• Nenhum resultado encontrado

A COMUNICAÇÃO DAS DIFERENÇAS

No documento Deleuze e o problema da comunicação (páginas 30-34)

Tal como fizemos em relação à perspectiva crítica de Deleuze acerca da comunicação, apresentaremos um conjunto de citações que expressam o modo como ele usa o termo durante os anos 1960. Antes de expô-las, porém, cabe uma nota a respeito da constituição de nosso

corpus principal. Assim como O que é a filosofia (1991/2010) é o livro em que Deleuze mais

fala sobre comunicação em sua fase mais tardia, constituindo-se assim como principal objeto de estudo dessa fase para nossa tese, nos anos 1960 elegemos o livro Diferença e repetição (1968/2018) para analisar como trabalha a comunicação. Em paralelo a essa obra, o livro

Lógica do sentido (1969/2011) também desenvolve questões importantes para a comunicação,

mas muitas delas se sobrepõem ao que Deleuze escreve em Diferença e repetição. Dessa forma, utilizaremos Diferença e repetição como principal livro para desenvolver a ideia da comunicação das diferenças, tendo Lógica do sentido como uma obra de apoio para as discussões propostas por Deleuze.

Dito isso, podemos notar como a comunicação de fato tem uma presença importante em Diferença e repetição, muitas vezes vinculada a conceitos centrais dessa obra:

1) Se supomos que as séries entram em comunicação sob a ação de uma força

qualquer, vemos que esta comunicação relaciona diferenças a outras diferenças ou constitui, no sistema, diferenças de diferenças: estas diferenças em segundo grau desempenham o papel de “diferenciante”, isto é, relacionam umas às outras as diferenças de primeiro grau.

(DELEUZE, 1968/2018, p. 158).

2) Quando a comunicação é estabelecida entre séries heterogêneas, toda sorte de

conseqüências flui no sistema. Alguma coisa "passa" entre os bordos; estouram acontecimentos, fulguram fenômenos do tipo relâmpago ou raio. Dinamismos espaçotemporais preenchem o sistema, exprimindo ao mesmo tempo a ressonância das séries acopladas e a amplitude do movimento forçado que as transborda. (Ibid., p. 158).

3) Quando falamos de uma comunicação entre séries heterogêneas, de um

acoplamento e de uma ressonância, não é à condição de um mínimo de semelhança entre as séries e de uma identidade no agente que opera a comunicação? (…) E, em primeiro lugar, qual é este agente, esta força que assegura a comunicação? O raio fulgura entre intensidades

diferentes, mas é precedido por um precursor sombrio, invisível, insensível, que lhe determina, de antemão, o caminho revertido, como no vazio. Do mesmo modo, todo sistema contém seu precursor sombrio, que assegura a comunicação das séries que o bordam. (Ibid.,

p. 159)

4) toda oposição remete a uma "disparação", e as oposições só são resolvidas no

tempo e no extenso na medida em que os disparates tenham, primeiramente, inventado sua ordem de comunicação em profundidade e na medida em que tenham reencontrado esta dimensão em que eles se envolvem, trançando caminhos intensivos que só podem ser reconhecidos no mundo ulterior do extenso qualificado. (Ibid., p. 314)

5) Aparece, assim, um campo "problemático" objetivo, determinado pela distância

entre ordens heterogêneas. A individuação surge como o ato de solução de um tal problema ou, o que dá a mesma, como a atualização do potencial e o estabelecimento de comunicação entre os disparates. O ato de individuação não consiste em suprimir o problema, mas em integrar os elementos da disparação num estado de acoplamento que lhe assegura a ressonância interna. (Ibid., p. 326)

6) O essencial é que não encontramos nesses sistemas qualquer identidade prévia,

qualquer semelhança interior. Tudo é diferença nas séries e diferença de diferença na comunicação das séries. (Ibid., p. 392)

7) Todo fenômeno fulgura num sistema sinal-signo. Chamamos de sinal um sistema

que é constituído ou bordado por, pelo menos, duas séries heterogêneas, duas ordens disparatadas capazes de entrar em comunicação; o fenômeno é um signo, isto é, aquilo que fulgura nesse sistema graças à comunicação dos disparates. (Ibid., p. 297)

8) Com efeito, o intensivo, a diferença na intensidade, é ao mesmo tempo o objeto do

encontro e o objeto a que o encontro eleva a sensibilidade. Não são os deuses que são encontrados; mesmo ocultos, os deuses não passam de formas para a recognição. O que é encontrado são os demônios, potências do salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, e que só preenchem a diferença com o diferente; eles são os porta-signos. E é o mais importante: da sensibilidade à imaginação, da imaginação à memória, da memória ao pensamento, quando cada faculdade disjunta comunica à outra a violência que a leva a seu limite próprio, é a cada vez uma livre figura da diferença que desperta a faculdade, e a desperta como o diferente desta diferença (Ibid., p. 198)

9) O próprio princípio de uma comunicação, mesmo violenta, parece manter a forma

de um senso comum. Entretanto, não se trata disto. (...) O uso transcendente das faculdades é, propriamente falando, um uso paradoxal, que se opõe a que seu exercício se dê sob a regra

de um senso comum. Além disso, o acordo das faculdades só pode ser produzido como um acordo discordante, pois cada uma só comunica à outra a violência que a coloca em presença de sua diferença e de sua divergência com todas (Ibid., p. 199).

Essa seleção de citações (que foi abreviada por motivos de exposição, afinal há muito mais referências ao termo ao longo dessas obras) demonstra que a comunicação tem um papel não apenas central na articulação de conceitos fundamentais para o pensamento de Deleuze (diferença, acontecimento, violência, disparidade e heterogeneidade) como também demonstra a posição diferenciada que o termo ocupa em relação às obras tardias. Vemos, aqui, ainda que, de forma incipiente, possíveis pistas para uma formalização mais precisa de como opera o conceito propositivo de comunicação na obra de Deleuze.

Primeiro, notamos que a comunicação nesse momento para Deleuze é uma relação entre diferenças; ou melhor, a relação entre diferenças é o que Deleuze chama de comunicação. Se nos anos 1980 a comunicação era um dispositivo próprio da representação, isto é, um dispositivo para reduzir as diferenças a uma identidade, aqui o conceito parece mudar de perspectiva. A comunicação é o próprio processo pelo qual as diferenças entram em relação enquanto diferenças, sem apelar a uma identidade previamente constituída. Podemos constituir um primeiro eixo problemático, que diz respeito ao estatuto das relações diferenciais enquanto comunicação para Deleuze.

Em seguida, outro termo parece ganhar destaque na relação com a comunicação:

sistema. Deleuze constitui, em Diferença e repetição, um refinado pensamento sistêmico, em

cujo centro jaz a ideia de comunicação. O sistema é constituído por séries heterogêneas e só passa a entrar em movimento a partir da comunicação entre tais séries. Quando tal comunicação ocorre, diz Deleuze, toda sorte de consequências passa a ocorrer. Ora, nos parece que a comunicação, do ponto de vista do sistema, é central. Por isso constituímos as particularidades do sistema e do processo de individuação, tornando a comunicação o nosso foco de leitura, como o segundo eixo problemático da comunicação das diferenças. Desenvolveremos o capítulo partindo desde a ordem de relação das diferenças, sua organização no que Deleuze chama de séries heterogêneas, passando pelas formas comunicacionais do acoplamento, da ressonância e do movimento, e problematizaremos o que Deleuze chama de “agente que possibilita a comunicação”, o precursor sombrio. Tal discussão permite que desenvolvamos um passo a passo do que significa afirmar que a comunicação, nesse momento, é entendida do ponto de vista ontológico.

Há também a indicação de uma comunicação que se contrapõe à ideia de senso comum. Já discutimos a relação entre o conceito tardio de comunicação em Deleuze com a ideia de senso comum. Entretanto, aqui ele parece querer deixar clara uma oposição, marcando firmemente que, nesse momento, a comunicação tem menos a ver com o senso comum e mais com uma violência. Mas de que violência se trata? Aqui vemos a importância de dois conceitos fundamentais, que articulam o nosso terceiro eixo de problematização da comunicação das diferenças: signo e encontro; ou, para sermos sintéticos, o encontro violento com o signo.

Como podemos notar, o signo é o resultado do processo de individuação, a forma pela qual a intensidade e as relações de diferenças aparecem no mundo da experiência. E, se por um lado o signo é resultado, ele também é gatilho do reinicio do processo do sistema, pois é o signo o elemento que produz a disparação. Ao mesmo tempo, é apenas a partir do encontro violento com o signo que o pensamento se desenvolve, para além de uma perspectiva amigável do conhecimento, próprio da filosofia da representação.

Ora, parece que desde esse momento já aparece a problematização do acordo. Se há uma filosofia da comunicação cujo objetivo ético e epistemológico é produzir acordos na forma de consensos, essa filosofia tem pouco lugar aqui. O acordo na filosofia da comunicação de Deleuze é um acordo discordante. O que é comunicado não é uma palavra para aplacar o conflito, mas a própria violência do choque entre diferenças. O acordo não pode ser final, ou mesmo almejado, senão sob a forma da discordância.

Se retomamos a questão do heterogêneo, vemos como essas noções dialogam. Trata-se de uma coleção de elementos que se mantêm “juntos” através da comunicação. Talvez seja por isso que ele diz que toda individualidade é comunicante, pois afirma a diferença que a constitui. A individualidade é uma heterogeneidade, composta por relações comunicantes entre diferenças. E, como Deleuze afirmará muitas vezes, toda diferença é uma diferença de intensidade.

O problema da comunicação das diferenças assim se desenvolve em três eixos, que abordaremos com um capítulo para cada: o problema da relação entre diferenças, o sistema diferencial e o encontro violento com o signo. A articulação entre esses três eixos visa investigar o modo específico pelo qual Deleuze entende a comunicação nos anos 1960, destacando os aspectos relevantes que tal entendimento pode produzir para o campo da comunicação.

No documento Deleuze e o problema da comunicação (páginas 30-34)