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4. A contemplação de Deus no espelho da música

4.2. A concepção de música segundo o Magister Jacobus: a definição de música

Após expor suas razões para o estudo da música, no mesmo capítulo, Jacobus apresenta de um modo geral o objeto que será estudado em seu tratado:

Nesta obra intitulada Espelho da Música vós podereis com os olhos do intelecto ver refletidas como num espelho [speculari] algumas questões tanto da música teórica como da prática, tanto em sua concepção geral como particular222.

Logo mais adiante, Jacobus complementa essa afirmação especificando sobre o que considera ser a concepção geral de música e afirmando que ela tem por objeto todas as coisas, inclusive a Deus:

Portanto, o objeto desta obra será a música em sua concepção geral, na medida em que ela abarca todas as coisas: Deus e as criaturas, incorpóreas e corpóreas, celestiais e humanas, e as ciências teóricas e práticas223.

Mais adiante, no segundo capítulo do primeiro livro, intitulado “O que é a

música”, Jacobus começa citando a definição de “faculdade harmônica”, de Boécio e a

definindo como a atividade intelectual de ponderar a relação intervalar entre as notas musicais:

Segundo Boécio, no livro quinto de seu livro sobre a Música, “... a faculdade harmônica é a que pondera a concórdia entre os sons agudos e graves”, isto é, é a ciência graças a qual qualquer um pode ponderar com facilidade a concórdia resultante da combinação simultânea de sons agudos e graves, e julgar a respeito da natureza desta. Pois a ciência, ainda que seja hábito, facilita também o ato. Mas Boécio diz: “dos sons agudos e graves” e não “do som agudo e grave”, porque a música não considera o som em si mesmo, mas o som subordinado ao número [sonum numeratum]224. Assim, a consonância que é a propriedade principal da investigação musical, não diz respeito a um

221

Trataremos de modo mais detalhado dessa questão no capítulo sobre a doutrina católica.

222 “Hoc autem opus "Musicae Speculum" dixerim, in quo mentis oculis aliqua speculari poterunt, ad

musicam tam theoricam quam practicam, generaliter specialiterque sumptam spectantia”. (Speculum

Musicae, livro I, capítulo I). 223

“Musica enim, generaliter sumpta, obiective quasi ad omnia se extendit, ad Deum et ad creaturas, incorporeas et corporeas, coelestes et humanas, ad scientias theoricas et practicas”. (Speculum Musicae, livro I, capítulo I)

224

som apenas, mas à combinação de muitos. Assim pois, a música tem que considerar que concórdia produzem muitos sons simultâneos e se esta é boa ou má, ou boa, melhor ou ótima, e tem que considerar suas propriedades próprias e comuns, assim como suas proporções numéricas. E também diz Boécio: “dos sons agudos e graves” porque pode um som agudo unir-se a outro som agudo, ou um grave a outro grave, o que produz consonância de sons iguais que recebe o nome de uníssono. Mas um som agudo pode unir-se a um som grave, o que produz uma consonância de sons desiguais, como é o caso do

diatessaron, diapente, etc225. (Speculum Musicae I, II)

Jacobus segue então citando a definição de música de Santo Isidoro de Sevilha, que se vale da concepção de modulatio:

Contudo, Isidoro no terceiro livro das Etimologias226 dá a seguinte definição: “... música é a destreza na modulação, e se compõe de som e canto”, isto é, é a ciência pela qual se adquire capacidades para modular, ou o que é o mesmo, para cantar com harmonia. Isidoro diz

som referindo-se aos instrumentos artificiais, e canto referindo-se aos

instrumentos naturais a partir dos quais se forma a voz. As duas descrições ou definições de música mencionadas concordam entre si e dizem respeito a um gênero determinado de música: a música instrumental227, a qual os outros chamam de música sonora228.

As definições de Boécio e de Santo Isidoro se restringiriam, portanto, somente à

musica instrumentalis, à música propriamente sonora. Portanto, não poderia ser uma

definição completa da música em seu todo. Para essa definição completa, Jacobus vale- se da definição dada por Robert Kilwardby (c. 1215 – 1279) em sua obra De Ortu

Scientiarum (“Do nascimento das ciências”):

Por essa razão, a música em uma acepção geral pode ser descrita e definida nestes outros termos que encontramos no livro De Orto

Scientiarum de Roberto: “...música é a perfeição da alma especulativa,

225

“Est autem musica, secundum Boethium quinto Musicae suae libro, facultas harmonica acutorum sonorum graviumque concordiam perpendens, idest scientia, qua quis potens est faciliter acutorum sonorum graviumque simul collatorum perpendere concordiam et, de ea, qualis sit, iudicare. Scientia enim, cum sit habitus, facilitatem dat in actu suo. Dicit autem: sonorum acutorum graviumque, et non "soni acuti gravisque", quia non considerat musica sonum per se sumptum, sed sonum numeratum. Consonantia enim, cum sit passio principalior in musica quaesita, non respicit sonum unum, sed plures ad invicem comparatos. Habet igitur musica perpendere, plures soni simul comparati qualem faciant concordiam; habent vel illam bonam, vel malam, bonam, meliorem, vel optimam, et illarum habet considerare proprietates proprias et communes, et proportiones numerales. Adhuc dicit: sonorum acutorum graviumque. Potest autem sonus acutus ad acutum sibi coaequalem comparari, vel gravis ad gravem, et fit tunc consonantia vocum aequalium, quae dicitur unisonus; vel acutus ad gravem, et fit tunc consonantia vocum inaequalium, ut sunt diatessaron, diapente et huiusmodi”.(Speculum Musicae, I, II).

226

III, 15,1.

227

A musica instrumentalis.

228

“Isidorus autem, tertio Etymologiarum, sic ait: Musica est peritia modulationis sono cantuque consistens, idest scientia, qua quis peritus est modulare, idest dulciter cantare. Dicit sono, quantum ad instrumenta artificialia, cantu, quoad naturalia quibus vox formatur. Duae tactae musicae descriptiones vel definitiones satis inter se conveniunt et quoddam determinatum genus musicae respiciunt, musicam scilicet instrumentalem, quam alii sonoram nuncupant”. (Speculum Musicae, I, II).

na medida em que seu sujeito229 é o conhecimento da modulação harmônica ou de quaisquer outras realidades que, em virtude de uma modulação harmônica, estejam sujeitas à proporcionalidade”230.

Essa definição da música como ciência da modulatio remonta a Santo Agostinho, que a definia em seu tratado De Musica como scientia bene modulandi (“ciência do bem modular”) ou scientia bene movendi (“ciência do bem mover”). O tratado De Musica é escrito na forma de diálogo entre mestre (Santo Agostinho) e um discípulo. Após afirmar que a música é ciência do “modular bem”, Santo Agostinho pergunta ao discípulo a respeito do que é “modular” e esse responde que “[...] vejo que ‘modular” se diz a partir de ‘modo’, quando em todas as coisas bem feitas há de se preservar o ‘modo’[modus], e muitas coisas [...]” (De Musica, I)231, e mais adiante afirma que por “modulação” deve-se entender uma habilidade ou destreza no movimento (Ibid.)232. Trata-se de um movimento ordenado, que por essa razão é conforme um modus. E também:

Música é o conhecimento do mover apropriadamente [scientia bene

movendi]. Isto é assim porque tudo quanto for movido

harmoniosamente e que tenha mantido as medidas de tempos e intervalos [quidquid numerose servatis temporum atque intervallorum

dimensionibus moveatus] pode já ser dito mover bem (pois ele já

causa deleite, e por essa razão já não é chamado impropriamente de

229

A terminologia científica moderna costuma nomear o assunto de uma ciência como seu “objeto”, enquanto, no aristotelismo latino, este era denominado como seu “sujeito”. Para evitar confusão, é necessário um esclarecimento, que fazemos ao reproduzir a explicação dada por Maurício Chiarello em seu artigo Ciências Físico-matemáticas em Tomás de Aquino (CHIARELLO, 1997): “O termo sujeito conserva em português o sentido de subiectum tal como empregado por Tomás de Aquino na Expositio [super librum Boethii De Trinitate]: aquilo de que se trata, o tema ou objeto de consideração. É nesta acepção que o empregamos neste trabalho, muito embora conscientes de que hoje em dia esta conotação seja bem pouco usual e possa mesmo suscitar alguma confusão, visto que, na terminologia científica moderna, sujeito designa especificamente o agente do conhecimento, enquanto o subiectum tomista remeteria, se tal transposição fosse possível, ao objeto do conhecimento propriamente dito. De qualquer modo, a versão de subiectum por objeto nos parece de um anacronismo de todo inadmissível, entre outras por remeter a uma clara distinção sujeito-objeto que não se consumara no tempo de Tomás de Aquino” (CHIARELLO, 1997, p. 77, n. 4). No entanto o termo “objeto” (obiectum) também era usado pelo Aquinate, mas para indicar as verdades à respeito do subiectum de uma ciência, como explica uma nota presente na edição brasileira da Suma Teológica: “Segundo Aristóteles, o sujeito (sub-jectum) é o que está por baixo, o ser real que a ciência procura conhecer, ao passo que o objeto (ob-jectum) são verdades que se enunciam a respeito do sujeito da ciência, a saber, as conclusões. [...]” (in AQUINO, 2001, v. 1, p. 147, nota r).

230

“Ideo musica, generaliter sumpta, describi vel definiri potest aliter sic, ut vult Robertus in libro De Ortu Scientiarum: Musica est scientialis animae perfectio, quoad cognitionem armonicae modulationis rerum quarumcumque aliqua modulatione invicem coaptarum”. (Speculum Musicae, Livro I, Capítulo II).

231

“[...] veo que ‘modular’ se dice a partir de ‘modo’, cuando en todas las cosas bien hechas se ha de preservar o ‘modo’ [...]” (AGUSTÍN, 2007, p. 90-91).

232

“M. – Luego, no incongruentemente se le dice ‘modulación’ a una especie de pericia en el movimiento, o en todo caso a aquello por lo que resulta que algo se mueve bien. No podemos, en efecto, decir que algo se mueve bien, si no observa el ‘modo’” (AGUSTÍN, 2007, p. 93).

modulação [modulationi]”233. (Santo Agostinho, De Musica I, apud JESERICH, 2013, p. 58)

Por sua vez, essa concepção da música como scientia bene modulandi remonta ao erudito da antiguidade romana Marcus Terentius Varro, ou Varrão (116-27 a.C)234. Segundo Rita de C. Fucci Amato, em sua investigação sobre o De Musica de Santo Agostinho:

A definição de música como “scientia bene modulandi” remonta a Varrão (116-27 a.C), o mais universal e erudito dos escritores latinos que, com a obra De lingua latina foi o criador da ciência da linguagem em Roma, exercendo uma enorme influência sobre todos os gramáticos posteriores.

A partir disso, Agostinho entendeu a música como uma ciência nobre, fruto da razão, distante da pura imitação e da virtuosidade dos histriões. Realizou, dessa forma, uma clara distinção entre música autêntica e música vulgar. (AMATO, 2015, p. 186).

E também segundo Henri Daveson (pseudônimo usado por Henri Marrou em algumas de suas obras):

[...] a escola antiga (Varrão [Marcos Terentius Varro, escritor latino, criador da ciência da linguagem em Roma]) definia a música “a arte de bem modular”, “scientia bene modulandi”. Modular, comenta o Mestre, é uma certa habilidade técnica de se mover (através do tempo e da escala sonora), um movimento plenamente livre, ou seja que não se subordina a nenhum fio estranho a ele, sem realizar nenhuma obra; um movimento que se cumpre por ele mesmo e que, visando apenas a sua perfeição, encanta. (DAVENSON, 1942, p. 16 apud AMATO, 2015, p. 205).

A concepção de modulatio acaba por implicar também numa separação entre música e palavra, de modo que, através dessa concepção, a música, ainda que cantada, poderia ser concebida sem apelo ao texto, mas somente por sua organização sonora – seja métrica ou melódica – entendida então como modulatio:

O estudo da palavra elaborado no De Musica encontra novas cores sob a perspectiva agostiniana da linguagem: Agostinho concebeu a finalidade mnemônica da palavra, sendo a música não necessariamente integrada pela palavra, mas essencialmente pelas modulações, que exprimem o radical do prazer estético proporcionado a partir da fruição de uma obra musical. Daí ser a musica a ciência do

bem modular. (AMATO, 2015, p. 184-185).

233

“Music is the knowledge of moving properly [scientia bene movendi]. This is so because whatever is harmoniously moved and has kept the measurements of times and intervals [quidquid numerose servatis

temporum atque intervallorum dimensionibus moveatur] can already be said to move well (for it already

delights, and for this reason not improperly is it already called modulation [modulation])”.

234

No entanto, no tratado De Musica, Santo Agostinho se ocupou somente da parte métrica da música, concebendo a ordem quantitativa aritmética que a constitui e se manifesta na métrica da poesia e da música como objeto da disciplina musical, e sendo essa organização compreendida conforme o conceito de modulatio:

O pé métrico é o assunto privilegiado da teoria da música na medida em que o metro é uma manifestação concreta das ordens numéricas que são o assunto da musica disciplina como scientia, e algo especialmente adequado aos sentidos humanos235.

Embora não tenha conseguido escrever a segunda parte do tratado – que seria dedicada a questões melódicas, harmônicas – Santo Agostinho não tratou sobre como o conceito de modulatio seria aplicado à organização das alturas sonoras, mas somente à organização métrica do discurso musical. No entanto, isso não quer dizer que esse conceito – que segundo o próprio Santo Agostinho, é o objeto de estudo da própria música – não diga respeito também à organização das alturas. Tanto que disso se ocuparam Boécio e demais tratadistas posteriores, incluindo Jacobus.

Segundo George Harne, assim se compreende o conceito de scientia bene

modulandi:

Raymond Erickson também sugere que a definição de música que é exposta tão proeminentemente em diversos tratados antigos – scientia

bene modulandi – “implica em regular o som com uma precisão e

consciência informada por leis matemáticas subjacentes à disciplina da música” 236.

E, quando ao conceito de modulatio, Jeserich afirma que:

Modulari é dito ser o derivado verbal de modus, “medida” ou

“forma”. A qualidade de toda obra bem sucedida consiste, declara apodicticamente o magister, na preservação da medida correta. A medida correta o verdadeiro objeto da musica como uma disciplina; a palavra modulari na definição designava então aquilo que qualifica um movimento (motus) enquanto bem sucedido: “Consequentemente, modulação [modulatio] não é impropriamente chamada uma certa habilidade em mover, ou o meio pelo qual algo é bem movido. Não podemos dizer que algo é bem movido se ele não mantém sua medida [sit modum non servat]”. [...] 237.

235

“The metrical foot is music theory’s privileged subject insofar as meter is a concrete manifestation of the numerical orders that are the subject of musica disciplina as scientia, and one especially suited to human senses”. (JESERICH, 2013. p. 66).

236

“Raymond Erickson also suggests that the definition of music that features so prominently in very many early treatises – scientia bene modulandi – “implies regulating sound with an accuracy and awareness informed by mathematical laws underlying the discipline of music” see Raymond Erickson, trans. “Scolica enchiriadis” in Musica enchiriadis and Scolica enchiriadis (New Haven, Yale University Press, 1995), 33, n.2”. (HARNE, 2008, p. 33).

237

“Modulari is said to be the verbal derivative from modus, “measure” or “form”. The quality of every successful work consists, the magister declares apodictically, in the preservation of the right measure. The right measure is the true object of musica as a discipline; the word modulari in the definition thus

A edição espanhola do De Musica de Santo Agostinho, em uma nota de rodapé, apresenta a seguinte explicação etimológica a respeito do conceito de modulatio:

[...] El verbo latino modulari, al igual que los sustantivos modulator o

modulatio, no se corresponden con nuestros “modular” o

“modulación”, sino que apuntan a la articulación estructural (modus = “medida”, “demarcación”, “delimitación”) que entraña la música en sus diversos aspectos, melódico o rítmico (así como a la medida de los versos o de los movimientos en la danza). Así, pues modulari y

modulatio designan tanto la organización melódica como la estructura

proporcional de tonos, intervalos, intensidades o duraciones implícitas en cualquier hecho musical y en el sistema de la música. [...] Modulari y modulatio, formaciones sobre modulus, han pervivido como tecnicismos (modular, modulación) en el lenguaje de la moderna doctrina armónica [...], pero con un significado distinto del que tienen aquí. (AGUSTÍN, 2007, p. 90, n. 9)

Na nota seguinte, afirma-se que:

Más precisamente, al igual que modulamen o modulamentum, a partir de modulus (módulo), un diminutivo de modus; directamente sobre

modus se forman verbos como moderor o modifico (reglar, establecer

“medidas”), sustantivos como modificatio, moderatio, o adjetivos como modestus o modicus. Todas estas palabras forman parte de una gran familia léxica que gira en torno a la idea de medida.

Modus, como tecnicismo, con el sentido de “medida” o “unidad

de medida” tratándose del lenguaje o de la música, es decir, de un sistema de comunicación mediante el sonido, designa cualquier unidad en que se articula dicho sonido (que por esencia ha de ser “discontinuo”) en cualquiera de sus facetas, tonal, intensiva o duracional. [...] Modus, por tanto, al igual que modulus [...], designa las medidas o estructuras rítmico-melódicas en las que se articulan los sonidos musicales. [...]

Ante esta situación y tratando de evitar en lo posible ambigüedades y malentendidos, nos ha parecido oportuno traducir siempre modus, en cuanto que término de hondo arraigo en la terminología musical, por “modo” y entrecomillarlo, para dar así a entender que su sentido, en principio, es el más general de “patrón”, “estructura”, “forma musical”, y no el nuestro específico de “modo”. [...]. (AGUSTÍN, 2007, p. 90-91, n. 10).

Ao final de sua obra The Cultural Context of Medieval Music (2011), Nancy Van Deusen apresenta um glossário em que define os conceitos de modulatio e de

modus. Modulatio é apresentado como tradução de armonia, e modus como associado

ao movimento ou processo de mudança:

designates what qualifies a movement (motus) as successful: ‘Therefore, modulation [modulatio] is not improperly called a certain skill in moving, or the means by which something is moved well. We cannot say that something is moved well if it does not keep its measure [sit modum non servat].’[...]” (JESERICH, 2013, p. 58-59).

Modulatio: tradução latina do grego armonia, ou seja, a reunião de

duas entidades discrepantes (como duas notas musicais) de uma maneira bem considerada e apropriada. Indica a conexão entre coisas particulares, sobretudo, ligação apropriada (também dentro da ordo).

Modus: termo latino para o grego pathos, passio, effectus (outras

traduções de pathos), maneiras de movimento identificadas por e com características distintas (figurae). Modus também tem a conotação de processo e mudança dentro desse processo. Modus contém, mas não expressa necessariamente, substância emocional, tal como “dignidade” (modo dórico) ou “alegria histérica” (modo frígio) ou “contentamento tranquilo” (modo mixolídio)238.

A primeira definição acima define modulatio como uma relação entre coisas diversas. A segunda definição define modus como a maneira ou o processo de um movimento ou mudança (cabe ressaltar que movimento ou mudança são definidos por sua vez pelo pensamento aristotélico como passagem da potência ao ato). Também segundo Van Deusen:

Justamente essa questão da identidade da música é a consideração de Agostinho no próximo capítulo do De Musica, livro I, capítulo II, em que ele coloca a questão que ressoou através de séculos de escrita à respeito da música como uma disciplina analógica:

“Musica quid sit, modulari quid sit.” (o que é música, e o que

constitui a reunião de sons musicais de uma maneira apropriada e conveniente?). A música é uma disciplina que possui tanto força quanto razão – atributos contraditórios que podem tornar-se reconciliados, implicados no conceito/termo modulatio. “Musica est

scientia bene modulandi... si mihi liqueret quid sit ipsa modulatio”

(Música é a ciência de reunir de modo apropriado entidades opostas, discretas de modo que se experimente, assim como se registre no intelecto, que esse processo tenha de fato ocorrido). Não há nenhuma expressão equivalente completamente satisfatória para modulatio, mas é possível ouvi-la. Como é possível de outro modo compreender o termo exceto ao cantar, e ao dançar, ou seja, modulatio conforme modos de experimentar o movimento (i.e., modus): “sed quid video

modulari a modo esse dictum, cum in omnibus bene factis modus servandus sit, et multa etiam in canendo ac saltando quamvis delectent.” (Notamos o que é que faz a música eficaz porque tudo o

que a faz assim é delicioso – absolutamente deleitável). Agostinho continua (no capitulo III), “Bene modulari quid sit, et cur in musicae

definitione positum cur ergo additum est, bene; cum jam ipsa modulatio nisi bene moveatur.” (A música, então, consiste em porções

completas de som, reunidas juntas pelo desígnio na adequação

238

“modulatio: Latin translation of Greek armonia, that is, bringing together in a well-considered, appropriate manner two completely disparate entities (such as tones). Indicates connection between particular things, most of all, appropriate joining (also within ordo).

Modus: Latin term for Greek pathos, passio, effectus (other translations of pathos), manners of movement

identified by and with distinguishing features (figurae). Modus also has the connotation of process and change within that process. Modus contains, but does not necessarily express, emotional substance, such as “dignity” (Dorian mode) or “hysterical joy” (Phrygian mode) or “quiet contentment” (Mixolydian mode)”. (VAN DEUSEN, 2011. p. 188).

modulada, que tanto necessita quanto apresenta movimento. Na medida em que isso se torna razoável, a música é uma disciplina). Mas a música é também capaz de “relaxar e reparar a mente pelo seu poder moderador aprimorado e por sua voluptuosidade” (“relaxandi ac

reparandi animi gratia moderatissime ab iis aliquid voluptatis”). O cantus exemplifica a “suavidade”: a realização do mover bem de uma

nota para a outra, que é a coesão do som com o tempo239.

Poderíamos, portanto, compreender por modulatio a organização lógica dos sons na construção de uma obra musical. Uma vez que Santo Agostinho a associa com a