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2.3 Escolhendo um caminho para análise

2.3.1 O processo de análise dos discursos

A análise considerou a organização do material colhido na discussão dos grupos focais, de forma a se obter um corpus detalhado e confiável do processo vivenciado pelo grupo. As anotações da relatora foram compatibilizadas à transcrição das gravações de áudio e ao registro imagético, constituindo um único material.

Como forma de preservar a identidade das participantes, resguardando os aspectos éticos da pesquisa, para a apresentação neste trabalho os rostos das pessoas foram borrados. Cabe salientar ainda, que nem todas as fotografias produzidas pelas participantes estão expostas nesta obra. A escolha das imagens buscou abordar os principais elementos trazidos no grupo focal, dando visibilidade não só a aspectos que eram comuns entre as trabalhadoras como também os que apontavam para a singularidade das participantes, mostrando as diferentes leituras do mesmo contexto. A sequência das imagens apresentadas no texto tem estreita e direta relação com o relato verbal das trabalhadoras, estando associadas respectivamente aos relatos trazidos no primeiro e segundo grupo focal. Esse aspecto justifica o fato de que em algumas seções do texto as imagens não serem tão presentes. O processo de análise considerou a escuta atenta e repetida das falas registradas, o que permitiu uma aproximação mais viva das situações. Além disso, fez-se o exercício de acompanhar as sequências das interações, as entonações de voz, expressões e gestos, interrupções,

identificando-as a partir de um sistema de codificações25, criado durante o processo de escuta e transcrição dos registros dos grupos focais.

Esta dimensão microscópica da descrição enuncia um tipo de texto no qual se procede à imbricação metódica dos registros do discurso social com as interpretações que resgatam e lhes descobrem sentidos. Destacam-se nesta análise tanto opiniões que foram majoritárias como as que ficaram em minorias. Fizeram parte deste processo o olhar aos consensos, dissensos, rupturas, descontinuidades, os silêncios. Assim, o foco recai sobre a conversação propriamente dita dos participantes, oferecendo um exame detalhado das interações entre eles. Cabe destacar que tanto o olhar sobre o discurso como a construção das questões norteadoras que provocaram a sua emergência nos grupos focais, consideraram as observações realizadas no cotidiano de trabalho da cooperativa, o que tornou possível construir interpretações melhor fundamentadas, enriquecendo a análise.

As categorias de análise foram definidas a posteriori, a partir do material obtido nos grupos focais326. No corpus foram distinguidas a fala do moderador e da presidente. As falas das demais trabalhadoras foram entendidas como sendo um discurso coletivo, compondo um único texto, mesmo delimitando sua incursão no contexto (momento, situação em que foram ditas). Considerando os pressupostos Foucaultianos, a escolha por construir um corpus de análise não focado nas falas dos sujeitos deu-se por entender que esta se constitui como uma das possibilidades de des-subjetivar o poder e observar o jogo/linhas de forças ali presentes. Por sua vez, a escolha por destacar

25 Ver Apêndice C.

as falas da presidente decorre da sua representatividade junto ao coletivo de trabalhadoras da cooperativa. Tendo em vista os pressupostos da AD, o termo representatividade é utilizado aqui, considerando a importância, o papel que este participante tem na interação; não por suas qualidades pessoais, mas sim por ter um lugar/posição de destaque no grupo.

Desse modo, o que o leitor esta prestes a apreciar remete para a sequencia da integração textual dos materiais (as vozes e os episódios) no sentido de tornar visíveis os nexos entre eles, de os situar no seu contexto próprio, de os tornar portadores de uma ordem discursiva. Isso significa que a ordem dos episódios relatados, ou das vinhetas que se intercalam com os fragmentos extraídos do grupo focal, decorre da interpretação que se procura fazer e que leva a que uns e outros tomem o seu lugar como se fossem peças de um quebra-cabeça cuja visão de conjunto só é possível à medida que seu final vai se tornando evidente.

3 A HISTÓRIA NA CONSTRUÇÃO DO(S) LUGAR(ES) DE SABER/PODER

Tratar da compreensão das relações de saber/poder que permeiam o contexto da economia solidária, objeto desta pesquisa, remete, obrigatoriamente, a falar da história de constituição da cooperativa em que estes sujeitos estão inseridos. Para Foucault (1972) trafegar pela historicidade dos fatos implica uma recusa à representação continuísta e linear no modo de ser entendida e contada. Neste sentido, esta produção assume o desafio de compreender as relações de trabalho como produção e produto de seus marcos econômicos, políticos, sociais e culturais.

Embora esta (re)leitura seja feita a partir do exame de processos marcados por recortes de tempo, de momentos cronologicamente sequenciais, o texto que segue busca explicitar as transições, continuidades e rupturas do processo de trabalho cooperado do empreendimento em estudo. Seguir por estas veredas considera o percurso não como uma sucessão de fatos separados e estranhos entre si, mas um movimento que mantém como motor a (re)problematização incessante das idas e vindas, das contradições, dos seus jogos de força. Nas palavras de Revel (2011, p. 78), trata-se de “redescobrir a descontinuidade e o acontecimento, a singularidade e os acasos e de formular um modelo de abordagem que não tenha a intenção de reduzir a diversidade, mas que seja o seu eco.”

Para tanto, o plano discursivo que construo busca compreender as leis explícitas e implícitas que regem o empreendimento, de modo interligado a suas formas e condições de enunciação, por pressupor que

engendram práticas, caracterizam relações de saber/poder, constroem processos de subjetivação. Processos de subjetivação são entendidos aqui com a “relação que o sujeito estabelece consigo mesmo e com a normatividade social, no reconhecimento de si mesmo como sujeito moral, como indivíduo submetido aos jogos de identificação, às armadilhas da identidade moderna” (ZANELLA et al, 2006, p. 31).

Nesta mesma direção Prado Filho e Martins (2007, p. 17) afirmam que a subjetividade “além de ser da ordem dos efeitos é também da ordem da exterioridade produzida em relações saber/poder e também dos sujeitos consigo mesmos, quando estes se colocam como objetos para um trabalho sobre si”. Remete, portanto, a sujeitos diversos que não o sujeito autônomo, livre, universal da razão, da cognição, ou da consciência. Mas sujeito submisso às condições de produção do discurso, dos jogos de produção de verdade e da sua relação com as práticas discursivas de uma sociedade. Não há, desse modo, como tratar da subjetividade sem considerar suas formas históricas de construção, das quais se fazem eminentes o discurso liberal próprio do capitalismo.

Considerando a historicidade do objeto, busco traçar um percurso que não se esvazie na análise de um período cronológico, mas que exponha as transformações e acontecimentos, seus infinitos vestígios silenciosos, seus fragmentos de existência e resistência presentes nas vidas destas trabalhadoras. Assim, essa análise histórica se configura como condição de possibilidade para uma compreensão crítica do presente, sensível aos modos de sentir, reagir e criar.

Tal envergadura transita por história(s) narrada(s) pelas próprias protagonistas, as trabalhadoras que atuam no empreendimento, eximindo pontos de aproximações e singularidades próprias ao modo

como cada uma foi construindo o enredo sobre sua experiência de trabalho. Daí resulta um repertório discursivo, construído por amarrações entre imagens e falas, as quais balizam interpretações.

As imagens, nesse caso, revelam seu potencial, ao aguçar recordações e narrativas, potencializadoras da (re)construção de uma trajetória, provocando novas visibilidades às experiências, aos modos de viver e trabalhar. Uma pluralidade de focos emergentes, os quais desnudam autobiografias. De acordo com Zanella (2011), trata-se muito mais que uma realidade objetivada pela lente de uma máquina fotográfica, “plasma-se na textura bidimensional de uma foto a condição sócio-histórica e política de seu autor e do momento em que vive, suas escolhas preferências, suas (im)possibilidades e modos de ver, constituídas em um determinado tempo e suas condições de possibilidade.” (p. 20). A partir deste referencial, entende-se que os discursos produzidos são apresentados a partir de um lugar social, de um ponto de vista marcado por condições historicamente produzidas.

A escolha das imagens aqui evocadas não é ao acaso. Constituem-se, com base em Zanella e Tittoni (2011), potencialmente, como recurso de provocação e de intervenção sobre os jogos de visibilidade que compõem as experiências humanas. Assim, (re)conduzem as experiências, presentificam memórias, materializam certo enquadramento, subjetivado, reiterando modos de vida, do constituir-se mulher, mãe, esposa, trabalhadora, costureira, circunscrevendo redes discursivas que permitem estabelecer muitas conexões e semelhanças. Traduzem, por sua vez, intenções políticas, representações instituídas e, ao contrário, também proporcionam novos desenhos, subversões... Enfim, abrem outras possibilidades do ver.

Esta análise poderia ser feita de tantas maneiras outras, mas que se revela nesta produção como um recorte a partir de uma lente ajustada ao objeto de pesquisa a partir de determinados referenciais teóricos e que, por assim o ser, iluminará alguns aspectos em detrimento de outros.