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A conquista de espaço para seus produtos no mercado, superando as dificuldades financeiras iniciais, impôs nova dinâmica de trabalho ao empreendimento. Em termos econômicos, percebe-se que deu um grande salto, conseguindo estabilidade no ramo em que atua. A cooperativa mantém alguns clientes fixos para seus serviços, os quais envolvem boa parte da demanda que chega. A procura volta-se, especialmente, à confecção de uniformes escolares e para empresas comerciais em geral. Alguns pedidos também chegam à cooperativa pela relação que estabelece com a economia solidária. Dentre estes, pode-se citar: sacolas duráveis, camisetas para eventos, uniformes para outras associações e cooperativas.

Simultaneamente ao crescimento econômico, novas necessidades e exigências foram sendo estabelecidas, refletindo em novas formas de gestão do trabalho. Exemplo disso é o ritmo, como apontado por uma das cooperadas: “É corrido agora, porque há um tempo atrás era mais tranquilo, tinha horário certo, mas agora está mais corrido.” (C, jun. 2011).

O aumento de pedidos por produtos exigiu maior quantidade de trabalhadoras na produção, índices não atingidos na mesma proporção. Em decorrência disso, grande parte das entregas passou a ser feita com atraso, convivendo com a pressão externa dos clientes. “É a pressão. A gente não consegue costureira, não consegue! E chega os prazos eles querem com toda razão. É visto, eu encomendei um uniforme eu tenho um prazo, né!” (C, jul. 2011). Outra trabalhadora reitera o comentário da colega: “# É os clientes pedindo os uniformes, a gente fica quase louca#.” (C, jun. 2011).

Ao compartilhar a dinâmica de trabalho no empreendimento, percebe-se que a pressão externa chega, inicialmente, as trabalhadoras que atuam no administrativo, pessoas incumbidas pelo contato direto com os clientes. Do mesmo modo, é repassada às demais trabalhadoras que atuam na confecção, por meio de maior cobrança por resultados. Esta situação é entendida como algo inerente ao processo, como aparece na fala a seguir: “ë Os clientes cobram dela e ela tem que cobrar de nós. Isso faz parte!” (C, jun. 2011).

Mesmo “fazendo parte” do dia a dia de trabalho, a excessiva cobrança tem causado sofrimento, explicitado pelas falas, por um sentimento de impotência diante do trabalho: “Eu tento dar conta, mas não consigo, não posso. É o dia a dia. Assim é o nosso dia a dia não só o meu, mas como de todas. °Uma correriaº. “#Dou o máximo para entregar (o pedido) daí não consigo, mas pelo menos tento fazer o melhor possìvel#” (C, jun. 2011).

Fotografia 14: “Correndo e olhando para o relógio” (C).

“Correndo. Correndo e olhando para o relógio. Tu faz uma coisa e olha para o relógio. Parece que ele anda mais rápido@@@.” (C, jun. 2011).

Linhas, fios, tecidos, moldes, máquinas... Adereços que compõem o cenário do cotidiano de trabalho destas mulheres. Diferentes ritmos, tarefas, responsabilidades. Todas condicionadas ao mesmo tempo, representado, no alto da fotografia, pelo relógio.

O atraso nas entregas também acarreta implicações na gestão financeira do empreendimento. Isso decorre, especialmente, pela necessidade em comprar os insumos com antecedência e depender do retorno da venda dos produtos para pagar os fornecedores. Esse aspecto também revela a fragilidade financeira da cooperativa, notavelmente, a dificuldade relativa ao capital de giro ser baixo.

ë Eu às vezes eu me arrepi:a os cabelos quando encomenda os tecidos e vem aqueles ro:los e ro:los, daí eu fico preocupadíssima. Daí eu não sei como esta as contas lá no banco! Eu faço compras, mas eu não sei o prazo que eu tenho que dar, que eu tenho que pedir para pagar. Quanto mais prazo mais caro sai, menos prazo menos sai. E daí

comprar a vista e vender a prazo também não dá. (C, jun. 2011).

A preocupação da trabalhadora parece ser algo comum às colegas, sendo reafirmada em outras falas: “#Porque vende a prazo e daì tem mais os atrasos. Dai vêm os boletos para pagar e nós não recebemos dos clientes. Isso não é bom. Isso é preocupante#” (C, jun. 2011).

Em alguns momentos da pesquisa interroguei as cooperadas sobre a viabilidade de assumir tantos pedidos e não conseguir dar conta de entregar no prazo previsto. A trabalhadora que cuida desta etapa reconhece que tem aceitado pedidos, que já ao pegar sabe que não dará conta na data combinada. Esta atitude é questionada pela colega: “ë Porque é só nós que pegamos, pegamos, pegamos tudo que vem na frente. Tem empresa que é tudo programado. Até dia 30 eu não vou te fazer porque tenho a programação. Eles vão pegar dali para frente. E aqui, eles (referindo-se aos clientes) vêm e nós fizemos.” (C, jun. 2011). A justificativa em assumir os pedidos, mesmo com dificuldade em atendê-los, envolve a necessidade de não perder clientes: “ë #A gente tem que cuidar para não perder os clientes, porque se deixa de atender essas pessoas vão para outro lugar#.” (C, jun. 2011).

Algumas falas destacaram a necessidade de “peneirar” os pedidos, assumindo encomendas que futuramente apontem perspectivas de continuidade da relação cliente/cooperativa.

A ordem de atendimento das encomendas não considera, exclusivamente, a data de chegada do pedido. O critério de produção passa pela avaliação das prioridades nos prazos de entrega. Assim, a organização do trabalho revela a necessidade de ser flexível, compreendendo que estas situações tendem a ocorrer com frequência.

Esta flexibilização, que não é vista com bons olhos por algumas cooperadas, torna-se necessária, considerando que não há garantias de trabalho em longo prazo. Este fato faz com que a cooperativa esteja num processo permanente de conquista de mercado para seus produtos, como aponta a cooperada: “ë A agente tem que segurar um pouquinho de cada cliente, porque a gente não tem contrato, garantia que vou ter serviço para dois anos. Eu tenho para este momento!” (C, jun. 2011).

As trabalhadoras avaliam que a entrega dos pedidos com atraso também provoca uma imagem externa negativa da cooperativa, sendo entendido pelos clientes como falta de eficácia nos serviços prestados. De outro lado, algumas cooperadas pontuam que não há perda dos clientes que recebem os produtos com atraso, aspecto que as leva a tomar a decisão de atender todos os pedidos que chegam.

O discurso veiculado por meio da sequência de enunciados apresenta alguns elementos importantes para a compreensão das (im)possibilidades de se cultivar práticas autogestionárias. Gaiger (2005) traz importantes contribuições a esta análise, entendendo que os empreendimentos solidários convivem numa dupla subsunção à economia capitalista: de um lado se sujeitam à lógica da acumulação imposta pelos agentes econômicos num enfoque meramente utililitarista e de outro estes empreendimentos veem-se necessariamente impelidos à competitividade, base da economia de mercado. Nesse sentido, entende- se que à medida que produzir mercadorias em quantidade e qualidade determinadas pelo mercado, a autogestão do empreendimento é fragilizada, sendo que as trabalhadoras perdem, de certo modo, sua autonomia na decisão sobre o processo produtivo.

Percebe-se que a relação com o mercado, representado na fala da trabalhadora pelos clientes e fornecedores, é um grande ditador do modo de organização e funcionamento do empreendimento. Prova disso são os constantes posicionamentos favoráveis à mudanças organizacionais. Como exemplo pode-se citar a necessidade de manter- se atualizada sobre os aspectos do ramo das confecções.

ë Sabe o que eu vi? Que a gente que é do ramo não sabe das coisas. O cliente me disse: „Época de colheita tá tudo controlado, estabilizado, vocês não vão perde nesse preço, bla bla bla...‟ ele sabia tudo que nós que somos daqui não soubemos! (trabalhadora ao relatar a conversa que teve com o dono da empresa, quando negociava a venda de uniformes).

(C, jun. 2011).

A falta de conhecimento, representada pelo “não saber”, fez com que a trabalhadora abrisse mão de seu argumento, tendo de manter o preço antigo pelo produto. A situação foi naturalizada, como se nada fosse possìvel fazer: “Baixar a cabeça e trabalhar. O que sobra para nós, não vai sobrar muita coisa não gente. É trabalhar!” (C, jun. 2011).

Mascarenhas (2007) avalia que a qualificação técnica, com base em conhecimentos específicos da gestão, constitui-se num dos principais elementos sustentadores na conquista dos mercados. A autora alerta que o aprendizado não é tarefa fácil, pois existem muitos mitos em torno da questão. Um deles refere-se ao próprio sentimento de incompetência dos trabalhadores diante de situações que envolvem a relação com os agentes externos ao empreendimento. Além disso, muitos não valorizam sua experiência, acreditando que não possuem

conhecimento para resolver determinadas situações, ou para defender seu posicionamento. Exemplo disso é a fala acima exposta.

O poder do mercado, agente anônimo e impessoal, mas ao mesmo tempo tão regulador do trabalho da cooperativa, se manifesta também na definição dos preços dos produtos. Embora se possa pensar que cabe às trabalhadoras a decisão sobre por quanto venderão seus produtos, é o mercado que lança as possibilidades disso se efetivar com maior ou menor êxito: “# Lá fora eles (clientes) querem 21 é 21(preço pago por calça). Se vocês querem, querem, senão tem mais gente! #” (C, jun. 2011).

Novaes (2008) aponta que os empreendimentos autogestionários apresentam uma limitação na sua emancipação, pois estão diante do modo de produção do capital. Nesse sentido, derruba-se o argumento proposto por Singer (2002a) de que o trabalho deixaria de ser alienado nas cooperativas, e de Tiriba (1994), quando aponta que os trabalhadores seriam donos de seus produtos. Novaes (2008) corrobora, argumentando que um projeto que se inspira na autogestão, não pode acontecer em apenas em quatro paredes. Portanto, afirmar que as trabalhadoras conhecem todo o processo produtivo contribuiria para a reorganização da divisão do trabalho e compartilham o seu saber, rompe em parte o estranhamento do processo de trabalho. Contudo, a autogestão será incompleta enquanto o controle da produção esteja nas mãos do capital.

Tal perspectiva pode ser analisada a partir do conceito de autogestão como categoria socialista437, o qual remete à impossibilidade da autogestão se desenvolver quando os meios de produção e o capital

social são de propriedade privada do capitalista, ou de determinadas empresas. Neste sentido, entende-se que a cooperativa por si mesma não poderia levar à autogestão, pois constitui-se como um espaço localizado de gestão, envolvida num jogo prenhe de lutas e afrontamentos constantes na relação com o capitalismo, que acabam por transformar ou até mesmo inverter as relações propostas pela autogestão e pelo ideário da economia solidária. Neste jogo, as correlações de força, mesmo nas suas contradições, vão cristalizar-se como práticas institucionais, tomando corpo, por exemplo, nos discursos e dispositivos que regem a organização, seus rituais singulares e coletivos.