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4. A contemplação de Deus no espelho da música

4.1. A concepção de música segundo o Magister Jacobus: a primazia da

A vida contemplativa é melhor do que a vida ativa, que se ocupa de ações corporais. Por outro lado, a vida ativa, pela qual se transmite aos outros, pela pregação e o ensino, o que

se contemplou, é mais perfeita do que a vida que apenas contempla, pois que supõe uma abundância de contemplação. Por isso Cristo escolheu a vida ativa.

Santo Tomás de Aquino, ST, III, q. 40, a. 1, ad 2.

No primeiro capítulo do primeiro livro do Speculum Musicae, Jacobus dá início ao seu tratado fazendo uma grande apologia à vida contemplativa, colocando-a nitidamente em primazia em relação à prática (embora sem desprezar essa). Jacobus deplora, citando Aristóteles204, Sêneca, Boécio e as Sagradas Escrituras aqueles que não reconheceram que a dignidade da natureza humana vem da sua faculdade intelectual – faculdade pela qual ele se distingue dos animais – lamentando aqueles que desprezam a vida contemplativa (Speculum Musicae, I, I):

No terceiro livro da Consolação da Filosofia, Boécio, desejando elucidar a causa pela qual todo o gênero humano intenta alcançar a felicidade, afirma: “... há incutido na alma humana um desejo natural do verdadeiro e do bem”205. Do “verdadeiro”, diz, porque quanto ao intelecto, sua perfeição consiste na verdade. Do “bem”, por causa da vontade, que tende ao bem, uma vez que o ser aspira àquilo que constitui de forma natural sua perfeição e seu bem, pois, como afirma Eustáquio, “as coisas imperfeitas não se sustentam por si mesmas, mas tendem ao que é perfeito” 206. A esse respeito, o

204

“Todo o homem tem por natureza do desejo de conhecer”. Aristóteles, Metafísica, I, I, c. I.

205

De Cons. Phil. III, 3. A edição brasileira dessa obra apresenta a seguinte tradução dessa passagem “Com efeito, todos os homens tem em si o desejo inato do bem verdadeiro (...)” (BOÉCIO, 1998. p. 55).

206

Esse princípio é aqui atribuído a Eustáquio de Nicéia. No entanto, esse princípio é encontrado na Física de Aristóteles. Trata-se de uma concepção fundamental, que encontramos também em Santo Tomás de Aquino. Desde o início de seu tratado Jacobus afirma uma concepção hierárquica de primazia do perfeito sobre o imperfeito, que irá posteriormente fundamentar a concepção de primazia das consonâncias perfeitas sobre os outros intervalos e da subdivisão ternária sobre a binária. Além disso, ela está por trás do conceito de cadentia. O tratado de Jacobus é tido como o primeiro a apresentar a concepção de cadentia. Esse termo vem do verbo latino cadere, “cair” e diz respeito à condução de vozes no contraponto (embora também existam cadências melódicas), em que o intervalo imperfeito ou menos perfeito encontra sua perfeição ao ser sucedido por um intervalo perfeito (ele “cai” no perfeito, como se a esse tendesse, ou como na terminologia atual, ele “resolve” no perfeito). Aquilo que é imperfeito possui muita potência, e o que é perfeito, mais ato. Toda potência encontra sua perfeição se atualizando, uma vez que a perfeição do ser é ato. Quanto mais perfeito um ser é, mais ato de ser ele possui, e quanto menos perfeito, menos ato de ser possui, ou mais potência de ser possui. Assim, a perfeição dos intervalos imperfeitos (como as dissonâncias) é alcançada quando eles são sucedidos por intervalos perfeitos no movimento cadencial. Nisso temos um claríssimo exemplo de como uma concepção da

Filósofo207 afirma de modo conveniente que “todos os homens tem, por natureza, o desejo de conhecer” e que “tudo tende ao bem208”. Certamente, o conhecimento da verdade se consegue por meio da ciência e, se esta é ciência prática e moral, graças a ela, qualquer homem encontra a disposição para adquirir a bondade que existe nas virtudes morais.

De fato, uma vez que, segundo o Filósofo no livro décimo da

Ética, o mais deleitável e ótimo é aquilo que é congruente segundo a

própria natureza, o que, no que se refere ao homem, é viver segundo o intelecto e adquirir ciência e virtude. Por que os homens de nosso tempo se preocupam tão pouco com isso, e encontram deleite nos bens do corpo e da fortuna mais do que nos da alma? Pouca estima recebem os que se dedicam aos bens da alma e não sabem dos negócios do mundo exterior e nem querem nele se intrometer. Eles são objeto de desprezo, como se carecessem de utilidade para o mundo. Mas tais homens [que não se dedicam aos bens da alma] degeneram-se, imitando a condição de animais irracionais. Pois, como disse Boécio209, “é condição da natureza humana alcançar a excelência sobre todas as coisas quando ela se conhece a si mesma”, mas retornar à condição animal se ela deixa de se conhecer. “O espírito nobre – segundo Sêneca – possui a faculdade de despertar o que é honesto, isto é, a ciência e a virtude. Nenhum homem de inteligência elevada – afirma – encontra prazer naquilo que é baixo e sórdido mas atrai em direção a si e conjura as espécies dos assuntos mais altos”. E, como é próprio do homem viver segundo a razão e o intelecto, não estão como mortos os homens que não vivem segundo esses princípios? Pois, para quem está vivo, viver é existir [esse, também traduzível por ser ou ato

de ser]. Acontece que, além disso, é grande a injúria que cometem

contra Deus. Nas palavras de Boécio: “... Não advertistes quanta é a injúria que a Deus fazeis. Era vontade d’Ele que o gênero humano ultrapassasse a todas as criaturas e vós, ao contrário, reduzis vossa dignidade ao ínfimo”210. A tais deplora o profeta: “Ainda que o homem tenha dignidade, não compreende [que a tenha]”. O homem tem dignidade por seu intelecto, que o distingue dos animais irracionais, mas não reconhece isso quando não vive de acordo com o

musica speculativa, ou melhor, da Física de Aristóteles, pode ser aplicada na organização concreta da

obra musical, a saber, no movimento cadencial da condução de vozes no contraponto (ou mesmo no movimento melódico cadencial). Eis a definição de cadentia exposta por Jacobus: “Cadentia, no que diz respeito ao assunto presente, parece designar uma certa ordenação ou inclinação natural de uma concórdia mais imperfeita em direção a uma mais perfeita. Pois aquilo que é imperfeito parece ser naturalmente inclinado em direção à perfeição, como se direcionado a um melhor ato de ser [sicut ad melius esse], e aquilo que é fraco [debile] deseja [cupit] ser sustentado por uma coisa que é mais forte e mais estável. A

cadentia nas consonâncias, consequentemente, é dita ocorrer quando uma concórdia imperfeita empenha-

se em alcançar uma concórdia mais perfeita que esteja próxima a ela, de modo que [a concórdia imperfeita] caia na concórdia mais perfeita e a ela se una por cima e por baixo, ou seja, descendendo e ascendendo [no movimento dos intervalos no contraponto]”.(Speculum Musicae IV, L apud COHEN, 2001, p. 164). Note que ele também expõe a regra contrapontística de que as vozes devem ser conduzidas horizontalmente pelo menor intervalo possível, preferivelmente por grau conjuntos evitando saltos, e “verticalmente” por movimento oblíquo e não paralelo entre as vozes (“descendendo e ascendendo”). Cf. COHEN, 2001; MAW, 2010.

207

Aristóteles era chamado de “o Filósofo” pelos escolásticos.

208

Aristóteles, Metafísica, I, I, c. I.

209

De consolatione philosophiae, II, 131, Prosa V.

210

intelecto e negligencia adquirir as perfeições que este lhe oferece. E então, é comparável e semelhante a uma besta de carga211.

Note que, ao afirmar a primazia dos bens da alma (espirituais) sobre os corporais (materiais) Jacobus não apresenta nenhum desprezo aos bens do corpo, mas apenas afirma que eles devem ser valorizados conforme o que realmente são, em sua justa medida, ou seja, como não iguais nem superiores aos bens espirituais. Há somente uma condenação à valorização exagerada ou desproporcional aos bens do corpo em detrimento dos bens da alma. Tal posicionamento intelectual tem também suas consequências na relação entre contemplação e prática, uma vez que as duas ao invés de se oporem, na verdade se complementam, embora a primazia seja da contemplação (posicionamento similar àquele expresso por Santo Tomás na epígrafe do presente capítulo).

Em seguida, Jacobus louva a música (citando Boécio) por ser uma ciência tanto especulativa quanto prática (moral), e por essa razão conduzir o homem de maneira integral a sua perfeição (tanto a alma quanto o corpo) produzindo deleite tanto intelectual, espiritual, quanto sensível e por essa razão ser sumamente conveniente ao homem (que é animal racional, composto de corpo sensível e alma espiritual):

Consagremo-nos e dediquemo-nos ao que nos há de encaminhar à consecução da felicidade. Com efeito, os deleites do intelecto são puros, são firmes, são honestos, não carregam consigo a tristeza como,

211

“Libro tertio de Philosophica Consolatione, Boethius, volens reddere causam quamobrem omnium hominum genus suam conatur adipisci beatitudinem: Est, inquit, mentibus hominum veri bonique naturaliter inserta cupiditas. "Veri" dicit, quoad intellectum, cuius perfectio in veritate consistit; "boni", propter appetitum, qui in bonum tendit. Appetit siquidem ens quodcumque naturaliter suam perfectionem, sicut et suum bene esse. Nam, iuxta <Eustratii> sententiam, imperfecta non stant in se, sed appetunt perfici. Qua in re convenienter asserit Philosophus quod naturaliter omnes homines scire desiderant, et quod omnia bonum appetunt. Per scientiam quippe cognitio sumitur veritatis, et, si sit practica et moralis, per eam disponitur quis ad <ademptionem> bonitatis, quae in moralibus consistit virtutibus.

Verum, cum, secundum Philosophum, decimo Ethicorum, delectabilissimum et optimum sit unicuique quod congruit ei secundum propriam naturam,--quale est homini vivere secundum intellectum, scientias et virtutes acquirere--quid est quod nostri temporis homines ita parum de his curant, in bonis corporis et fortunae potius quam animae bonis delectantur, et hos, qui bonis vacant animae, nisi de mundi negotiis exterioribus sciant et velint intromittere se, parum appreciant?Insuper eos habent contemptui, quasi ad nihil utile huic mundo deserviant. Sed degenerant tales, bestialem conditionem imitantes. Nam, ut ait Boethius, humanae naturae ista conditio est, ut ceteras res, cum se cognoscit, excellat, eadem tamen infra bestias redigatur, si se <nosse> desierit. Hoc enim, secundum Senecam, habet generosus animus, ut concitetur ad honesta, idest ad scientias et virtutes. Neminem, inquit, excelsi ingenii virum humilia delectant et sordida. Magnarum rerum species ad se trahit. Et cum hominis proprium sit vivere secundum rationem vel intellectum, nonne illi ut homines mortui sunt, qui secundum hoc non vivunt? Vivere enim viventibus est esse. Ad horum etiam gravamen accedit quod hi magnam iniuriam, testante Boethio, Deo faciunt: Nec advertitis, inquit, quantam Deo facitis iniuriam. Ille genus humanum praestare omnibus voluit; vos autem dignitatem vestram infra infima quaeque detruditis. Hos plangens Propheta ait: Homo cum in honore esset, non intellexit. Est homo in honore per intellectum, quo distinguitur a brutis. Sed hoc non recognoscit, quando per intellectum non vivit et perfectiones illius acquirere negligit. Et tunc comparatur iumentis insipientibus et similis factus est illis”. (Speculum Musicae, I, I).

ao contrário, os deleites do corpo. Mas se existe alguma ciência, não mais teórica, mas relativa à moral e prática que, harmonizando com os diversos hábitos e distintos estados dos homens, leve à sua perfeição não somente a parte intelectiva e afetiva do homem, mas a sua totalidade, isto é, aperfeiçoa o corpo e a alma, com razão tal ciência deve ser cultivada por homens bem dispostos. Esta ciência é, pois, a Música, tal como testemunha Boécio212: “Enquanto as demais ciências se dedicam à investigação da verdade, a música não só está associada à especulação, mas também à moralidade. Com efeito, nada é tão próprio ao ser humano quanto apaziguar-se com os modos doces e angustiar-se com os discordantes”213.

O fato de Jacobus iniciar um tratado de música tratando da vida contemplativa e da superioridade dela sobre a vida ativa pode deixar muitos perplexos, caso não seja feita a devida contextualização. Essa concepção da primazia da contemplação sobre a ação, ou da vida contemplativa sobre a ativa é um dos temas fundamentais do pensamento medieval e encontra também sua formulação já na filosofia da antiguidade. Segundo Harne (HARNE, 2008, p. 11), o Speculum Musicae apresenta a concepção de theoria associada ao pensamento da antiguidade, como contemplação desinteressada que não visa (ao menos de modo direto) a aplicação prática, e não apenas como meio para fundamentar uma ação, concepção que seria mais próxima do pensamento moderno como o de Francis Bacon (1561-1626)214. Além disso, essa concepção que embasava a distinção entre musica theorica e musica practica estava no cerne da oposição feita por Jacobus à Ars Nova (HARNE, 2008, p. 13). Ela se fundamenta na concepção de primazia do intelecto sobre as outras potências, e consequentemente da concepção da beatitude ou felicidade (o fim último do homem) como sendo algo de ordem intelectual. A felicidade verdadeira não pode ser encontrada em nenhum bem criado, nem no conhecimento especulativo de nenhum bem criado, mas somente na contemplação do Sumo Bem, da Causa não causada de todas as causas:

212

Boécio, De Institutione Musica, I, 1.

213

“Tactam abiicientes degenerationem, scientias et virtutes conemur adipisci. Ad haec praecipua nostra sit intentio, ibi amplior nostra sit delectatio. Ibi vacemus, haec amemus, quibus ad beatitudinem consequendam dirigimur. Etiam intellectus delectationes purae sunt, firmae sunt, honestae sunt, tristitiam non habent annexam sicut corporales habent delectationes. Quod si sit aliqua scientia non iam tamen theorica, verum etiam quantum ad aliquid moralis et practica, diversis hominum moribus, variis ipsorum statibus se coaptans, quae non solum intellectum simul et affectum, sed etiam hominem totum, animam atque corpus perficiat, merito talis ab hominibus cunctis quaeri debet bene dispositis. Haec autem est Musica, testante Boethio, qui ait: Ceterae scientiae, cum in investigatione laborent veritatis, musica non modo speculationi verum etiam moralitati coniuncta est. Nihil <est> enim tam proprium humanitatis, quam remitti dulcibus modis, adstringi contrariis. Hinc est ut musica multas in se delectationes contineat et varias afferat utilitates”. (Speculum Musicae, livro I, capítulo I).

214

“[...] according to the sources considered so far, four features of the ancient Greek understanding of theory become clearer: (1) theory was an activity synonymous with contemplation. (2) it was performed for its own sake. (3) its essential activity is seeing (both physical and mental), and (4) it took precedence over any other human action (particularly pleasure, politics, and commerce)”. (HARNE, 2008, p. 11).

Deus. Todos os bens criados – tanto materiais como espirituais – incluindo aí o conhecimento especulativo desses mesmos bens (portanto um bem criado espiritual) devem ser valorizados e buscados somente na medida em que conduzem à contemplação de Deus ou fim último do homem215. Como veremos no capítulo a respeito da doutrina católica, a beatitude ou bem-aventurança humana é de ordem sobrenatural e consiste na visão intelectual direta da essência de Deus, denominada

visão beatífica que será obtida pela salvação, no céu após a morte. O conhecimento que

o homem pode obter de Deus nessa vida, seja pela contemplação natural seja pela fé, é uma preparação para a visão beatífica (ST, II-II, Q. 180, a. 4)216.

Como vimos acima, Jacobus logo no início de seu Speculum já cita o mote aristotélico presente logo no início da Metafísica, “todos os homens tem por natureza o desejo de conhecer”. Santo Tomás trata a seu respeito em diversos lugares, como por exemplo na questão “conhecer a Deus é o fim de toda substância inteligente” da Suma

Contra os Gentios:

Está presente naturalmente em todos os homens o desejo de conhecer as causas daquelas coisas que são vistas, Donde, por causa da admiração das coisas que são vistas, cujas causas se ocultavam, os homens por primeiro começaram a filosofar, mas encontrando a causa, descansaram. Nem permanece a inquisição quando se chega à primeira causa, e então julgamos saber perfeitamente, quando

conhecemos a primeira causa [Aristóteles, Metafísica, I, 3, 983a, 25-

26]. O homem, portanto, deseja naturalmente conhecer a primeira causa como o fim último. Ora, a primeira causa de todas as coisas é Deus. É, portanto, o último fim do homem conhecer a Deus. (SCG, III. 25)

215

Conforme essa concepção, a valorização da realidade criada em função do Criador (ou seja, a valorização dos bens criados na medida em que cada um deles reflete a Deus e conduz ao fim último do homem), não acarreta em nenhuma distorção de juízo a respeito dos bens criados, mas trata-se exatamente do juízo objetivo correspondente ao valor objetivo, intrínseco desses mesmos bens. Não se trata, portanto de uma imposição ou projeção de um valor subjetivo a priori sobre os bens criados, mas corresponde perfeitamente ao valor real e objetivo desses mesmos bens.

216

A finalidade da natureza humana é a contemplação de Deus através dos recursos naturais presente na natureza humana, ou seja, a contemplação de Deus indireta, a partir de seus efeitos (o espelho dos seres criados). No entanto, Deus desde a criação do homem o elevou a uma finalidade de ordem sobrenatural (portanto, uma finalidade acima da capacidade natural ativa do ser humano, acima de suas forças), que, longe de negar a finalidade natural, ao contrário, a realiza de um modo muito mais perfeito –

sobrenaturalmente mais perfeito, ou seja, um grau de perfeição muito além de suas potencialidades

naturais ativas. Assim, a finalidade natural não foi abolida com a ordem sobrenatural, mas foi potencializada, sobrenaturalizada, tendo sua realização condicionada e subordinada à finalidade sobrenatural, de modo que todas as potencialidades contemplativas humanas, intelectuais em ordem a Deus continuam devendo ser obrigatoriamente cultivadas (na medida da capacidade e do estado de vida de cada pessoa), e elas são como que uma preparação para a felicidade sobrenatural definitiva no Céu, conferida pela visão beatífica. Como veremos toda a preocupação com a formação intelectual na Idade Média cristã tem por base esse contexto, concepção e finalidade. A própria concepção de música estava diretamente vinculada a essa concepção, e era dela indissociável, como podemos ver.

São Tomás na Suma contra os Gentios ao tratar de que modo a visão beatífica realiza todos os desejos humanos, conferindo a ele a suficiência de todos os bens (tanto os espirituais quanto os materiais), afirma que:

Com efeito, há um desejo do homem, enquanto é intelectual, de

conhecimento da verdade que os homens perseguem com o esforço da

vida contemplativa. E esse desejo manifestamente se consumará naquela visão, quando, vendo a verdade primeira, todas as coisas que naturalmente o intelecto deseja saber, a ele se revelam, como é manifesto do que foi dito. (SCG III, 63).

Uma vez que há no homem o desejo de conhecer, e entende-se por conhecer o “conhecer pelas causas”, a inteligência só encontraria repouso ao contemplar a causa primeira, Deus, causa não causada de todas as causas, ou seja, aquela que explica, que dá a razão de ser última de todos os seres. Enquanto não houver conhecimento da Causa não causada, a inteligência ainda permaneceria em estado de admiração ou espanto217 em busca da explicação última sobre o ser.

Em seguida, Santo Tomás conclui a questão afirmando a superioridade da vida contemplativa sobre a ativa citando a passagem do Evangelho segundo São Lucas (Luc. 10:42) a respeito de Marta e Maria:

Nada nesta vida é tão semelhante a essa última e perfeita felicidade que a vida dos que contemplam a verdade, enquanto é possível nesta vida. E assim os Filósofos, que não puderam ter daquela felicidade última pleno conhecimento, [i.e., não tiveram acesso à Revelação e à pregação cristã] colocaram na contemplação, que é possível nesta vida, a felicidade última do homem.

Por causa disso também, entre as outras vidas, recomenda-se mais na divina Escritura a vida contemplativa, dizendo o Senhor:

Maria escolheu a melhor parte, a saber, a contemplação da verdade, que não lhe será tirada [Lucas 10, 42]. Com efeito, a contemplação da

verdade começa nesta vida, mas se consuma na futura, já a vida ativa e civil não transcende os limites desta vida. (SCG III, 63)

Como já vimos anteriormente, Santo Tomás afirma na Suma Teológica que “O elemento principal da vida contemplativa é a contemplação da Verdade divina, posto que este é o fim da vida humana” (ST, II-II, Q. 180, a. 4), porém, na vida presente “a nossa contemplação da verdade divina é imperfeita, como “por um espelho, em enigmas”. E isso nos dá apenas um começo de bem-aventurança, que, iniciada nesta vida, só será perfeita na outra” (Ibid.) pela visão beatífica.

217

“A admiração é um certo desejo de saber, que surge no homem porque vê o efeito e ignora a causa; ou porque a causa de certo efeito excede o conhecimento ou [excede] a potência de conhecer”. (ST I-II, q. 32, a. 8, R.).

Segundo Santo Tomás de Aquino, a vida contemplativa é mais perfeita e excelente do que a vida ativa. Em uma questão posterior, após expor as objeções à afirmação de que a vida contemplativa é superior a ativa, São Tomás as responde na Suma Teológica apresentando uma concepção bem equilibrada e harmoniosa entre a relação entre as duas:

EM SENTIDO CONTRÁRIO, diz o Senhor: “Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”. Ora, Maria simboliza a vida contemplativa. Logo, a vida contemplativa é mais excelente que a ativa.

RESPONDO. Nada impede que uma coisa, mais excelente em si mesma, seja inferior a outra sob algum aspecto. Ora, deve-se dizer que a vida contemplativa é, absolutamente falando, superior à vida ativa. Ora, deve-se dizer que a vida contemplativa é, absolutamente falando, superior à vida ativa. O que o Filósofo prova por oito razões: