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A compreensão da realidade: autonomia política e pastoral

2 A COMISSÃO PASTORAL DA TERRA DE ALAGOAS

2.4 A compreensão da realidade: autonomia política e pastoral

Essa leitura e as intervenções foram, e ainda são, construídas e alimentadas em redes, enquanto CPT nacional e regional e Igreja institucional. Advoga-se que mesmo sendo Igreja, existe um recorte, com espaços específicos que determinam uma autonomia política a nortear o conjunto da CPT, tais como o seu Congresso Nacional, a sua Assembleia Nacional, o seu Conselho Nacional, a sua Formação Nacional, o seu Conselho Regional, as suas Coordenações Nacional e Regional, instâncias que a CPT toma como orientação pastoral e política. Essas orientações são incorporadas pelas CPT locais, o que nem sempre representa o pensamento ou o posicionamento da Igreja nacional ou local.

Utiliza-se como exemplo o projeto governamental que propõe a transposição das águas do rio São Francisco. O conjunto da CPT se posicionou publicamente como signatário da nota pública do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo30, contrariamente à transposição das águas do rio São Francisco; denunciou-a como uma obra desnecessária, enquadrando-a como uma repetição da indústria da seca, com o objetivo de favorecer o agrohidronegócio. A Igreja, mesmo diante de uma questão nacional, não mostrou uma posição coesa. A autonomia e a autoridade na formulação dos argumentos contrários a transposição, explícitos nas posições públicas, garantem o nivelamento interno e o respeito da hierarquia da Igreja, mesmo quando trilha caminhos opostos.

A atuação da CPT/AL incorpora uma leitura nacional, sem desconsiderar os elementos regionais e locais que compõem, obrigatoriamente, essa leitura nacionalizada. A conjuntura

29 Arquivo Eclesiástico de Alagoas. Comissão Pastoral da Terra. Fundo: Encontro estadual sobre violência.

Alagoas. 1993, p. 5.

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Não se mostram sedutoras as promessas de “reforma agrária” ao longo dos canais, não só porque a maior parte das terras é imprópria a assentamentos rurais, senão porque tais ações não farão frente à reconcentração de terra e água e poder que a transposição irá provocar. Desta forma a obra não vai modificar, antes vai potencializar a estrutura agrária, econômica, política e social que, em última instância, é a grande responsável pelo quadro de sofrimentos que há séculos atormenta o Nordeste e inquieta o Brasil. A transposição não debela, antes alimenta a “indústria da seca”, agora moderna, globalizada. Disponível em:

local é absorvida e analisada na rede da CPT e retorna, na ação, como um instrumento capaz de garantir apoio às lutas dos assalariados da cana, dos posseiros e dos semterra, bem como a unidade da própria CPT.

Nesse mosaico construído a partir das realidades é que se acha o esclarecimento da ação pastoral da CPT, e justamente nele é que surge uma compreensão, construída historicamente, da sociedade de classes, ainda que conflituosa, um terreno fértil para o serviço pastoral junto aos explorados do campo, no qual a CPT definiu ser presença solidária e profética, conforme expressa na sua missão31:

Nesta sociedade, as classes sociais são marcadas pelo antagonismo e pelas relações de exploração e de dominação geradoras dos conflitos sociais.

Estes conflitos de interesses alinham, de um lado, na disputa pela terra, os fazendeiros latifundiários e grileiros lutando para que se mantenha e se perpetue a situação atual que os beneficia. Do outro lado, os posseiros, parceiros, arrendatários, assalariados e pequenos proprietários lutando para defender o direito de ter um pedaço de terra para sobreviver (CPT, 1983, p. 29-30).

A CPT/AL exerce, graças à sua especificidade de pastoral, a função de animar e incentivar processos de encorajamento dos subalternos do campo no enfrentamento das estruturas antes inquestionáveis. Em solo alagoano, essa relação tem o seu prelúdio com os canavieiros e posseiros, e processualmente foi se aproximando da luta dos semterra. O seu repertório foi construído na práxis, combatendo a concentração da propriedade da terra, a exploração da força de trabalho e a violência, incorporando um discurso voltado para a construção da justiça e da paz – fundamentos indispensáveis à superação da sociedade açucareira. São essas razões que respondem pela sua criação e atualidade, por sua opção clara e recorrente pelos dominados, como se expressa no apoio às famílias semterra que ocuparam o latifúndio canavieiro chamado Flor do Bosque.

Outro componente que contribui na práxis pastoral da CPT/AL são as histórias de vida. Esses relatos produzem subsídios objetivos e subjetivos que fortalecem um discurso em defesa dos direitos dos canavieiros e da conquista da terra. São elementos essenciais na formulação da fala pública por justiça social, por paz no campo e reforma agrária. Esses diálogos ou escutas colaboram com a memória dos explorados do campo; constituem fontes históricas esclarecedoras, permitindo que esses sujeitos e seus cotidianos apareçam na narrativa política dos conflitos agrários. Evidencia-se essa importância no diálogo entre uma

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A CPT quer ser uma presença solidária, profética, ecumênica, fraterna e afetiva, que presta um serviço educativo e transformador junto aos povos da terra e das águas, visando estimular e reforçar seu protagonismo. Disponível em: http://www.cptnacional.org.br/index.php/quem-somos/missao.

trabalhadora da cana e o padre Luiz Canal, membro da CPT/AL e pároco de Novo Lino, quando a trabalhadora expõe a sua situação e a sua visão de vida, diante do suicídio da filha:

Um dia uma pobre mãe canavieira me procurou para pedir uma missa para uma filha de 21 anos que tinha se suicidado. E me contou a história: era uma filha solteira que vivia no engenho, cortando cana e o administrador da fazenda a tinha engravidado, mas quando nasceu o filho, não quis assumir nada; a moça caiu no desespero e tomou veneno. Como eu tento lamentar o fato e propor alguma providencia, a mãe me diz: “Mas está bom assim, Padre, graças a Deus; muito melhor assim do que ela ficar aqui se matando todo dia dentro do canavial, com sol ou chuva, para não ver o filhinho morrer de fome, ter que receber um salário ridículo da mão do próprio homem que a condenou a esta situação, ou andar roubando o marido das outras, como faz a maioria, porque ninguém mais quer compromisso com ela. Melhor assim, padre: lá está bem melhor do que aqui” (CPT,1992).

A ocupação da Fazenda Flor do Bosque, no final da década 1990, na Zona da Mata Norte, no município canavieiro de Messias, é um marco na ação pastoral da CPT/AL. Esse acontecimento coloca a luta em defesa da reforma agrária e o apoio aos semterra como prioridades da ação pastoral.

A fim de elucidar com mais consistência e detalhamento o repertório da CPT/AL no tocante às categorias acompanhadas (canavieiros, posseiros e semterra), elege-se a ocupação da Fazenda Flor do Bosque como a exteriorização da transfiguração pastoral da CPT/AL. Assim, trabalham-se dois períodos, o antes e o depois da Flor do Bosque, ressaltando elementos, acontecimentos e depoimentos que podem esclarecer quando e como ocorreram essas mudanças.