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Até aqui, tenho trabalhado com a idéia de ser impossível, do ponto de vista semântico, fornecer um eixo nocional em torno do qual possam ser concebidas as relações com de entre adjuntos adnominais, diferentemente do que observamos com outras preposições. Uma idéia que pode ser explorada, em termos intuitivos, é a de conceber a preposição de como um “índice relacional ao extremo” quando em domínios nominais: ela associa dois elementos nominais entre os quais se pode estabelecer qualquer tipo de relação. Estaríamos então diante de uma espécie de conector sem qualquer compromisso com os papéis temáticos que entram em jogo na relação. Nesse sentido, como já destacado

anteriormente, de teria um comportamento similar ao dos verbos auxiliares, que (numa língua como o português brasileiro) normalmente não escolhem o verbo principal a que se associa, ou como artigos, que não podem se restringir a ocorrer com determinados tipos de nomes, ou ainda como o morfema sufixal indicador de número (-s), que também não pode escolher a natureza da palavra à qual vai se juntar para indicar o plural. A preposição de corresponderia então a uma categoria gramatical que intermedeia, grosso modo, a representação de uma relação qualquer estabelecida entre dois elementos nominais.

Se essa relação pode ser de um tipo qualquer, uma propriedade esperada dos sintagmas-de é a de que eles demonstrem um alto grau de ambigüidade. Ou seja, se descontextualizada, uma expressão realizada com de pode ter vários significados. Tomemos como exemplo o caso da sentença a seguir.

(57) O rapaz do carro perguntou pela Ana.

Em princípio, sem qualquer ancoragem contextual, é impossível determinar o significado de o rapaz do carro. A expressão pode corresponder, por exemplo, a qualquer uma das destacadas adiante, o que mostra que basta ser estabelecida uma relação entre rapaz e carro, sem importar a natureza da relação, para que a preposição de entre em jogo.

(58) a. Aquele rapaz que tem o carro mais bonito da rua perguntou pela Ana. b. Aquele rapaz dentro do carro perguntou pela Ana.

c. Aquele rapaz que quer vender um carro perguntou pela Ana.

d. Aquele rapaz que quer comprar o carro da Maria perguntou pela Ana. e. Aquele rapaz que conserta carro perguntou pela Ana.

f. Aquele rapaz que estava encostado no carro perguntou pela Ana. g. Aquele rapaz que vive falando de carro perguntou pela Ana. h. Aquele rapaz que elogiou o carro da Maria perguntou pela Ana. i. Aquele rapaz que roubou um carro perguntou pela Ana.

j. Aquele rapaz que foi atropelado pelo carro da Maria perguntou pela Ana. k. Aquele rapaz que trabalhou na propaganda de um carro perguntou pela Ana. l. Aquele rapaz que pintou o carro da Maria perguntou pela Ana.

m. Aquele rapaz que quebrou o carro perguntou pela Ana.

n. Aquele rapaz que eu sonhei que estava dentro do carro perguntou pela Ana. São possíveis combinações das mais inusitadas. Em (59a) a seguir, por exemplo, o prédio do boi pode significar um prédio que tem um boi desenhado ou que tem a

escultura de um boi na portaria, ou ainda ser referência a um prédio que já tenha sido invadido por um boi, dentre inúmeras outras possibilidades. Da mesma forma, a camiseta do beijo pode ser uma camiseta com a figura de duas pessoas se beijando, uma camiseta que tenha sido dada a alguém em troca de um beijo, uma camiseta que tenha sido usada quando se estava beijando alguém, uma camiseta com vários lábios em “posição de beijo” estampados etc. No mesmo caminho, interpretações das mais variadas podem ser fornecidas para o livro da chuva, o CD da confusão, a rua do raio e a tesoura da novela, respectivamente nos casos em (c)-(f).

(59) a. O prédio do boi é aquele que fica ali na esquina. b. A camiseta do beijo está no guarda-roupa. c. O livro da chuva desapareceu.

d. O CD da confusão ficou na casa da Maria. e. A rua do raio é do outro lado da cidade. f. Eu ainda não achei a tesoura da novela.

Há, contudo, um fator que restringe a amplidão de sentidos possíveis para um sintagma-de, que é a ausência de um determinante introduzindo o nominal modificador. Comparemos, por exemplo, os casos em (a)-(b) de (60) a (63) a seguir: nos casos em (a), o nome interno ao sintagma-de vem acompanhado de um determinante, e a relação pode apontar para sentidos diversos, da mesma forma que entre os dados em (59) acima; nos casos em (b), diferentemente, o nome interno ocorre sem o determinante, e o sentido parece ser único: em todos estes casos, a referência deve ser, respectivamente, para um rapaz usando boné, uma criança vestindo short azul, um moço usando brinquinho e uma bolsa contendo livros. Note-se também que nomes abstratos reportando a algum evento não podem ocorrer sem um determinante, como mostrado pelos contrastes em (64)-(67) adiante.

(60) a. O rapaz do boné ligou para a Ana. b. O rapaz de boné ligou para a Ana. (61) a. A criança do short azul está chorando.

b. A criança de short azul está chorando.

(62) a. Aquele moço do brinquinho deve ser estrangeiro. b. Aquele moço de brinquinho deve ser estrangeiro.

(63) a. Aquela bolsa dos livros pertence à Ana. b. Aquela bolsa de livros pertence à Ana. (64) a. A moça do susto ficou com raiva.

b. * A moça de susto ficou com raiva.

(65) a. O rapaz do grito está olhando para a Maria. b. * O rapaz de grito está olhando para a Maria. (66) a. O livro do choro está guardado na estante.

b. * O livro de choro está guardado na estante. (67) a. A escada do tombo vai ser reformada.

b. * A escada de tombo vai ser reformada.

Os casos envolvendo quantificadores para o constituinte interno à preposição são mais idiossincráticos. Não é clara, por exemplo, a generalização que se pode aplicar para os casos em (68)-(71) a seguir: em (a), temos a situação em que vamos poder atribuir uma gama de significados ao sintagma-de; em (b), contudo, com casos em que ocorre um quantificador sem a presença do artigo, as avaliações não são tão nítidas: pelo menos na minha intuição, a expressão ora apresenta uma aceitabilidade marginal, como em ??o rapaz de dois brinquinhos e ??aquela bolsa de três livros, ora soa bem-formada, como aquela camisa de dois botões e aquela casa de três quartos.

(68) a. Aquele rapaz dos dois brinquinhos está paquerando a Maria. b. ?? Aquele rapaz de dois brinquinhos está paquerando a Maria. (69) a. A bolsa dos três livros está com a Ana.

b. ?? A bolsa de três livros está com a Ana. (70) a. A camisa dos dois botões está lavando.

b. A camisa de dois botões está lavando.

(71) a. Aquela casa dos três quartos custa o olho da cara. b. Aquela casa de três quartos custa o olho da cara.

Qualquer que seja a generalização proposta para esse conjunto de construções, os fatos apresentados nesta seção mostram mais uma faceta de de como um elemento semanticamente neutro quando nucleando termos adnominais. Por um lado, sintagmas-de mostram-se altamente ambíguos; por outro, a ausência ou presença de certos elementos combinados aos constituintes da relação, como artigos definidos e quantificadores, é o que parece determinar, em última instância, as possibilidades de significado da relação. A

importância desse conjunto de dados reside no fato de que, também aqui, a preposição de não interfere na construção do sentido: é a presença ou a ausência de certos tipos de determinante, atrelada ao conteúdo veiculado pelo constituinte nominal, que direciona a interpretação da expressão, ainda que não nos seja claro qual deve ser, em boa parte dos casos, a melhor forma de estabelecer essa direção.