DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
PUC/SP
São Paulo
2013
Espaços de Imagens:
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Profa. Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara.
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
São Paulo
2013
Espaços de Imagens:
Agradecimentos
À minha orientadora, Profa. Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara pela compreensão e apoio, incentivo e inestimáveis ensinamentos.
Aos professores do COS pelas aulas bem conduzidas que muito me acrescentaram.
À Cida Bueno pelo apoio e atenção.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa Espacc pelo conhecimento compartilhado ao longo de vários anos.
A pesquisa tem como principal interesse entender como se elaboram estruturas de sentido baseadas nas relações entre espaço e imagem. Em face da multiplicação de imagens pelas tecnologias de informação e comunicação, de natureza eminentemente digital, tal entendimento capacita‐nos a esquadrinhar a natureza da experiência visual que hoje é oferecida pelos múltiplos espaços das imagens. A hipótese fundamental sustenta que a imagem não pode operar fora de um espaço; portanto, espaço e imagem participam juntos dessa experiência visual. Assim, o espaço, como processo transformado em meio, impõe sua realidade material e histórica para a formação da imagem. Como a imagem depende de um aparato medial, transformações na natureza mediativa do espaço inevitavelmente se refletirão na esfera das imagens e, em consequência, na cultura. Por essa perspectiva, não se trata apenas de aferir e avaliar as condições técnicas de produção da imagem dadas pelo meio técnico e que configuram a sua materialidade, mas também incluir os espaços que as abrigam, ou seja, os espaços multiplicados para e pela imagem, as atividades que existem neles e entre eles, e as consequências socioculturais derivadas desse dinamismo, cuja investigação torna‐se o principal objetivo da pesquisa. Pelo processo de espacialização da imagem, discriminaram‐se quatro categorias, permitindo compreender seus modos de construção, circulação e exposição, que constituem a cadeia operatória dessa emergente espacialidade imagética. As categorias observadas são a medialidade/construtibilidade e a visualidade/exponibilidade, que possibilitam explorar as condições de surgimento de redes de relações instaladas entre os interagentes, operadas pela intermedialidade e verdadeiras responsáveis pela hibridização e multiplicidade das imagens mediáticas, no âmbito de uma ecologia da imagem. Verifica‐ se aqui a formação de um sistema que opera pela dinâmica relacional de seus elementos, formado pelo meio e o medium, e sua interação com outro espaço bem mais amplo, o ambiente, que conta com a presença do espectador. O percurso da pesquisa situa‐se entre os produtores, no seu modo de fazer e mostrar, e os espectadores, no seu modo de ver, e contempla mudanças culturais e históricas de ambientes comunicativos, que permitem a instalação de uma perspectiva crítica da teoria da visualidade, de caráter multidisciplinar, próxima à relação espaço‐imagem, impondo como articulação teórico‐metodológica contribuições de conceitos e exemplos extraídos de autores de campos teóricos distintos, para sublinhar as indicações fornecidas pelo trabalho na sua apresentação.
Abstract
The research has as main interest to understand as sense structures are elaborated based in the relationships between space and image. In face of the multiplication of images by the technologies of information and communication, predominantly of digital nature, this understanding qualifies us to examine the nature of the visual experience that is offered nowadays by the numerous spaces of images. The fundamental hypothesis sustains that the image cannot operate out of a space; therefore, space and image participate together of this visual experience. So, the space, as process transformed in medium, imposes its material and historical reality to the formation of the image. As the image depends on a medial apparatus, transformations in the mediative nature of the space will be unavoidably reflected in the sphere of the images, and, in consequence, in culture. For that perspective, besides checking and evaluating the technical conditions of production of the image given by the technical medium, that configures its materiality, it concerns to include the spaces that shelter them, in other words, the spaces multiplied to and by the image, the activities that exist in them and among them, and the derived sociocultural consequences of that dynamism, whose investigation becomes the main objective of the research. By the process of espatialization of the image, four categories were discriminated, allowing to understand their construction, circulation and exhibition ways, that constitute the operative chain of that emerging imagetic spatiality. This categories are: constructability/mediality and visuality/presentability that make possible to explore the conditions of appearance of networks of relationships installed among all the participants, operated by the intermediality and responsible for the hibridization and multiplicity of the media images, in the extent of an ecology of the image. It is verified the formation of a system that operates by the dynamics of relation of their elements, formed by the means of media and the medium, and its interaction with another wider space, the environment (milieu), that counts with the spectator’s presence. The course of the research is located among the producers, in their way of doing and showing, and the spectators, in their way of seeing and contemplating cultural and historical changes of communicative environments, that allow the installation of a critical perspective of the theory of the visuality, of multi‐disciplinary character, close to the space‐image relationship, imposing as theoretical‐methodological articulation contributions of concepts and examples extracted from authors’ of different theoretical fields, to underline the indications supplied by the work in its presentation.
Keywords: image; space; visuality; mediality; visual culture; environment.
Figura 1 – Gráfico “condições ontológicas”. Fonte: Autor...31
Figura 2 – Gráfico “os espaços das imagens”. Fonte: Autor ...35
Figura 3 – Real Gabinete Português de Leitura.
Fonte: http://colunalayoutcultural.zip.net/arch2009‐03‐15_2009‐03‐21.html...44
Figura 4 – Data Center Google.
Fonte: http://www.submitinme.com/blogs/simtalk/google‐data‐centers,2012....44
Figura 5 ‐ Real Gabinete Português de Leitura.
Fonte: http://obviousmag.org/archives/2007/11/as_fantasticas.html ...44
Figura 6 – Data Center Google.
Fonte: http://www.tvi24.iol.pt/fotos/economia/8/283657, 2012...44
Figura 7 – Gráfico “meio, médium, ambiente”. Fonte: Autor...48
Figura 8 – Gráfico “filosofia à comunicação”. Fonte: Autor...59
Figura 9 – Família assistindo TV.
Fonte: http://tramasocial.wordpress.com/category/midia/...62
Figura 10 – Passageiros em metrô. Fonte: http://www.stern.de/digital/telefon/
datensicherheitonlinekriminelle‐nehmen‐smartphones‐ins‐visier‐1656717.html...62
Figura 11 – Palco Fifa Fun Fest Rio de Janeiro.
Fonte: http://colunistas.ig.com.br/guilhermebarros/2010/07/20...62
Figura 12 – Visor Winamp. Fonte: http://www.winamp.com/skins,2012...68
Figura 13 – Gráfico “Resumo do espaço de imagens e suas categorias.”
Fonte: Autor...89
Figura 14 – Floresta Urbana, Yansong, 2011. Fonte: http://www.hypeness.com.br/ 2011/12/floresta‐urbana‐na‐china/...96
Figura 15 – Edifício Seagram, Mies van der Rohe, 1958. Fonte:
http://www.archdaily.com.br/80364/classicos‐da‐arquitetura‐ edificio‐seagram‐
mies‐van‐der‐rohe/ ...96 Figura 16 – Cartaz de rua, A. M. Cassandre, 1937 Fonte: Library (2013)...97
Figura 17 ‐ The Art Of Painting , Johannes Vermeer, 1666‐1668 Fonte:
http://www.essentialvermeer.com/catalogue/art_of_painting.html...102
Figura 18 – Fotografia, Helmut Newton, 1981.
Fonte: http://theartreserve.com/self‐portrait...102
Figura 19 – Filme Scenário du film Passion , Jean‐Luc Godard, 1982.
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=S9QV45WifOw...102
Figura 20 – Fotograma de Cena do filme Fantasia, de Walt Disney, 1940.
Fonte: Acervo Autor...131 Figura 21 – Infográfico sobre a TV e outras mídias. GOOGLE; IPSOS, 2012. Fonte: http://www.google.com/think/research‐studies/the‐new‐multi‐screen‐world‐
study.html…………...……….140
Figura 22 – The Ambassadors de Hans Holbein, 1533, National Gallery,
Londres. Fonte: www.googleartproject.com...145
Apresentação
Os Espaços Multiplos das Imagens
A matriz espacial das imagens
Quais espaços de imagens?Pensar privilegiadamente o espaço
O espaço de representação e a representação do espaço
Meio, medium, ambiente
O itinerário errático do termo 'medium': referências históricas Imagem, ambiente e fluxo
O medium como fluxo
Imagem, meio e media
Não existe medium puro, nem isolado
O meio permanece, mesmo que o medium se altere
O que percebemos no ambiente é o medium e não o meio
Confundimos a imagem do medium com os dados da visão
O ambiente como ruído para o medium
O meio transmite, o medium comunica
Tempo moderno, espaço pós-modern
Espacialização: medialidade e visualidade
O processo de espacialização do analógico ao digital A técnica é um meio que gera outros meiosO digital entre a tecnologia e a técnica: diferenças fundamentais A tecnicidade do meio digital e o novo regime visual
da informação
Entremeios das imagens
O visual sem fronteiras: uma perspectiva ecológica da imagem A comutação e mobilidade dos meios e das imagens:
procedimentos
Distribuição, fluxo e recombinação: remixabilidade
Encontro de meios como remediação Encontro de meios como convergência Encontro de meios como intermedialidade Encontro de meios: o Google Art Project
A tomada de contato com o problema
Esta pesquisa parte de uma indagação bem direta, nem por isso simples, sobre a relação entre espaço e imagem. Se considerados separadamente, os termos apresentam seu próprio domínio conceitual e suas problemáticas são mantidas isoladas. Quando associados, possibilitam o cruzamento de questões que ultrapassam seus referenciais teóricos e nos induzem a uma reflexão interdisciplinar a respeito da maneira como interagem.
A bem dizer, a brevidade da indagação e o peso específico dos termos ‘espaço’ e ‘imagem’ impelem, de início, o pensamento a vagar de um lado a outro, como um pêndulo que oscila sem se definir por nenhuma extremidade. Se ora conceituamos espaço, ora imagem, sem associá‐los, elaboramos uma espécie de conhecimento compartimentado que visa, sobretudo, a manter puros e estanques esses domínios. Essa compreensão, no entanto, não foi imediata e só transpareceu no curso dos estudos aqui apresentados.
Deu‐se o ponto de partida no aprofundamento de questões relativas ao desenvolvimento desses dois domínios como objetos conceituais ao longo de uma escala crescente de preocupação na transformação do pensamento ocidental, até ocuparem uma posição‐chave para entender a atualidade em sua plenitude. Nesse movimento, é interessante verificar como saltam de uma posição marginal, supostamente periférica, de nossa cultura para uma posição de destaque no limiar da existência pós‐histórica1 em que nos encontramos, sem a qual ficam comprometidas ou, no mínimo, incompletas as análises que procuram entender as atuais condições culturais que dão sentido à presença e ao relacionamento do homem com o mundo em acelerada transformação.
Ao iniciar nosso trabalho, o desenvolvimento do objeto de estudo parecia atado à necessidade de elaboração de uma espécie de compêndio das imagens de acordo com o espaço habitado por elas, ou seja, distinguir uma tipologia que as classificasse pela maneira como preenchem determinado espaço, tal qual uma tela por uma pintura, um papel por uma fotografia ou um monitor de televisão
1 No sentido apresentado por Flusser (2002) de um mundo dividido em existências pré‐histórica,
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ou computador por feixes luminosos, e daí partir para a análise de seus mútuos comportamentos, mas distintos, tendo como elemento condutor o corpus
selecionado para essa finalidade.
Embarcar nessa tentativa taxonômica mostrou‐se uma tarefa de alto risco por alguns motivos. A dificuldade classificatória, segundo critérios tipológicos, imposta nessa operação é imensa, devido principalmente à diversidade das imagens e suas múltiplas maneiras de apresentação2. A principal consequência dessa diversidade é que não há um ponto de vista único, muito menos um olhar privilegiado sobre essa questão. Por conta disso, essa diversidade vem acompanhada das muitas maneiras de se pensar a imagem e das numerosas teorias derivadas da crítica imagética, compondo um vasto e multifacetado campo de investigação que é visitado por autores de linhagens e princípios teóricos diversos.
O que primeiramente salta aos olhos é a constatação de que, apesar de sua aparente ubiquidade, a “imagem” como categoria de análise permanece notavelmente resistente ao entendimento teórico. Embora críticos culturais, estudiosos da imagem e sociólogos, entre outros, tenham catalogado diferentes tipos de imagem, descrito seus vários papéis na cultura e observado suas especificidades tecnológicas, fica, no entanto, longe de estar claro precisamente o que conta como imagem nesses estudos e como ou se devemos distinguir imagens a partir de termos relacionados, como figuras e ícones, e definir a que classe pertencem3. Para Belting (2005), o discurso corrente das imagens sofre de uma abundância de concepções diferentes e até contraditórias sobre o que são imagens e como elas operam.
2 Ao apresentar seu estudo que trata dos objetos, Baudrillard (2000) viu‐se frente a um dilema
semelhante e se fez a pergunta: pode‐se esperar classificar um mundo de objetos que se modifica diante de nossos olhos e chegar a um sistema descritivo? Para ele, existiriam tantos critérios de classificação quantos fossem os objetos. Passando ao largo de qualquer intenção meramente funcional, ou seja, para que serve um objeto (este apenas um critério classificatório), o autor revela sua intenção de saber como os objetos são vividos, a que necessidades, além das funcionais, atendem, sobre que sistema cultural é fundada a sua cotidianidade. Ele pretende estudar os processos pelos quais as pessoas entram em relação com eles e a sistemática das condutas e das relações humanas que disso resulta. Para cumprir esse objetivo, procura no plano tecnológico um elemento estruturador para sua análise. Seu exemplo é inspirador para este trabalho.
3 Conforme Khalip e Mitchell (2011, p. 3), em especial sua proposta de libertar as imagens da
É possível que essa confusão gire em torno do procedimento classificatório, que, como afirma Agamben (1993, p. 15), “transforma as singularidades em membros de uma classe, cujo sentido define a propriedade comum”, observado no exemplo da palavra ‘árvore’, que não distingue uma árvore, mas nomeia indiferentemente todas as árvores. Por isso, é na linguagem, diz ele, que se dá a origem da antinomia do individual e do universal. De maneira análoga, diríamos que a palavra ‘imagem’ parece carregar o fardo de nomear todas as produções visuais possíveis, como se delas fosse proprietária. Por isso, essa palavra pode se tornar a primeira inimiga a ser enfrentada. O primeiro passo que damos aqui para destroná‐la da sua “altivez” é remover sua autonomia para abalar sua autossuficiência, mostrando‐a dependente de certas relações para se constituir. O segundo passo é colocá‐la ao lado de semelhantes, torná‐la mais comum, provendo de compreensão as correspondências e diferenças entre visível, imagem e visual, e dessas palavras com visão e olhar, a fim de distribuir e equilibrar suas forças.
Ainda de acordo com Agamben (2007, p. 52‐54), “a imagem é um ser cuja essência consiste em ser uma espécie, uma visibilidade ou uma aparência” ou, ainda, uma espécie de coisa, um ser especial que seria contrário ao ser genérico. Transformar essa espécie em um princípio de identidade e de classificação é, para ele, “o pecado original de nossa cultura, o seu dispositivo mais implacável” (p. 52‐54). Seria sacrificar o singular, a especialidade de cada imagem, a favor e em benefício de um padrão identificável que se possa generalizar. Esse ser especial é um “rosto, um gesto, um evento que, não se assemelhando a nenhum, se assemelha a todos os outros”, diz ele (p. 52‐54). Aquilo que contrariaria essa oposição é o exemplo, um objeto singular, uma singularidade entre as outras, mas que vale por todas, sendo, assim, nem particular, nem universal, que se dá a ver como tal e mostra a sua singularidade.
Barthes (1984) inicia A câmara clara com um problema semelhante. O
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profissionais especialistas preocupar‐se, que exige “um ato segundo de saber ou de reflexão” (p. 13). Esse ato de perceber o significante é dado intencionalmente pelo nosso trabalho, mas sem deixar escapar a singularidade que encantou Barthes (1984).
Trabalhar com situações singulares ou, ainda, com análise de casos individuais, reconstruídos somente por meio de pistas, sintomas, indícios, como sugere Ginzburg (2002) e seu método indiciário, permite captar uma “realidade mais profunda” (p. 154), de outra forma inatingível. Isso, segundo ele, explicaria “como apareceu historicamente uma constelação de disciplinas centradas na decifração de signos de vários tipos, dos sintomas às escritas” (p. 154), por permitir uma investigação sem preconceitos, cuja fundamentação não é exclusivamente “colher e descrever indícios – mas selecionar e organizar para fazer inferências. [...] [para] fazer proposições de ordem geral a partir de dados singulares obtidos.” (BRAGA, 2008, p. 78).
Para Ginzburg (2002), essas circunstâncias definem esse paradigma como muito utilizado em tempos antigos, mas que “permaneceu implícito – esmagado pelo mais prestigioso (e socialmente mais elevado) modelo de conhecimento elaborado por Platão.” (p. 155). Compreende‐se, como afirma Braga (2008, p. 78), que “o envolvimento com a concretude da experiência” é passo decisivo para o estabelecimento desse método, que, enquanto tal, tanto pode significar sua riqueza quanto sua ruína.
Esta é uma alternativa que se apresenta para uma possível inversão de caminho, que, em vez de partir de um grande eixo de elementos comuns, portanto gerais, para os quais aquilo que se pesquisa deve ser ajustado ou acomodado numa teoria predeterminada pelo pesquisador, procura primeiramente investigar sinais e indícios na especificidade de cada fenômeno singular envolvido em uma determinada experiência que indique tendências, para só aí extrapolar suas propriedades comuns, livre de apriorismos. Aquilo de que fala Agamben (2007), ou seja, o exemplo, como experiência singular carregada de universalidade, como singularidade que força a diferença, para, então, propor‐se à abertura de um universal possível, é correspondente ao que Badiou (1994, p. 18) chama singularidade universal, como “daquilo que é, a cada vez, absolutamente singular, como um poema, um teorema, uma paixão, uma revolução; e contudo, para o pensamento, absolutamente universal.”
pela intenção de estruturá‐lo em torno de regularidades. Tal como explica Domènech (2011), seria catalogar a imagem como um documento, mediante a sua descrição, sua interpretação e o estabelecimento do contexto de sua produção, imobilizando‐a como que pronta para ser arquivada.
Mesmo que o impulso classificatório sirva perfeitamente para fins metodológicos, renunciar à sua utilização não significa que dele prescindimos totalmente, pois empregamos seu princípio, vez ou outra, para identificar as imagens aqui tratadas, em virtude do contato e diálogo estabelecidos com os muitos estudos já realizados na área. Também porque, como reconhece Elkins (2001), sem o trabalho de alguma classificação não seria possível reconhecer afinidades (similaridades), que serão encontradas à maneira de uma “classificação comedida”, que só aparecerá no caminhar e avançar do trabalho. Parece‐nos, pois, que partir de uma “classificação abrangente” não seja suficiente, tanto para captar essa realidade mais profunda, ao oferecer “afirmações gerais, onde, hoje, precisamos perceber distinções finas” (BRAGA, 2008, p. 75), quanto para oferecer alternativas de entendimento para o que nos pareceu ser a questão mais premente a ser investigada: qual é a natureza da experiência visual que hoje nos é oferecida ante a multiplicação medial das
imagens?
A origem da pergunta baseia‐se na simples constatação de que boa parte das aspirações da pesquisa está em compreender como chegamos ao ponto de produzir uma diversidade tão exuberante de imagens, constatação ocorrida quando dos esforços iniciais de constituição do corpus da pesquisa, ao se
detectar que a característica mais evidente presente naquele corpus era a
diversidade entre seus pares, de imagens que já haviam sofrido algum processo de contágio umas com as outras, de imagens “impuras”. Ou seja, percebeu‐se que nessas imagens dissipava‐se a indicação original de sua constituição, como se elas já tivessem percorrido outros caminhos e penetrado em outros imaginários, até finalmente se constituir. Da primeira seleção efetuada, foi realizada uma segunda seleção que ressaltava essa característica, qual seja, a mistura de tecnologias e de imaginários envolvidos com as que eram elaboradas.
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possibilidade de emergência das estruturas de sentido e não em procurar identificar o sentido de imagens, para resgatá‐lo em seguida. As perguntas feitas estão dirigidas às imagens como estruturas de sentido capazes de mobilizar a realidade social, a história, a política e a economia, por exemplo. Nesse sentido, a finalidade do estudo indica que não estamos interessados, neste momento, em averiguar o significado específico de determinadas experiências visuais, mas na maneira como estas são geradas.
Se priorizadas por oferecer um contato ampliado com a peculiaridade daquilo que é produzido visualmente no âmbito intrínseco da imagem, as distinções finas, ou os detalhes mais íntimos das imagens, por oposição às distinções gerais e institucionalizadas, são necessárias para que se consiga elaborar um entendimento que avance além das condições formais e de iconicidade da imagem, alcançando esse território nebuloso pouco explorado no qual se situam os sinais e indícios dessa realidade mais profunda, que se insinua entre o visível e o invisível da imagem.
Se a generalização é normalmente entendida como o ponto de chegada de um percurso que se desenvolve do particular ao geral, ou seja, que parte da seleção e observação de singularidades, dispostas normalmente em séries, para alcançar daí sua generalização, apreendida na relação estabelecida entre sujeito e objeto, ela pode também ser um ponto de partida para a observação de fenômenos que se assemelhem, que sejam homogêneos, meta do processo de categorização, que “significa tornar diferentes coisas equivalentes” (MALDONADO, 2012, p. 216); portanto, elaborar diferenciações.
Quando a comunicação é estabelecida entre séries heterogêneas, toda sorte de consequências flui no sistema. Alguma coisa ‘passa’ entre as bordas; estouram acontecimentos, fulguram fenômenos do tipo relâmpago ou raio. Dinamismos espaciotemporais preenchem o sistema, exprimindo ao mesmo tempo a ressonância das séries acopladas e a amplitude do movimento que as transborda. (DELEUZE, 2006, p. 173).
Nas imediações do debate entre a preservação de singularidades e as generalizações, configura‐se grande parte das questões que permearam as discussões a respeito do método científico no século XX. Assim, nesse impasse, encontramos, por um lado, universalismo rigoroso e restrito, como também presunção de racionalidade, eliminando tudo que lhe escapa; por outro, construções particulares que alimentam a ação e a prática, mas que não são universalizáveis, nem necessariamente compatíveis entre si. Ao lado do método como produção de certeza universal proposto pelo cartesianismo, que excluía as observações empíricas, têm sido elaborados vários caminhos alternativos que preservam a multiplicidade do fenômeno sob análise. Para Deleuze (2004), um dos mais influentes articuladores desse pensamento, as multiplicidades são “a própria realidade e não supõe nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito” (p. 8), e dessa multiplicidade não nos desviamos; pelo contrário, saudamos sua existência como condição necessária, como se verá, constituindo‐a como um dos pontos fundamentais desta pesquisa.
A identificação do sistema espaço‐imagem
Caso estivéssemos à procura de um estudo que se restringisse às imagens, poderíamos adotar como procedimento metodológico o estudo de uma série de imagens que contivessem traços homogêneos, como, por exemplo, fotografias de um mesmo período relacionadas a um tema comum, ou, ainda, selecionar imagens oriundas de uma mesma prática, isolando‐as do contato com produções imagéticas adjacentes, para daí discriminar suas características e dados básicos e, então, apontar generalizações, o que seria elaborar uma classificação.
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perceptual, mental e verbal. Como esclarece ele, sua intenção ao elaborar essa tipologia foi alcançar por meio dela a diferença entre picture‐image,4 dentro da
relação palavra‐imagem, uma de suas preocupações principais, desenvolvida ao longo de sua vasta obra.
Para operacionalizar um tipo de estudo que partisse de uma classificação, encontraríamos imagens que se adaptam a cada tipo mencionado por Mitchell (1987), procedendo à sua análise pela constituição de suas diferenças formais e chegando, ou não, a uma reflexão coincidente à dele, ou seja, explicaríamos uma teoria. Se não soubéssemos, a princípio, o porquê de essa classificação ter sido elaborada, o seu contexto, bem possivelmente nem poderíamos checar as intenções do autor ao elaborar aquela classificação, agindo de modo inocente. Por outro lado, se tomássemos o trabalho de Mitchell (1987) apenas por esse aspecto restrito, poderíamos tirar algumas conclusões apressadas a seu respeito. Mesmo trabalhando, nesse caso, com um princípio classificatório, seu trabalho assume postura bem diferente dessa metodologia. Ele é um pensador crítico, fecundo e, por que não, polêmico da teoria das imagens e responsável direto por muitas das novas direções e aberturas a outros ramos de pensamento, como, por exemplo, filosofia, ciência, comunicação, arte etc., assumidas no estudo da imagem. Entre outros conceitos desenvolvidos por ele, destacam‐se o da metaimagem e o da virada imagética, que investigam e tencionam a ação das imagens na cultura e no pensamento contemporâneo.
Como partimos de uma situação dada pela definição do objeto de estudo como sendo a “relação entre espaço e imagem”, identificamos nesse início de estudo que nossa abordagem já partia de uma situação geral, ainda que obtida por meio de observações preliminares, que bem poderiam se desdobrar em muitas outras, como um papel que se desenrola. A generalização da relação espaço‐imagem talvez já nos bastasse como ponto de partida, isentando‐nos de vasculhar o plano formal ou discursivo das imagens à procura de outras aproximações cabíveis. Assumir a relação entre imagem e espaço é atentar inicialmente para a existência de um vínculo inextricável entre aquilo que vemos como imagem, sua superfície visível, e a concretude do suporte que lhe serve de apoio físico. Essa situação parece‐nos a mais fundamental, pois, uma vez que não dispomos de um dispositivo natural para exteriorizar nossas imagens mentais, tal qual o aparelho fonador dado a nós pela natureza, por meio do qual podemos
4 Para Mitchell (2009, p. 16, tradução nossa), “
exteriorizar nosso pensamento por sons, necessitamos sempre de uma mediação técnica para exteriorizá‐las (MACHADO, 2002), ainda que de caráter funcional, muito dependente do grau de tecnicidade da operação.
No campo das imagens, a composição da mediação técnica varia conforme a especificidade de cada meio e da técnica concreta empregada na produção, que se revela determinante para compreender a maneira pela qual as imagens são feitas, transmitidas e recebidas. Ao lidar com o critério da tecnicidade, torna‐ se possível incluir elementos que incrementam o alcance de análise sobre a ação das imagens, não limitada à sua dimensão formal ou a uma classificação – subordinada aos problemas de estrutura – ou, ainda, limitada à discriminação da sua sintaxe discursiva, e passar a considerar a sua imersão em outros sistemas operativos identificados na dimensão sociocultural com os quais as imagens interagem. Como sugere Domènech (2011), o ideal é combinar esses tipos de aproximação e tanto buscar um marco no paradigma sociocultural quanto permanecer atento aos dispositivos formais dos processos de visualização correspondentes, assim como à sua genealogia.
Essa mobilização entre a dimensão formal e a sociocultural é bastante representativa do trânsito que é estabelecido entre o que acontece no interior da imagem e o que acontece no seu exterior. Temos, aqui, uma situação em que acontecem intercâmbios de informação entre o sistema imagético e o meio sociocultural que lhe serve de referência exterior, o que lhe confere a capacidade de afetar esse meio e, por extensão, ser também afetado, devido à interação estabelecida pela operação de suas propriedades. Temos, portanto, que considerar a relação espaço‐imagem como um sistema acoplado a um meio, os quais se afetam mutuamente.
Dentro da teoria filosófica de DeLanda (2011), que descreve os mecanismos e simulações de emergência em sistemas de diferentes escalas, há a caracterização do afeiçoamento como sendo a capacidade de afetar e ser afetado, que é definida pelas suas propriedades, capacidades e tendências. Como explica o autor, nessa teoria, as propriedades de uma coisa, que emergem da interação das partes da coisa, definem a sua capacidade de afetar5. No caso
5 Para DeLanda (2011), as propriedades especificam a capacidade de afetar, como uma faca, cuja