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A Concepção da esfera pública em Habermas – 1962

Neste tópico, foca-se nas informações históricas sobre a formação da esfera pública burguesa estudada por Habermas (HABERMAS, 2003) e publicado, originalmente, em 1962 tendo em vista mostrar a emergência histórica de um ideal de Soberania Popular e, também, de que forma o autor construiu seu conceito de esfera pública – para demonstração das mudanças conceituais ocorridas até a noção utilizada nessa dissertação – que é aquela de obra posterior (publicada originalmente em 1992).

O conceito de esfera pública recebeu destaque principalmente na segunda metade do século XX. Atualmente, o conceito é bastante discutido, tanto na literatura nacional, como na internacional (AVRITZER; COSTA, 2004; LUBENOW, 2007, 2012; MELO, 2015), permeando discussões sobre mídia, comunicação, movimentos sociais, sociedade civil, participação social, deliberação pública, dentre outros (GARCIA, 2016). Avritzer e Costa (2004, p. 705) afirmam que “O conceito de esfera pública representou um elemento central no processo de reconstrução da teoria crítica na segunda metade do século XX”. O conceito também foi incorporado à literatura da administração, administração pública e gestão social (ALCÂNTARA, 2014; GARCIA et al., 2016).

Apesar dos diversos autores e das distintas abordagens, Habermas aparece como figura central e autor mais citado quando se fala de esfera pública, conforme demonstrado no trabalho bibliométrico de Garcia et al. (2016). Como já apresentado, Habermas trata de esfera pública em vários momentos, mas as discussões iniciam-se, todavia, em “Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa”. Apesar de ser a primeira obra em que o autor trata da categoria, ela continua sendo o texto mais citado de Habermas (GARCIA et al., 2016). Além disso, apesar de ser uma obra bastante criticada e contestada (AVRITZER; COSTA, 2004; PERLATTO, 2015), apresenta princípios e premissas chaves para o entendimento da esfera pública e da democracia.

No citado trabalho, o objetivo de Habermas é demonstrar a emergência de uma esfera pública (no século XVIII e XIX na Inglaterra, França e Alemanha) marcada pelo debate livre e racional entre os burgueses (HABERMAS, 2003; LUBENOW, 2012). Em outras palavras, Habermas busca “distinguir um conjunto de critérios institucionais de funcionamento como, por exemplo, a igualdade de participação, a suspensão das diferenças (econômicas e sociais) e a busca pelo entendimento” (GARCIA, 2016, p. 71). Portanto, Habermas trabalha, a um só tempo, com uma “concepção ideal normativa e com uma noção historicamente localizada e contingente de esfera pública” (SILVA, 2001, p. 117). No caso, é importante destacar que a esfera histórica tratava, nesse momento, de uma esfera pública burguesa.

Essa esfera pública nasce da esfera pública literária (GARNHAM, 2007; HOLUB, 2013; LUBENOW, 2012; SILVA, 2001). Habermas considera que a esfera literária foi uma “prefiguração de uma esfera pública política orientada para questões de política de Estado” (HOLUB, 2013, p. 2). Para Garnham (2007, p. 212), “foi o desenvolvimento de identidades privadas com opiniões particulares dentro da esfera pública literária que sustentaram o desenvolvimento da esfera pública e do público de opinião”. Com o fortalecimento da burguesia (AVRITZER; COSTA, 2004), ela passa a exigir controle mediante o Estado, isto é, ela passa a querer ter conhecimento do que faz o Estado (GARCIA, 2016), trazendo, com isso, um caráter de “publicização” das ações do Estado (AVRITZER; COSTA, 2004; GARCIA et al., 2016).

Dessa forma, a esfera literária dos burgueses que se reuniam para discutir literatura, artes e cultura, “mesmo não sendo uma esfera pública com caráter político, [a esfera literária] já revelava um raciocínio de caráter público” (BUNCHAFT, 2014, p. 158).

Assim, à medida que as pessoas privadas dialogam entre si não apenas como proprietários, mas também como seres humanos, a humanidade da esfera pública literária serve de instância mediadora à efetividade da esfera política por meio de uma politização da cultura e da arte. Tais debates culturais irão inspirar o exercício crítico da esfera pública contra o poder do Estado (BUNCHAFT, 2014, p. 159).

Finalmente, a classe burguesa passou a discutir assuntos ligados à economia e política – temas antes tratados apenas por integrantes do Estado. Portanto, “a emergência de uma esfera pública política a partir da esfera literária passa a conectar a opinião pública, o Estado e a sociedade burguesa” (BUNCHAFT, 2014, p. 158). Lubenow (2012, p. 35) chama esse fenômeno de “refuncionalização da esfera pública literária”, enquanto Silva (2001) nomeia de conversão funcional da esfera pública literária.

Consequentemente, a esfera pública assume “expressamente funções políticas nesse campo tensional entre o Estado e a sociedade” (LUBENOW, 2012, p. 195). Sua tarefa é enfrentar a autoridade estabelecida pela monarquia (HABERMAS, 2003), ou seja, nesse momento, a esfera pública se propunha a “enfrentar a autoridade do poder público estabelecido, dirigindo-se contra a concentração de poder que deveria ser compartilhado” (LUBENOW, 2012, p. 195).

A esfera pública ataca o princípio da dominação vigente, contrapondo à prática do segredo do Estado o princípio da publicidade, enfrentando, com isso, pela eficácia política, a autoridade estabelecida. Esse pressuposto – a exigência da publicidade – revela uma “esfera crítica” que se apresenta na forma de opinião pública (LUBENOW, 2012, p. 195-196).

Assim sendo, a esfera pública, desde essa concepção, media a relação entre Estado e sociedade civil (LUBENOW, 2012; SILVA, 2001). Disso, inicia-se a concepção de onde Habermas retira a noção de Soberania Popular – isto é, ela é fonte de legitimidade do poder (PERLATTO, 2014). A partir da observação dessa esfera política é que Habermas (2003) derivou uma base normativa para “o que deveria ser” uma esfera pública.

Depois de construir uma base normativa, a partir da observação da esfera pública burguesa do século XVIII, o autor busca observar o funcionamento dessa esfera nas sociedades capitalistas do século XX. Para tanto, “Habermas transfere a ideia de esfera pública, capturada de um recorte sócio-histórico, e a utiliza como chave de leitura para analisar [...] o comprometimento [...] da esfera pública nas sociedades capitalistas avançadas do século XX” (LUBENOW, 2012, p. 196). Com isso, Habermas (2003) encontra que houve uma despolitização da esfera pública e perda dos seus elementos democráticos.

Assim, segundo Habermas (2003), seu modelo de esfera pública descrito não se sustenta quando analisado sob condições institucionais avançadas do século XX. Em outras palavras: o padrão normativo observado por Habermas na esfera pública burguesa do século XVIII não se repete nas sociedades capitalistas do século XX (HABERMAS, 2003; LUBENOW, 2012). Por esse motivo, em suas obras posteriores, Habermas busca uma forma de repolitizar a esfera pública, e em “Teoria do Agir Comunicativo” o autor busca repolitizar a esfera pública, tendo agora o modelo dual de sociedade – dividida em sistema e mundo-da- vida – e o conceito de razão comunicativa. Posteriormente, em “Direito e Democracia”, uma nova concepção aparece, agora com seu potencial de democratização renovado.