termos de marcação de Caso) a conexão entre uma expressão quantificadora e um termo que funciona como seu complemento.11

(49) a. A moça comprou dez litros de leite. b. O rapaz tomou vários copos de cerveja.

c. Toneladas de lixo foram removidas pelo caminhão.

d. Milhares de pessoas migram para o sudeste todos os anos. e. Três dos alunos exigiram a demissão do professor.

f. O PT nem pensa em expulsar alguns dos seus deputados corruptos.

Uma propriedade em comum entre esses casos envolvendo quantificadores e aqueles com advérbios é o fato de a preposição de deixar de ser requerida quando o segundo termo da relação não ocorre internamente ao DP, como nos casos em (50) a seguir. Esse comportamento pode ser tomado como uma evidência de que, também entre essas construções, a preposição de não contribui para a composição de sentido, exercendo somente um papel gramatical.

(50) a. Leite, a moça comprou só dez litros (*de). b. Cerveja, o rapaz tomou vários copos (*de). c. Lixo, o caminhão removeu toneladas (*de).

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Observando casos de línguas como o holandês, Corver (2002) propõe que esses construções resultam do que se pode chamar de inversão de predicados. Transpondo a análise desse autor para os dados do português, o constituinte dez litros atuaria como um predicado para o termo leite. Em algum ponto da derivação, esse predicado se move para o especificador da preposição de, c-comandando leite, resultando na expressão dez

litros de leite. Na análise de Corver (2002), preposições como de seriam uma versão do verbo copulativo em

d. Pessoas, migram milhares (*de) para o sudeste todos os anos. e. Os alunos, parece que três (*de) exigiram a demissão do professor.

f. Os deputados rebeldes, a imprensa divulgou que o PT expulsou alguns (*de). Os chamados epítetos preposicionados, em que um atributo e um nome são intermediados pela preposição de, como nos casos destacados a seguir, também exibem um comportamento similar. Novamente, não há razões para acreditar que de esteja contribuindo na composição de sentido destas construções. Sua função parece ser meramente conectiva e, talvez, como argumentado para os contextos anteriores, a de fazer com que atributos do tipo idiota, gostosa, estúpido etc. ocorram com um argumento nominal.

(51) a. Aquele idiota do Pedro esteve aqui. b. O Roberto beijou a gostosa da Ana.

c. Aquele estúpido do Luís tratou mal os funcionários. d. A Ana saiu com aquela doida da Maria.

e. O cachorro do Roberto falou coisas terríveis.

f. O computador não está lendo aquela porcaria de disquete.

Também nestes casos, a não realização do argumento após o adjetivo leva à rejeição da preposição, indiciando mais uma vez que a presença de de se dá por razões estritamente gramaticais, e não semânticas.

(52) a. O Pedro, eu acho que aquele idiota (*de) esteve aqui. b. A Ana, todos viram a gostosa (*de) beijando o Roberto.

c. O Luís, ouvi dizer que aquele estúpido (*de) trata mal os funcionários. d. A Maria, a Ana saiu com aquela doida (*de) para ir ao cinema.

c. O Roberto, a Ana disse que o cachorro (*de) falou coisas terríveis com ela. d. O disquete, o computador não está lendo aquela porcaria (*de).

Por fim, cabe ressaltar que os próprios adjuntos adnominais prescindem da preposição se o termo modificador não estiver in loco, como observamos em (53)-(56) a seguir. Também entre esses casos a preposição não contribui para a composição de sentido (o que se confirma pelo conjunto dos dados já tratados nas seções anteriores), com sua função igualmente podendo estar atrelada a provimento de Caso para o termo modificador.

(53) a. Parece que só está faltando a empregada limpar a janela da sala. b. A sala, parece que só está faltando a empregada limpar a janela (*de). (54) a. Eu só li um livro de Machado de Assis.

b. Machado de Assis, eu só li um livro (*de). (55) a. A criança quebrou o controle da televisão.

b. A televisão, a criança quebrou o controle (*de). (56) a. Vão demitir todos os funcionários da biblioteca.

b. A biblioteca, vão demitir todos os funcionários (*de).

Os dados apresentados ao longo desta seção sugerem que os termos combinados à preposição de em diferentes domínios tomam esse item por razões de ordem gramatical. Essas razões podem estar, nos termos de Chomsky (1986), atreladas à necessidade de marcação de Caso. O estatuto de formas como dentro de, em cima de e atrás de pode ser o mesmo que quilos de ou estúpido de, no que diz respeito ao papel exercido pela preposição: de entraria nestas construções para permitir que advérbios, substantivos e adjetivos recebam um argumento. Quanto aos adjuntos adnominais, que serão os contextos sobre os quais irei me deter, a entrada da preposição de é uma condição gramatical necessária para licenciar o elemento comumente tomado como modificador. A formalização que irei propor para os padrões de adjunção adnominal no português brasileiro procurará capturar este caráter gramatical da preposição de, envolvendo especificamente o seu uso entre adjuntos adnominais, à luz dos pressupostos teóricos que irei assumir a partir do capítulo 2.