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2. A concepção medieval de música

2.1. A musica speculativa

Portanto, as artes práticas se ordenam às [ciências] especulativas, e semelhantemente toda operação humana à especulação do intelecto, como ao fim. Ora, em todas as ciências e artes ordenadas, parece pertencer o último fim àquela, que é preceptiva e arquitetônica das outras, como a arte governativa, à qual pertence o fim do navio, que é o uso dele, e é arquitetônica e preceptiva com respeito à fabricação de navios. Desse modo, porém, se comporta a filosofia primeira [a metafísica] com relação às outras ciências especulativas, pois dela todas as outras dependem, como dela recebendo seus princípios, e direção contra os que negam os princípios, e a mesma filosofia primeira se ordena toda ao conhecimento de Deus como ao fim último, donde, também se chama ciência divina. O conhecimento divino é, pois, o fim último de todo o conhecimento e operação humanos.

Santo Tomás de Aquino (SCG, III, 25).

Como vimos na introdução, o tratado Speculum Musicae apresenta uma abordagem da música conforme a perspectiva da musica speculativa. Entende-se por

musica speculativa ou theorica aquela área da música necessária enquanto pré-requisito

à formação do filósofo e teólogo católico na Idade Média (SEAY, 1965. p. 3). A musica

speculativa era uma disciplina constitutiva do programa das artes liberais, conjunto de

disciplinas básicas consideradas essenciais para a formação humana na Idade Média e que visavam preparar o aluno para o estudo da filosofia e teologia. Trata-se não somente do estudo daquilo que hoje se convenciona chamar de “teoria musical”, mas, sobretudo, dos princípios filosóficos, teológicos – portanto especulativos e abstratos – que regem a obra musical concreta, isto é, sonora (a musica instrumentalis) e do modo como esses princípios a ela se aplicam. Esse estudo especulativo da música baseia-se numa concepção de que a música pode irradiar, refletir – em suma, ser governada e constituída por – princípios correspondentes a uma concepção de mundo e natureza (musica mundana), de natureza humana (musica humana) e de Deus e das coisas transcendentes, espirituais e separadas da materialidade (musica coelestis vel divina)67. Segundo Manuel Pedro Ferreira, os medievais concebiam a música como símbolo audível, sonoro da ordem ontológica estabelecida por Deus (FERREIRA, 2002, p. 1). Encontramos essa concepção no tratado De Institutione Musica, de Boécio (480-525),

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As concepções de musica instrumentalis, mundana e humana foram desenvolvidas por Boécio (480- 525) em sua obra De Institutione Musica. A concepção de musica coelestis vel divina consiste num desenvolvimento posterior, feito pelo Magister Jacobus no tratado Speculum Musicae, (visando complementar a classificação de Boécio ao levar em conta a reorientação escolástica aristotélica da filosofia e da teologia do século XIII) como veremos a seguir.

considerada a principal obra sobre musica speculativa na Idade Média, e considerada também uma das principais fontes de Jacobus juntamente com a herança do sistema educacional das artes liberais da antiguidade greco-romana, e o aristotelismo latino escolástico do século XIII (SLOCUM, 1988, p. 105):

O livro mais importante para o estudo da música era o De [Institutione] Musica de Boécio, que moldou a filosofia musical na Idade Média. Boécio forneceu a visão da música como uma divisão tripartite em musica mundana, musica humana, e musica

instrumentalis. Musica mundana se referia à harmonia do

macrocosmo; musica humana definia as maneiras pelas quais essas relações harmônicas eram exemplificadas no microcosmo – a alma e o corpo do homem; e a terceira categoria, musica instrumentalis, referia-se às proporções harmônicas enquanto elas apareciam na música que realmente soava.

Os teóricos medievais, incluindo Jacques [Jacobus], acreditavam que a musica instrumentalis deve repercutir a musica

mundana. Tendo esse fim em vista, eles se dedicaram ao estudo da

teoria pitagórica, que descrevia como as proporções do som musical refletiam as leis cósmicas. Eles se uniram aos filósofos e teólogos em seu interesse com o estabelecimento das relações numéricas dos mundos supramundano, eclesiástico e temporal. (SLOCUM, 1988. p. 170-171) 68.

Essa concepção de música não tem sua origem com Boécio, mas remonta à própria tradição da teoria musical da antiguidade grega, sobretudo ao pensamento pitagórico. Como se sabe, é atribuída a Pitágoras (cerca de 580-506 a.C.) a descoberta do fundamento matemático da música, a saber, a descoberta de que as relações entre as notas musicais são relações de proporção numérica ou quantitativa69. A respeito do pensamento pitagórico-musical, Gerardo Huseby afirma que:

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“The most important textbook for the study of music was the De musica of Boethius, which shaped musical philosophy in the Middle Ages. Boethius provided the view of music as a tripartite division into

musica mundana, musica humana, and musica instrumentalis. Musica mundana referred to the harmony

of the macrocosm; musica humana defined the ways in which these harmonic relations were exemplified in the microcosm— the soul and body of man; and the third category, musica instrumentalis, concerned harmonic proportions as they appeared in music which actually sounds.

Medieval theorists, including Jacques, believed that musica instrumentalis must echo musica

mundana. Toward this end they devoted themselves to the study of Pythagorean theory, which described

how the proportions of musical sound reflected the cosmic laws. They joined the philosophers and theologians in their concern with establishing the numerical relationship of the supramundane, ecclesiastical, and temporal worlds”. (SLOCUM, 1988. p. 170-171).

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Segundo Lia Tomás: “A musicologia reporta a Pitágoras (século VI a.C.) o papel de ter sido o primeiro filósofo a organizar aquilo que, posteriormente, se chamará em linhas gerais, de teoria musical, apesar dos dados contraditórios que envolvem este personagem. O primeiro deles se refere ao fato de não ter chegado até nós nenhum relato escrito por seu próprio punho, pois o que chegou foram materiais de natureza secundária: relatos de autores contemporâneos, como Heródoto, Heráclito e Xenófanes; de autores que teriam sido alunos ou seguidores de suas doutrinas, denominados Pitagóricos; ou de autores posteriores, pitagóricos ou não”. (TOMÁS, 2005, p. 14). Conforme essa visão atribui-se a Pitágoras a descoberta das relações entre matemática e música, a saber, que as notas musicais e a relação entre elas (os intervalos musicais) são na verdade constituídas por números e relações de proporção ou

As relações matemáticas existentes entre os intervalos musicais foram buscadas e encontradas em todo o universo, e as complexas inter- relações possíveis entre os intervalos consonantes resultaram na noção de harmonia. A presença das mesmas proporções matemáticas em todos os níveis permitiu postular a unidade existente entre o ser humano e o cosmo; ao gerar auditivamente tais proporções, a Música constituiu-se na disciplina experimental básica desse sistema filosófico. Mas não se trata da música audível, a de cantores e instrumentistas, mas de um ente abstrato, a mais alta forma do conhecimento, cujas relações e leis internas são as mesmas que reconhecemos na alma humana e no universo. Esse conceito matemático e metafísico de música permite, assim, o acesso à harmonia cósmica, ao mesmo tempo núcleo central do estudo anatômico e espiritual do homem e do estudo astronômico do universo, de um micro e de um macrocosmo. (HUSEBY, 1999, p. 253).

Segundo René Taton: “em sua origem, as matemáticas pitagóricas são dominadas por um pressuposto filosófico: a ideia de que tudo é número e que os números são ‘os modelos das coisas’ ”(TATON, 1994, p. 227 apud TOMÁS, 2005, p. 15)70. Para os pitagóricos “os números eram uma realidade independente responsável pela harmonia, o princípio que governa a estrutura do mundo, e simbolizavam ainda qualidades morais e outras abstrações” (TOMÁS, 2002, p. 92). Dentre os principais representantes dessa linha de pensamento, encontramos Filolau, “[...] principal filósofo pitagórico da segunda metade do século V [...]” (TOMÁS, 2005, p. 15). Eis uma citação desse pitagórico:

Mas pode-se ver a natureza do número e sua potência em atividade, não só nas (coisas) sobrenaturais e divinas, mas ainda em todos os

desproporção. Segundo Huseby: “Ao se chegar à época da escola pitagórica, surge a ideia de uma música que não se ouve, representada por sua feição matemática, que é considerada um dos mais altos graus do pensamento filosófico. Já na obra de Pitágoras (cerca de 580-506 a.C.), encontramos o conceito de número utilizado para a compreensão de todo o universo, e explicável em termos de intervalos musicais. Tomando-se a observação empírica como ponto de partida, sua filosofia abarca desde o mundo cosmológico, com as relações existentes entre os objetos celestiais observados pela Astronomia, até o próprio ser humano, com sua anatomia e seu espírito”. (HUSEBY, 1999, p. 253). As mesmas relações numéricas que governariam a construção musical seriam aquelas que governam o cosmos, Essas relações seriam expressas pela tetraktys, constituída dos números 1, 2 3 e 4, e consideradas como proporções sagradas presentes no cosmos. Huseby continua: “Através da experimentação, base de seu pensamento, Pitágoras descobriu que os intervalos musicais correspondem a proporções matemáticas específicas. Para isso, partiu da audição de sons executados em um instrumento experimental de uma corda [o monocórdio] e da observação das distâncias requeridas ao tanger a corda para produzir os sons reconhecíveis auditivamente como consonâncias. Como se pode comprovar com facilidade, a oitava aguda requer a metade do comprimento de corda próprio do som básico, isto é, a proporção 2:1; a quinta e a quarta, as proporções 3:2 e 4:3, respectivamente, e assim, sucessivamente, todos os intervalos sonoros possíveis podem ser apresentados em seus termos matemáticos”. (Ibid.).

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Lia Tomás comenta sobre a afirmação de Taton que: “Os números eram entendidos como uma realidade independente, e, por isso, eram responsáveis tanto pela harmonia, o princípio que governa a estrutura do mundo, como também simbolizavam as qualidades morais e outras abstrações. Acrescente- se, ainda, o fato de que para os pitagóricos não havia nenhuma diferença entre princípio ontológico, realidade sensível e a conexão abstrata dos números”. (TOMÁS, 2005, p. 15).

atos e palavras humanos, em qualquer parte, em todas as produções técnicas e na música. (Filolau, fragmento 11, in: Téo de Esmirna, 106,

10 apud TOMÁS, 2005, p. 15).

Lia Tomás afirma que na citação acima, “[...] Filolau deixa transparecer o duplo aspecto que atravessa toda a filosofia pitagórica, ou seja, o aspecto filosófico-científico e o religioso de sua doutrina, os quais quando atribuídos à música eram inseparáveis, pois articulados em conjunto” (Ibid.). Veremos que esse duplo aspecto também se manteve na tradição da musica speculativa medieval, embora dentro de um quadro de referência cristão.

Além disso, é importante notar que o modo como os pitagóricos concebiam os números e, portanto, as ciências matemáticas, era diferente do nosso, pois eles não representavam os números abstratamente como uma coleção de unidades como se faz hoje em dia71, mas sim “de forma concreta – pelas figuras geométricas e pela disposição de pedras (ou pontos)” (TOMÁS, 2002, p. 98). No entanto, assim como a representação geométrica permitiria a verificação da harmonia do cosmos no plano espacial, “a música permitiria essa mesma verificação em um plano sonoro: pela harmonia sensível, produzida pela vibração das cordas dos instrumentos, pode-se constatar e reconhecer a harmonia inteligível, aquela que consiste nos números” (Ibid., p. 100). Portanto, “a demonstração da harmonia do cosmos não se restringe a essa verificação espacial, mas inclui a verificação auditiva” (Ibid. p. 101). Boécio também afirma algo na mesma linha (sobre a função cognitiva da música a partir da audição) quando, logo no primeiro capítulo de seu De Institutione Musica diz: “De fato, nenhuma via ao entendimento acolhe mais princípios do que a dos ouvidos” 72. Vemos que a música era concebida como uma ferramenta epistemológica que permitiria o acesso àquilo que é inteligível através daquilo que é sensível (no caso, audível), e essa concepção manteve-se na

musica speculativa medieval como vemos pela afirmação de Boécio e como

continuaremos vendo mais adiante.

Encontramos a concepção de música como harmonia universal também, naturalmente, em Platão, como resumida por Enrico Fubini:

A harmonia da música, segundo Platão, espelha a harmonia da alma e, simultaneamente, a do Universo. Por isso, o seu conhecimento representa quer um instrumento educativo no sentido mais nobre do termo, uma vez que pode dar harmonia ao equilíbrio perturbado da

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A sequência de algarismos numéricos (1, 2, 3, 4, etc..), tal como a representamos, é uma sequência constituída pela repetição da unidade mediante a adição progressiva do número 1, uma vez que, após começarmos com 1, temos 2 (1+1), 3 (1+1+1) e assim por diante. (Cf. TOMÁS, 2002, p. 98).

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alma, quer um instrumento de conhecimento da essência mais profunda do Universo, na medida em que a harmonia representa a ordem que reina no cosmos. A música torna-se, então, o símbolo desta unidade e desta ordem divina da qual participam a alma e o Universo. Porém, esta música não é a dos instrumentos, não é a dos músicos executantes, mas sim aquela puramente pensada como harmonia. Assim Platão pode afirmar na República [Repubblica, 591. d], isto é, no diálogo onde proclama mais energicamente a condenação da música e das artes em geral, que “o verdadeiro músico” é aquele que realiza “o perfeito acorde da alma”. O pressuposto desta doutrina é de que a harmonia que constitui a música é do mesmo tipo da harmonia que rege a alma do homem e o Universo73 [Timeu, 35b; 88c]. (FUBINI, 2008, p. 75-76).

Também no diálogo Fédon de Platão encontra-se uma peculiar concepção da filosofia como a mais alta espécie de música, o que nos auxilia a esclarecer os antecedentes que fundamentaram o posicionamento da música como uma parte da filosofia por Jacobus, no oitavo capítulo do primeiro livro do Speculum Musicae, como veremos mais adiante:

Várias vezes, no curso de minha vida, fui visitado por um mesmo sonho; não era através da mesma visão que ele sempre se manifestava, mas o que me dizia era invariável: “Sócrates”, dizia-me ele, “deves esforçar-se para compor música!”. E, palavra! sempre entendi que o sonho me exortava e me incitava a fazer o que justamente fiz em minha vida passada. Assim como se animam corredores, também, pensava eu, o sonho está a incitar-me para que eu persevere na minha ação, que é compor música: haverá, com efeito, mais alta música do que a filosofia, e não é justamente o que eu faço? (Fédon, 60e-61a).

Esse modo de conceber a música como uma atividade intelectual filosófica tem relação com o próprio conceito de mousiké (termo grego para música)74. Segundo Lia Tomás (TOMÁS, 2005, p. 13-14), esse era um conceito extremamente amplo, abrangente e multiforme, articulando diversas áreas do saber e da atividade humana. Dentre as diversas compreensões de mousiké temos aquela conforme a qual “[...] o termo pode ser compreendido como música no sentido mais convencional, pois se refere aos ensinos específicos da área, mas também pode ser usado como sinônimo de

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O diálogo Timeu de Platão ficou conhecido na Idade Média devido a sua tradução (parcial, somente até o trecho 53c) para o latim feita por Calcídio, filósofo do século IV d. C. Em uma passagem considerada por muitos a mais difícil dessa obra (35b-39b), Platão apresenta a descrição da criação da “alma do mundo” e da “alma humana” pelo Deus criador, que as fez conforme proporções matemático-musicais. Cf. GODWIN, 1993, p. 3-4.

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Um estudo profundo e abrangente a respeito da concepção de mousiké na teoria musical da antiguidade grega e seu parentesco com a concepção de lógos (λόγος) é apresentado na obra (da qual citamos várias passagens no presente capítulo): Ouvir o lógos: música e filosofia, de Lia Tomás (2002).

filosofia75; finalizando, a palavra mousa, de onde provém mousiké, pode ser associada ao verbo manthanein, “aprender”, que por coincidência é também o verbo do qual se origina a palavra ‘matemática’ ” (TOMÁS, 2005, p. 13-14).

É interessante comparar essa associação com o verbo manthanein, “aprender” (uma atividade intelectual) com a explicação etimológica dada por Jacobus, a partir das

Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, no quarto capítulo do primeiro livro do Speculum Musicae, intitulado “De onde provém o nome da música”, pois ambas dizem

respeito a uma atividade intelectual. Dentre várias interpretações etimológicas (sem entrarmos aqui na discussão a respeito da fundamentação objetiva delas, de fato um tanto controversa), a que nos interessa é apresentada no final da passagem abaixo, e diz respeito a “inquirir com o pensamento”, associando-a, portanto com uma atividade intelectual:

Segundo Isidoro, a palavra “música” é derivada de “Musas” e estas, por sua vez, de muson, que significa “buscar”, porque por meio delas os antigos buscavam a faculdade da poesia e a modulação da voz como verdadeira ciência musical. E, sendo o som um objeto que se percebe através dos sentidos, ele flui com o movimento através do tempo em direção ao passado e é, todavia, impresso na memória. Por isso que a imaginação dos poetas fez as Musas filhas de Júpiter e da Memória, pois, a não ser que os homens os retenham na memória, os sons desaparecem e morrem, pois tratam sobre o número de entidades sucessivas. Outros, no entanto, afirmaram que as Musas eram filhas de Mêmnon e Téspio, e que seu número era nove, já que, segundo os antigos, são nove os órgãos que formam a voz humana: os dois lábios, os quatro dentes principais, o plectro da língua, a concavidade da garganta e o anélito do pulmão. Outros defendem que “música” é derivada de mois que significa “água”, seja porque junto à água maior é o prazer que se obtém da música, seja porque na primeira vez em que foi aprovada, foi com instrumentos hidráulicos, ou seja, instrumentos de água, seja porque o objeto da música é a conjunção de sons e vozes e, sem um elemento líquido, não há possibilidade de som, pois sua matéria é o ar e a água. Ou, segundo outros, “música” e derivada de musa, -ae, que é o nome de certo instrumento musical, ou de muso,-sas, que significa “duvidar”, ou “ murmurar em silêncio”, ou melhor, “inquirir com o pensamento”, o que é mais pertinente em relação à música teórica. Com efeito, não pouco esforço intelectual é preciso fazer para expressar numericamente as proporções devidas de

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Também nessa linha, segundo David Chamberlain, podemos encontrar uma concepção análoga quando Boécio, na obra De Consolatione Philosophiae, representa como o musicus perfeito a própria personagem da Filosofia: “Finalmente, pode-se também dizer que, nos termos da De [Institutione] Musica, a Filosofia é o musicus completo. Ela toca habilmente as cordas, ela compõe uma ampla variedade de canções, e ela implicitamente julga a natureza dessa música com sua única faculdade, a razão”. [“Finally, it can also be said that in the terms of De musica Philosophy is the complete musicus. She plays skillfully on strings, she composes a wide variety of songs, and she implicitly judges the nature of this music with her only faculty, reason”].(CHAMBERLAIN, 1970, p. 85).

qualquer consonância e as devidas figuras, ainda que umas sejam mais fáceis do que as outras76.

Além disso, as nove Musas, dentre as quais estava a Música, eram filhas de Zeus (também identificado como Júpiter) e Mnemosyne (“Memória”), e teriam sido criadas – conforme a mitologia grega – para solucionar o problema do esquecimento da origem divina pelo homem, servindo de remédio para que o homem se lembrasse de sua causa primeira e assim pudesse ascender ao seu conhecimento e orientar sua conduta em sua direção77.

Segundo Lia Tomás:

Se considerarmos o conceito de mousiké como um desses conceitos de grande amplitude, podemos supor sua compreensão em duas instâncias: no âmbito particular, quando se referindo às especificidades da linguagem musical; e geral, ultrapassando esse nível e se entrelaçando aos significados de outros conceitos de mesmo patamar como harmonia, cosmos e lógos. Portanto, presume-se que, para os pitagóricos, a teorização musical era bem mais do que a “organização dos sons” e que essa teorização tivesse um outro significado, talvez cosmológico ou mesmo lógico. (TOMÁS, 2002, p. 38).

É interessante notar, como veremos com mais atenção adiante, que Jacobus também afirma haver duas concepções de música: uma particular (que diz respeito à música propriamente dita, sonora) e outra geral, que diz respeito a “todas as coisas” (Speculum Musicae, I, I), mais precisamente a tudo aquilo em que podemos encontrar uma relação geral de ordem, concórdia, conexão ou proporção (Speculum Musicae, I, II).

Tendo herdado da antiguidade grega todo o arcabouço teórico filosófico (e o adaptado conforme um quadro de referência cristão), a música no pensamento dos

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“Dicitur autem musica, secundum Isidorum, a "Musis". Musae vero a "muson", id est a "quaerendo", dictae sunt, quia per eas vis carminum et vocis modulatio per veram musicae scientiam ab Antiquis quaereretur. Et cum sonus sensibilis res sit praeterfluatque cum motu per tempus in praeteritum, imprimitur tamen memoriae. Ideo confictum est a poetis Musas esse Iovis | [P2, 4r in marg.] atque Memoriae filias; nisi enim ab homine in memoria soni teneantur, quia de numero successivorum sunt, labuntur et pereunt. Alii Musas dixerunt Memnonis et Tesbiae filias, et in numero novenario posuerunt