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A COMUNICAÇÃO ABERRANTE

No documento Deleuze e o problema da comunicação (páginas 34-37)

Há ainda uma última dimensão que iremos abordar nesse trabalho acerca da noção de comunicação para Deleuze: a comunicação aberrante. Esse é um conceito que surge nos anos 1970 em sua obra, especificamente durante a redação de O Anti-Édipo, em parceria com Guattari, e na redação da segunda versão de seu livro sobre Proust, escrita nos anos 1970. Da mesma forma, podemos trazer uma coleção de trechos que abordam a comunicação durante os anos 1970, especialmente nos trabalhos que Deleuze escreveu com Guattari, mas também naqueles escritos sozinho . Podemos notar que a comunicação segue aparecendo com proeminência e com uma lógica bastante semelhante à dos anos 1960, ainda que com mudanças relevantes de vocabulário e com problemas mais específicos:

1) Ora, uma comunicação que não é feita de acordo com uma dimensão

compreendida nas dimensões daquilo que comunica, podemos chamá-la de uma comunicação aberrante. Exemplo famoso desse tipo de comunicação: o zangão e a orquídea.

(DELEUZE, 2003/2016, p. 44)

2) Há comunicação, mas ela é feita sempre entre vasos não-comunicantes; há

abertura, mas ela se opera entre caixas fechadas. Sabe-se que a orquídea apresenta, desenhada sobre sua flor, a imagem do inseto, com suas antenas, e é essa imagem que o inseto vai fecundar, assegurando assim a fecundação da flor fêmea pela flor macho: para indicar essa espécie de cruzamento, de convergência entre a evolução da orquídea e a do inseto, um biólogo contemporâneo pôde falar de uma evolução a-paralela, que é exatamente o que entendo por comunicação aberrante. (Ibid., p. 44).

3) colocá-los um do lado do outro e deixá-los inventar seu sistema de comunicação

que sempre nos surpreende, que cria prodigiosos acasos e despista nossas suspeitas (o segredo dos signos). (DELEUZE, 1976/2010, p. 133).

4) Ver é exatamente reduzir o outro aos lados contíguos não comunicantes que o

constituem e esperar o modo de comunicação transversal que essas metades compartimentadas encontrarão um jeito de criar. (Ibid., p. 133).

5) Uma comunicação que não seria colocada como princípio, mas que resultaria do

jogo das máquinas e de suas peças separadas, de suas partes não comunicantes. (Ibid., p.

6) Não é mais o mundo dos discursos e de suas comunicações verticais exprimindo

uma hierarquia de regras e posições, mas o mundo dos encontros anárquicos, dos acasos violentos, com suas aberrantes comunicações transversais. (Ibid., p. 166).

7) Relações aberrantes entre vasos fechados; zangão que faz a comunicação entre as

flores e que perde seu valor animal próprio para ser, com relação a elas, apenas um pedaço composto à parte, elemento disparatado num aparelho de reprodução vegetal. (Ibid., p. 167).

8) Por mais que o telefone normal seja uma máquina de comunicação, funciona como

uma ferramenta, porque serve para projetar ou prolongar vozes que como tais não fazem parte da máquina. Mas aqui a comunicação atinge um grau superior, dado que as vozes compõem uma peça com a máquina, devêm peças da máquina, distribuídas e ventiladas aleatoriamente pelo aparelho automático de resposta. (DELEUZE; GUATTARI, 1972/2010,

p. 512-513).

9) Já não se trata de confrontar o homem e a máquina para avaliar as

correspondências, os prolongamentos, as substituições possíveis ou impossíveis entre ambos, mas de levá-los a comunicar entre si para mostrar como o homem compõe peça com a máquina, ou compõe peça com outra coisa para constituir uma máquina. (Ibid., p. 509-510).

10) Proust dizia, pois, que o todo é produzido, que é produzido como uma parte ao

lado das partes, que ele não unifica nem totaliza, mas às quais se aplica instaurando comunicações aberrantes entre vasos não comunicantes, unidades transversais entre elementos que mantêm toda a sua diferença nas suas dimensões próprias. (Ibid., p. 63).

11) Se o neo-evolucionismo afirmou sua originalidade, é em parte em relação a esses

fenômenos nos quais a evolução não vai de um menos diferenciado a um mais diferenciado, e cessa de ser uma evolução filiativa hereditária para tornar-se antes comunicativa ou contagiosa. (DELEUZE; GUATTARI, 1980/2012, p. 19).

12) O neo-evolucionismo parece-nos importante por duas razões: o animal não se

define mais por características (específicas, genéricas, etc.), mas por populações, variáveis de um meio para outro ou num mesmo meio; o movimento não se faz mais apenas ou sobretudo por produções filiativas, mas por comunicações transversais entre populações heterogêneas. (Ibid., p. 20).

13) Então se é como o capim: se fez do mundo, de todo mundo, um devir, porque se

fez um mundo necessariamente comunicante, porque se suprimiu de si tudo o que impedia de deslizar entre as coisas, de irromper no meio das coisas. (Ibid., p. 78).1

1É importante destacar o caráter de transição que Mil platôs ocupa nessa tese. Encontramos nessa obra ambos os usos do conceito de comunicação, tanto de seu ponto de vista crítico como criativo. É justamente nela que começamos a ver a passagem de um conceito a outro. Por exemplo, quando discute a linguagem a

Essas citações nos convidam a pensar a comunicação pelo menos em três sentidos distintos. O primeiro é o da relação entre homem-máquina. O conceito de máquina é fundamental para a reflexão proposta em O anti-Édipo e Mil platôs, e aparece com muito interesse à nossa pesquisa, que relaciona diretamente máquinas e comunicação: argumentaremos que a relação que se estabelece entre homem e máquina (ou máquinas e máquinas) não é uma relação de uso, mas uma relação de comunicação.

Também observamos que Deleuze, pela primeira vez, define e caracteriza a comunicação. Fala que em Proust há um dispositivo de funcionamento da obra que consiste em uma comunicação transversal. Da mesma forma, fala de uma comunicação que não se define por aquilo que comunica, ou seja, por sua mensagem, mas pelo próprio processo de transformação dos elementos que estão em jogo: a isso chama de comunicação aberrante.

Deleuze usa um dos exemplos mais recorrentes de sua obra, a vespa e orquídea, para definir a comunicação aberrante como “evolução a-paralela”. Mas adiante, destaca como o neoevolucionismo baseou-se justamente nessa ideia para distinguir-se da teoria da evolução tradicional: a evolução deixa de ser um fenômeno de filiação ou hereditário, e se torna comunicativo. Com o exemplo da vespa e da orquídea, Deleuze está chamando atenção ao potencial transformador, mutagênico, das relações de comunicação: entrar em relação com uma diferença transforma invariavelmente ambos os termos da relação, produz um tornar-se, um devir. No caso de compostos biológicos, trata-se de uma evolução conjunta, não mais paralela, mas simbiótica, por comunicação. Ou seja, adentramos em um mundo que se faz pelo devir: nas palavras de Deleuze, um mundo necessariamente comunicante.

Há aqui uma diferença entre as abordagens dos anos 1960 e 1970 – mas uma diferença comunicante: apesar de cada uma tratar de fenômenos distintos, notamos uma continuidade na noção de comunicação discutida: uma relação entre diferenças, uma afirmação da disjunção, um processo transformador. Essa lógica subjacente parece ser o que nos dá consistência para afirmar, ao fim da análise dos textos, que há uma filosofia da comunicação em Deleuze.

Organizaremos esse capítulo final em também três eixos: um primeiro eixo, focado na segunda parte de Proust e os Signos (1976/2010), discutindo o que Deleuze chama de transversal; um segundo eixo, focado em O anti-Édipo, para estabelecer a comunicação maquínica; e um terceiro eixo, focado na apropriação de Deleuze da teoria da evolução e seu foco em complexos simbióticos enquanto multiplicidades comunicantes, sob o nome de evolução a-paralela.

comunicação é entendida como transmissão, e criticada. Entretanto, nas citações acima, vemos como a comunicação funciona como dispositivo fundamental para o devir e as alianças. É preciso distinguir esses pontos caso a caso, dentro do contexto no qual aparecem.

No documento Deleuze e o problema da comunicação (páginas 34-37)