Muito antes da ocorrência de o processo de digitalização existir da forma disseminada como se dá atualmente, Metz (1974) já emitia um parecer semelhante. Pela sua proposição, o que poderia interessar para uma pesquisa não seriam questões relativas ao domínio das imagens enquanto gêneros (intenções sociais), como, por exemplo, a publicidade, ou questões relativas exclusivamente às suas unidades tecnossensoriais, entendidas como matérias de expressão (canais e veículos), como, por exemplo, a televisão; o que verdadeiramente interessaria a uma pesquisa, para onde os esforços deveriam ser dirigidos, seriam
as configurações estruturais, ‘formas’ na acepção hjelmsleviana do termo (formas do conteúdo ou formas da expressão), sistema. São entidades puramente relacionais,
campos de comutabilidade no interior dos quais diversas
unidades adquirem sentido, umas em relação às outras. (METZ, 1974, p. 14, grifo do autor).
Metz (1974) chama de campos de comutabilidade o espaço de intercâmbio entre imagens, quando uma imagem final só adquire sentido em relação à outra imagem. Em conformidade com a hipótese aqui proposta, as imagens adquirem sentido quando relacionadas aos espaços com os quais lidam e, principalmente, às imagens que também habitam os mesmos espaços.
Nesse sentido, confrontam‐se meios, media e ambientes. Por exemplo, o meio literário interage com o meio televisivo e vice‐versa, quando livros e gêneros literários misturam‐se no cinema e, no sentido inverso, livros sobre cinema e sobre atores e personagens são lançados, bem como quando escritores são contratados para escrever filmes e séries de TV e o meio fonográfico utiliza o meio digital para distribuir e divulgar músicas. A expressão cultural de suas produções é amplificada, reverberando por outras mídias. Em toda parte, os meios partem para a estratégia de que a união faz a força. No início do trabalho, afirmamos que sem espacialização não há imagens; agora, é necessário entender
como a espacialização das imagens torna‐se uma estratégia negociada para a criação de vários tipos de imagem que visam a dar conta da necessidade atual da “sociedade da informação” de novas experiências visuais.
Para Berger (1999), baseado no famoso estudo de Benjamin (1992) a respeito da reprodutibilidade técnica, o movimento das imagens rompe com o estatuto de unicidade das obras quando estas se desprendem da unicidade do local onde residiam. O significado das imagens muda, multiplica‐se e fragmenta‐ se em muitos significados. Assim, conclui ele, por conta da reprodutibilidade técnica à qual as imagens são submetidas pelos meios de reprodução modernos, remove‐se as imagens da guarda do espaço de ritual originalmente criado para elas, retirando‐as de seu invólucro e tornando‐as “efêmeras, ubíquas, insubstanciais, disponíveis, sem valor, livres” (BERGER, 1999, p. 34), envolvendo‐ nos do mesmo modo que uma linguagem que nos cerca. Uma vez que essas imagens vêm ao encontro do espectador, há, para Benjamin (1992), a atualização do objeto reproduzido, abolindo seu valor tradicional de patrimônio da cultura, tornando‐as sempre contemporâneas de quem as observa. O contexto no qual a imagem aparece é um aspecto que se torna relevante para a apreciação do significado desta, que muda de acordo com o que é imediatamente visto ao seu lado ou o que imediatamente vem depois dela.
A esse respeito, o pensamento pioneiro de Benjamin (1992) já considerava medium e imagem elementos separados, ao afirmar que “o modo em que a percepção sensorial do homem se organiza – o medium em que ocorre – é condicionado não só naturalmente, como também historicamente” (p. 80), que, portanto, não se esgota na descrição das características formais do estilo de uma época aparentes na imagem. Na medida em que o autor postula esse vínculo que acontece em simultaneidade entre a organização da percepção humana e a condição histórica do medium, ou seja, aquilo que o afeta enquanto desenvolvimento, seja no seu aspecto social ou técnico, reivindica o reconhecimento da importância da composição desse medium para a formação e transformação da percepção humana. Benjamin (1992), de certa maneira, afirma que o espaço que abriga a imagem torna‐se mais importante que a própria imagem, donde emana seu valor de culto, quando se enseja todo um cerimonial em torno da imagem. A reprodutibilidade técnica viria a aumentar a exponibilidade da obra, livrando‐a de seu confinamento medial, corroendo, com isso, a aura de veneração que a caracterizava. Essa reprodutibilidade é uma propriedade técnica do medium que orienta e induz a formação de imagens contrárias às pretensões de veneração ou perpetuação de seu significado e, por conta dessa característica, as imagens tornam‐se capazes de romper valores
136
tradicionais e formular outros, menos perenes. Para o autor, supera‐se o caráter único de qualquer realidade, por meio do registro da sua reprodução, este um dos fatores que afetam gravemente a visão de mundo existente que considerava a realidade unívoca.
Um dos pontos destacados por Benjamin (1992) é a condição de a imagem ser transportável e, mais do que isso, ser transportável para um lugar onde possa ser vista pelas massas. Este é o desejo imanente dessas imagens técnicas: ser vistas por um grande número de pessoas. No entanto, para adquirir essa exponibilidade, elas necessitam de auxílio, que só encontram ao se espacializar. Como exemplo, o autor diz que a fotografia e o cinema dependem de dispositivos técnicos elaborados com a função de permitir a reprodução sem restrições de suas imagens. Estas são técnicas que não só permitem a reprodutibilidade, mas a tornam obrigatória, pela necessidade de viabilização econômica mediante seu consumo intensivo. Para maximizar essa lógica econômica, faz‐se necessário transportar mais imagens em menos tempo, para cada vez mais pessoas.
3.2.1 Distribuição, fluxo e recombinação: remixabilidade
Da reprodutibilidade mecânica para a distribuição digital, Manovich (2005) encontra o que denomina remixabilidade, referente tanto à lógica quanto ao instrumento que molda a cultura digital. Segundo Lemos (2006), essa característica cria uma condição pós‐moderna de só se operar a partir de processos abertos e coletivos, nos quais a autoria não está mais determinada. Na cibercultura, isso significa operar a partir de apropriações e recriações, trazendo uma configuração cultural denominada por ele de “ciber‐cultura‐remix”, baseada na recombinação.
A questão da medialidade digital é colocada com toda a intensidade quando se verificam essas condições. Para Lemos (2006), a cibercultura caracteriza‐se por três “leis” fundadoras: a liberação do polo da emissão (da ordem do meio), o princípio de conexão em rede e de reconfiguração de formatos midiáticos (da ordem do medium) e as práticas sociais (da ordem do ambiente), havendo reflexos que acontecem nos espaços de imagens que reconfiguram toda a cultura em que nos encontramos, a ponto de impactar no próprio modo de vida atualmente proposto pela sociedade contemporânea.
De acordo com Manovich (2005), a remixabilidade é a prática de misturar, combinar e remisturar as informações digitais circulantes,
independentemente de sua matriz, procedência ou destinação. Para ilustrar esse procedimento, ele utiliza a metáfora da estação de trem, em que o trem é a informação ou “objeto de mídia” que circula e a estação é o usuário que recepciona, misturando‐o com outra informação, para daí o pacote de informação resultante viajar para outro destino, em que o processo é repetido. O autor aponta para a diferença estrutural entre o modelo tradicional de comunicação e esse modelo descrito, que torna o receptor não mais o ponto‐ final da informação, mas uma estação temporária no trânsito dela.
A nomenclatura é recente, mas o mesmo procedimento‐chave pode ser encontrado na música desde os anos 1980. De modo geral, segundo Manovich (2005), a maioria das culturas humanas opera e se desenvolve por meio de empréstimos e redesenhos de formas e estilos de outras culturas e os remixes resultantes são incorporados em outras culturas. Foi assim que Roma Antiga recombinou a Grécia Clássica e a Renascença recombinou a Antiguidade. Entretanto, o autor sublinha que tanto a remixabilidade cultural quanto a vernacular propiciada pelas técnicas de computação são parte do mesmo
continuum. Por sua vez, Diamond (2011) aponta que a “cultura remix” é uma
forma de colagem que se origina da apropriação dos muitos movimentos ocorridos no interior do final do modernismo e no pós‐modernismo, como colagem, movimento dadaísta, grafite, fotomontagem, pop art, arte processual,
scratch video, entre outros. Segundo ela, esses movimentos pretendiam minar a
aura e autenticidade da imagem e abrir o seu significado pela mudança do seu contexto e interpretação.
Do lado de quem usufrui dessas produções imagéticas, instala‐se uma inevitável confusão. Os apreciadores de imagens são incentivados a se tornar autores de novos artefatos visuais e elaborar novas experiências com a imagem, aumentando em muito a complexidade dessa situação. As classificações que determinavam as diferenças entre essas produções também foram gradualmente eliminadas, à medida que se tornaram obsoletas. A exibição dá‐se numa miscelânea de imagens de maneira não mais programada pelos tradicionais meios de comunicação de massa, mas por todo o entorno. O fluxo de imagens transborda a barragem que a represava em canais controlados pelo monopolismo tecnoburocrático, dispersando o poder instituído pela produção centralizada e pelo saber especializado, numa inundação de micronarrativas do cotidiano, que circulam de computador em computador como de mão em mão.
O princípio de conexão em rede traz a reboque a questão do fluxo informacional, comunicacional e imagético, que se torna mais relevante nos
138
tempos digitais. Se antes eram debatidos dentro dos círculos fechados dos estudos dos media, quando o principal interesse estava ainda voltado para o meio televisivo com suas imagens pulsantes e massageadoras, agora, com o meio digital, os questionamentos sobre o fluxo alargam‐se bastante, na mesma medida em que se afrouxam os limites que guarneciam seu entendimento. O fluxo não é uma corrente de ar disposta a circular por qualquer porta aberta, nem uma chuva que desaba sobre nós. Assim como não há rio que corra sem um leito, não há fluxo de informação que se estabeleça sem um sistema de escoamento, mesmo que este seja rizomático ou ramificado. Como visto anteriormente, o fluxo é da ordem do medium, portanto uma característica espacial e não do conteúdo que circula por ele. Fala‐se em fluxo de conteúdo apenas porque o medium possibilita que certos conteúdos trafeguem por suas vias. O fluxo digital é um composto medium/conteúdo indissociável voltado à expansão das características visuais desse meio. É uma atividade originada no espaço criado pelo meio e patrocinada pela tecnicidade que o caracteriza.
O meio digital possibilita a integração de múltiplas linguagens num intenso jogo de combinação. Dentro desse playground ilimitado, parece que tudo se torna possível. Postman (2006), em Amusing ourselves to death, sublinha a questão de que “mudanças nos meios de comunicação induzem mudanças na estrutura da mente das pessoas ou mudanças na sua capacidade cognitiva” (p. 27) e, como resultado disso, a estrutura do discurso é modificada. Embora baseadas no estudo da televisão, suas declarações são altamente relevantes para o meio digital, como quando afirma que “mudanças no ambiente simbólico são como mudanças no seu ambiente natural.” (p. 27). Ele ainda sublinha o aspecto de que na televisão todo discurso público toma a forma de entretenimento, isto é, para ele, o tipo de conteúdo que é emitido em um meio é determinado pela capacidade particular daquele meio de formar seu conteúdo. Para o autor, “na televisão, o discurso é conduzido largamente pela imagética visual, o que quer dizer que a televisão nos dá conversação por imagens, não palavras.” (p. 7). Seu principal argumento é que a forma exclui o conteúdo, no sentido de “cada
medium, como a linguagem si mesma, faz possível um modo de discurso peculiar
ao prover uma nova orientação para o pensamento, para expressão, para sensibilidade.” (p. 10). Sua preocupação, em meados dos anos 1980, tanto se traduzia em afirmar que a televisão enfatizava a satisfação de nossa necessidade de entretenimento em detrimento da qualidade da informação quanto em apontar para os efeitos da mudança de uma era tipográfica, da cultura escrita, para uma era da televisão, da cultura da imagem.
Se essas circunstâncias foram colocadas por Postman (2006) ao estudar a televisão, meio de comunicação de massa dominante, tanto na época quanto ainda hoje – porém com influência bastante diminuída –, ao se concentrar no estudo do meio de comunicação como estruturador do discurso que afeta a cultura, como isso se dá com o meio digital, à medida que este caminha para o primeiro posto na preferência dos indivíduos, naquilo que Vilches (2003) chama de migração digital? Segundo esse autor, “a vida econômica e política, assim como as relações sociais, a educação e o entretenimento estão submetidos a um processo de migração que alguns já batizaram de nova ordem social” (p. 12‐13), sendo esta expressa numa “sociedade digital que é, simultaneamente, território de desenvolvimento econômico e centro das comunicações.” (p. 13). Essa ambiguidade marca o meio digital: não só é constituído para comunicar, mas constitui‐se como a mais importante plataforma socioeconômica da atualidade, dividindo‐se entre usuários profissionais e usuários com experiência de espectador passivo.
O meio digital consegue reunir múltiplas esferas de produção em torno da mesma plataforma técnica, constituindo a infraestrutura da comunicação e assumindo a coordenação dos outros grandes sistemas técnicos, colocando‐se a serviço de outros fenômenos tecnossociais que tendem à integração mundial: finanças, comércio, pesquisa científica, mídias, transportes, produção industrial etc. (LÉVY, 2003), e, a partir da interconexão geral das informações, da máquina e dos homens, promove intensos diálogos e intercâmbios, um alcance inimaginável para a televisão. Para Vilches (2003), estamos diante de uma ruptura radical entre dois tipos de experiência de uso dos meios, como efeito da migração digital. Enquanto os espectadores de televisão obtêm uma experiência comunicativa que não exige nenhuma competência ativa, os usuários digitais, a partir da experiência interativa das novas mídias, são levados à ação pela mediação da tecnologia. O autor destaca que, possivelmente, o advento mais espetacular da migração digital tenha a imagem como protagonista, dado que recoloca em pauta a relação entre imagem e realidade.
Isso se deve, em grande parte, ao fato de a produção da imagem digital incidir sobre a natureza da linguagem, que é comum a qualquer imagem (FERRARA, 2002). Ao se afastar das amarras da representação que a limitava a copiar o mundo, a imagem digital volta‐se para si mesma, para aquilo que há no seu interior, que é a própria linguagem. Desse modo, como afirma Ferrara (2002, p. 61), essa imagem digital “não se coloca no nível de reprodução da realidade [...] mas produz imagens que se fazem representar, sem matriz referencial.”
140
Seriam, nesse caso, “imagens inexistentes referencialmente, mas passíveis de existência imaginária.” (p. 62). Isoladamente, a imagem digital tem o seu próprio universo referencial. Quem determina o referente é o próprio usuário, dependendo da conexão que este desejar assumir. A imagem digital é “representativa de uma possibilidade que reinventa o real e estimula uma outra fonte criadora de imagens: o imaginário” (p. 62), assinalando que o que muda é a percepção do que é o real agora: uma possibilidade imaginária.
Na cultura digital, o universal compartilhado em tempo real impossibilita a totalização, porque não existe nenhum contexto claramente relacionado com a imagem. A imagem desterritorializa‐se à medida que se propaga, descontextualizando‐se pela fragmentação exigida no processo e recontextualizando‐se na interconexão, descompromissada com qualquer significação totalizante, ou seja, de produzir e impor um só sentido. A espacialidade da imagem nesse espaço de conexão está situada em nenhum lugar e está em todos os lugares, o que supõe uma desistoricização da experiência. Já não remete a nada, somente a si própria e para a capacidade que o receptor terá que ter desenvolvido para decodificar imediatamente a mensagem.
Em termos de experiência individual, um dos impactos dessa migração digital pode ser sentido no meio televisivo e no acesso por seus usuários. Segundo pesquisa de campo realizada pelas empresas Google e Ipsos, em 2012, com usuários norte‐americanos, a televisão já deixou de ser o aparelho mais utilizado por 77% desses usuários para acessar o meio televisivo. Esse grupo passou a assisti‐la preferencialmente por meio de smartphones, tablets e
laptops. Os dados da pesquisa confirmam que os media de imagens
predominantes hoje são telas digitais, revelando dois modos distintos do comportamento denominado “multitelas”: o uso sequencial, quando há a utilização de um dispositivo por vez, e o uso simultâneo, quando há a utilização de mais dispositivos simultaneamente. Figura 21 – Pesquisa de campo da Google e Ipsos, de 2012. Fonte:Google, 2012
Essa pesquisa também confirma o que se pensa sobre a polêmica da “convergência das mídias”25 (GOOGLE; IPSOS, 2012) ou mito da caixa‐preta, como chama Jenkins (2009), ou seja, a noção de que existirá, no futuro, um único aparelho que será suficiente para realizar todas as funções de comunicação, imagem e som. Jenkins (2009) chega a dizer ironicamente que, na sala de sua casa, só há aumento da quantidade de aparelhos, nunca diminuição, o que denomina, de modo preciso, de divergência. Conforme ressaltamos no capítulo anterior, o processo de digitalização proporciona uma convergência tecnológica. A ideia de que há uma convergência dos media de imagens não se confirma na prática. Presenciamos uma convergência dos meios, entre produtores de conteúdo imagético e comunicacional, numa ponta, e seus espectadores, na outra ponta.
Os encontros dos meios ocorrem nesse contexto de recepção, ao mesmo tempo dispersivo e participativo, que passa a orientar a percepção de outros ambientes informados, que se adicionam aos ambientes anteriores ainda em utilização. Em nossa pesquisa, identificamos três diferentes discursos analíticos voltados à compreensão do movimento e do contato entre meios, media e ambientes: remediação, convergência e intermedialidade.