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CAPÍTULO 2 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM DEBATE

2.4. AS CONFERÊNCIAS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

2.4.2. A CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

“Em relação à Conferência Nacional de educação escolar indígena, eu acho que pelo menos a gente não tem uma tradição de conferencia, então eu acho que essa Conferencia foi uma coisa nova, é a primeira vez que você faz um processo desse tipo, começando lá na aldeia e chegando ao nacional, eu acho que teve um efeito positivo nesse sentido, de mobilizar, de discutir, eu acho que ela foi muita prejudicada pela proposta, pelo fato do MEC ter imposto o decreto da criação dos territórios no meio do processo, eu acho que tem uma demanda clara pela criação do sistema próprio de educação escolar indígena”. (Luís Donisete, 2010).

Como uma das demandas dos povos indígenas para discutir os rumos da educação escolar indígena e propor diretrizes para melhorar a oferta e a qualidade do ensino intercultural nas escolas das aldeias, a I CONEEI, convocada pelo MEC e CNPI reuniu em Luziânia/Brasília, entre os dias 16 a 20 de novembro de 2009, cerca 800 participantes, cada com representantes indígenas de 230 povos de todo país e gestores públicos, com a finalidade principal de assegurar o direito a uma educação básica e superior intercultural que venha a contribuir com os projetos societários dos povos indígenas.

A I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena foi um momento em que, a partir das reflexões e resultados das conferências locais e regionais, os delegados, discutiram em grupo três eixos temáticos:

a) Educação Escolar: Territorialidade e Autonomia dos Povos Indígenas

b) Práticas Pedagógicas, Participação e Controle Social e Diretrizes para a Educação Escolar Indígena

c) Políticas, Gestão e Financiamento da Educação Escolar Indígena, elegendo em plenária, um conjunto de compromissos compartilhados para orientar a ação governamental no desenvolvimento e aprimoramento da educação escolar indígena.

A articulação do conhecimento científico com o conhecimento tradicional indígena na escola da aldeia indígena tem se constituído um dos principais desafios para os povos indígenas, para garantir a manutenção e o fortalecimento das suas culturas. Na concepção de muitas lideranças, a educação escolar, sem negar as tradições e os valores étnicos próprios a cada nação indígena, é uma dimensão de vital importância para seus povos, mas que seja uma escola muito mais voltada para a valorização e sistematização de conhecimentos e saberes tradicionais, que reforce o uso da língua indígena, e não somente um lugar para a entrada dos conhecimentos exteriores (da sociedade envolvente). Se, quando as escolas foram criadas nas aldeias, a preocupação era que as crianças aprendessem a língua portuguesa, dos anos 90 para cá, a preocupação é mais do que isso, querem a valorização dos saberes tradicionais, das origens, da língua e que sejam específicos de cada povo.

De acordo com o cacique Awató da etnia Ikpeng (entrevistado durante a Conferência Regional do Xingu, junho de 2009):

“A escola é importante na comunidade para ensinar as crianças a ler e escrever, pois o conhecimento dos mais velhos precisa ser repassado, estão morrendo e não tem registro, só oral, pois quando não põe no papel, esquece. Educação/ensinamentos são feitos pelos pais e avós, como pescar, caçar, fazer roça, a cultura, danças, cantos, artesanatos, diferente da relação de escola de brancos e filhos. Os pais possuem sabedoria, experiência e passa para os filhos, a escola é importante para o resgate da cultura, com a presença dos mais velhos”.

O reconhecimento formal da legislação, na sua compreensão, aplicação em relação ao direito a uma escola diferenciada, entendida de forma variada, consiste uma questão chave na pauta do Movimento Indígena e para que se tenha efetividade prática no cotidiano das escolas nas aldeias. Uma das reivindicações centrais da Conferência Nacional é a criação de um sistema próprio de gestão das escolas, desde o governo federal, estadual e os municipais, e que seja

protagonizado pelos indígenas, além de um Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação dos Povos Indígenas, para financiar as ações de educação escolar indígena no país.

De acordo com a proposta da plenária do I CONEEI, o MEC, ao implementar um sistema próprio de gestão da escola indígena, deverá reconhecer, respeitar e efetivar o direito a educação específica, diferenciada, intercultural, comunitária e de qualidade. Especialmente no que se refere à questão curricular e ao calendário diferenciado, que definam normas específicas, que assegurem a autonomia pedagógica (aceitando os processos próprios de ensino e aprendizagem) e a autonomia gerencial das escolas como forma de exercício do direito à livre determinação dos povos indígenas, garantindo às novas gerações a transmissão dos saberes e valores tradicionais, considerando que a escola, em uma perspectiva intercultural, faz parte das estratégias de autonomia política dos povos indígenas e deve trabalhar temas e projetos ligados a seus projetos de vida, à proteção da Terra Indígena e dos recursos naturais e deve dialogar com outros saberes.

Do ponto de vista dos Projetos Político Pedagógico das Escolas Indígenas (PPPs), a Conferência decidiu que os PPPs devem integrar os projetos societários dos povos indígenas, contemplando a gestão territorial e ambiental das terras indígenas e a sustentabilidade das comunidades, construídos de forma autônoma e coletiva, valorizando os saberes, a oralidade e história de cada povo em diálogo com os demais saberes produzidos por outras sociedades humanas. Os sistemas de ensino devem reconhecer a autonomia pedagógica das escolas no exercício da aplicação dos conhecimentos indígenas e modos de ensinar, incluindo a participação dos guardiões da cultura, para fortalecer valores e conhecimentos imemoriais e tradicionais.

2.5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao concluir esse capítulo, percebeu-se que no contexto de articulação do Movimento Indígena, desde o início dos anos oitenta, as organizações dos professores indígenas começaram a se constituir e a se mobilizar em torno da reivindicação da autodeterminação dos povos em relação à educação escolar, contribuindo para a elaboração de demandas e diretrizes básicas para a questão da educação escolar como um direito dos povos indígenas, em contraposição a um modelo de “escola para índios”, a partir de princípios civilizadores e catequéticos. A principal pauta de reivindicação do movimento dos professores indígenas é que as práticas educativas

formais desenvolvidas em áreas indígenas sejam definidas pelas populações indígenas e que as concepções de educação, processos de socialização e estratégias de ação sejam bases de processos educativos que possibilitem a autonomia e a liberdade do ser indígena.

A educação escolar indígena pós Constituição Federal de 1988 ganhou uma vasta documentação legal que define diretrizes, estabelece princípios, normas e orienta as ações governamentais junto aos povos indígenas, disciplinando o direito a uma educação diferenciada no país.

Todo esse aparato legal foi formulado em decorrência da atuação do Movimento Indígena, por meio de diversas organizações, principalmente de professores indígenas. Elas viabilizam a articulação entre vários povos, que foi constituindo a educação escolar específica e diferenciada, e fez das instâncias educativas estatais um lócus de implementação e gestão de políticas públicas de educação escolar, com o envolvimento de diversas ONGs e universidades que exercem um papel de mediação no diálogo com as instâncias gestoras das políticas públicas de educação.

A participação indígena na vida nacional, seja por meio da atuação de suas organizações, seja por meio de participação política ou pela ocupação de espaços em diferentes órgãos e entidades governamentais em distintas esferas de governo, tem provocado uma considerável troca com a sociedade envolvente e com o Estado brasileiro. De um lado, é possível verificar uma maior visibilidade da diversidade étnica cultural do país. Por outro, vislumbra-se a constituição de um processo de construção e fortalecimento da cidadania indígena, fortalecida pelo crescente número de indígenas escolarizados, especialmente professores que atuam nas escolas das Aldeias.

A autonomia das escolas foi uma das discussões mais importantes das Conferências. A escola como espaço plural onde o ensinar e o aprender deveria acontecer de forma criativa e livre, reivindicavam a autonomia pedagógica e financeira da instituição escolar, como uma das condições para garantir a liberdade do ensino e da aprendizagem.

Muitos Estados da Federação têm mostrado dificuldades em desenvolver normas específicas para a educação escolar indígena. Em alguns Estados, mesmo tendo sido criada oficialmente a categoria de escola indígena, estas não estão regularizadas pelos CEE e, na maioria destes, não foram criados critérios específicos para seu reconhecimento e regularização.

Os indígenas que assumem o papel de professores em suas comunidades também não gozam de direitos específicos porque sua carreira ainda não é reconhecida oficialmente, na maioria dos Estados. Vários níveis de ensino não dispõem hoje de diretrizes curriculares, como a educação infantil e o ensino médio, para citar dois exemplos cujo número de matrículas tem crescido de forma constante nas escolas. Os currículos, projetos políticos pedagógicos, calendários, modelos de gestão específicos, ou seja, os elementos que caracterizam uma escola indígena, quando existem, elaborados com apoio de técnicos das SEDUCs e/ou Organizações Não Governamentais – não são reconhecidos pelos Conselhos Estaduais de Educação, que colocam as mesmas exigências das escolas dos não índios. A interculturalidade de saberes, que deveria nortear a elaboração curricular, parece ser entendida apenas como a introdução de alguns conhecimentos dos indígenas dentro do contexto dos chamados “saberes universais escolares”.

As discussões realizadas durante as Conferências Locais, Regionais e a Nacional de Educação Escolar Indígena, refletiram a luta do Movimento Indígena, de se ter (não só no “papel”, mas na prática) a garantia de uma Educação Escolar Indígena numa perspectiva especifica diferenciada, intercultural e autônoma. Específica e diferenciada significa ter uma escola que não se assemelha à escola dos não índios, uma vez que seus objetivos de aprendizagem têm a ver com as necessidades e características de cada comunidade indígena. Intercultural pelo fato de ser uma escola em que o diálogo entre as várias manifestações culturais dos diversos povos se faz presente, enfatizando a valorização e o resgate dos conhecimentos tradicionais, ao mesmo tempo, possibilitar o acesso aos saberes universais, produzidos historicamente pela sociedade envolvente. A escola, para os povos indígenas, também deve ser autônoma, para que as comunidades possam decidir seus projetos de futuro.

Uma das reivindicações mais debatidas durante as Conferências diz respeito à implantação de um Sistema Próprio para a Educação Escolar, que garanta de fato a educação específica e diferenciada para os povos indígenas, não foi contemplada no PNE 2011/2020.

Como resultado das propostas da I CONEEI, em uma leitura mais aprofundada das reivindicações dos povos indígenas presentes nos debates, constatou-se a necessidade de o Estado brasileiro, no âmbito da gestão administrativa federal, tomar medidas para que possa se reorganizar a política nacional de educação escolar indígena, levando-se em conta o pluralismo cultural inerente à população indígena brasileira. Não apenas reconhecer a diferença como princípio para o desenvolvimento da política, mas também para mudar as estruturas onde elas são

executadas. Por isso, a importância de, dentro da discussão realizada hoje no Brasil acerca do fortalecimento do Sistema Nacional de Educação, também se possa criar um Sistema Próprio para desenvolver a educação escolar indígena do país, se estendendo aos Estados, no âmbito de suas Secretarias de Educação.

Embora o Estado reconheça aos índios os direitos quanto aos seus processos particulares de aprendizagem, não criou nenhuma condição administrativa, técnica e financeira para garantir esses direitos. No campo político-administrativo, é necessário definir com maior clareza as responsabilidades oficiais pela educação escolar indígena e as diretrizes e parâmetros político-pedagógicos a serem seguidos por todas as esferas da administração pública.

Entendemos que a formulação escola indígena indica a representação de uma escola construída pelos próprios indígenas. Propor que a escola seja indígena significa aceitá-la como específica e diferenciada, expressão de um direito de cidadania garantida na CF/1988. Como associar esta representação com a subordinação da escola indígena ao Sistema Nacional de Educação? (CONEEI). Ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro reconhece a necessidade de que as escolas sejam específicas e diferenciadas, as inserem no sistema geral, no modelo tradicional, que possui parâmetros e regras próprias em que a escolas indígenas tem que submeter-se.

Conforme Grupioni (entrevistado em 2010):

“Hoje em dia o que a gente mais observa, na verdade, até que essa política pública em alguns casos, ou pelo menos a legislação, ela está mais avançada que muitas práticas que a gente observa no Brasil inteiro. É uma coisa um pouco paradoxical, você partiu de experiências “piloto”, conseguiu impactar as políticas públicas, mas uma vez que você impactou gerou uma nova política pública, e essa nova política pública - ela não foi capaz de impactar amplamente o país, então você tem nichos onde esta questão da educação indígena é, digamos, “pegou” e outros lugares ela não “pegou”, ou ela “pegou” em termos de discurso e não de prática. Daí, porque não pensar um sistema completamente diferente? [...] Esse modelo diferenciado ainda está preso ao modelo nacional”.

Uma política de educação escolar indígena específica e diferenciada na prática tem sido uma luta primordial do Movimento Indígena no âmbito das políticas públicas. Um sistema próprio que leva em conta a necessidade da autogestão de todo o processo escolar a ser conduzida pelos próprios povos indígenas. Essa participação e autogestão efetiva em todos os momentos do processo não deve se ater a meros detalhes técnicos ou formais, mas sim à condição e à garantia

da realização, de forma adequada, da desejada educação escolar indígena de qualidade (formação adequada de recursos humanos, contratação de assessorias específicas e qualificadas, produção de materiais didáticos também específicos, construção e manutenção das escolas). O desafio que se coloca é o de construir uma política pública do Estado articulada com o Movimento Indígena, seus interesses e suas necessidades, exercitando assim o gerenciamento democrático co- participativo. A proposta dos Etnoterritórios Educacionais, talvez seja um começo.

De qualquer forma, continua o desafio de como traduzir as reivindicações do Movimento Indígena, como as garantias legais já disponíveis em práticas adequadas de uma educação escolar indígena, numa perspectiva que considere a autonomia e as identidades étnicas dos povos indígenas do país.