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A conquista da legitimidade: fala sustentada pelo discurso de outrem

CAPÍTULO 3 – A ARGUMENTAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE ADESÃO AO DISCURSO

3.3 As vozes presentes no discurso de Senhorinha Diniz

3.3.1 A conquista da legitimidade: fala sustentada pelo discurso de outrem

O discurso de Senhorinha é permeado por outros discursos específicos, tais como o científico, o religioso e o educacional, que têm por objetivo sustentar sua fala e dar legitimidade à luta que ela empreende no jornal, com o objetivo de convencer seus leitores. Essa inscrição de vozes distintas no discurso revela a diversidade também na própria constituição do discurso, uma vez que, na Análise do Discurso, compreendemos que não há uma fala que seja completamente original, que não seja fruto de outras falas,

de outros textos e discursos. As formas de heterogeneidade alteram “... a unicidade

aparente da cadeia discursiva, pois elas aí inscrevem o outro (segundo modalidades

diferentes, com ou sem marcas unívocas de ancoragem)” (AUTHIER-REVUZ, 1990,

p.29).

Dentre as diversas vozes que ajudam a compor o discurso da jornalista, podemos citar a de Imanuel Kant. O filósofo é resgatado no editorial de 7 de janeiro de 1874 e sua fala aparece como um elemento para tornar verdadeiro o pensamento da jornalista.

O fato de Kant reconhecer que os bons sentimentos que tem em si advêm de sua mãe traz para o discurso um exemplo claro de um homem bem sucedido intelectualmente que reconheceu em uma mulher (sua mãe) os valores que ela possuía. O uso desse pensamento de Kant a respeito de sua mãe traz a ideia da fala do filósofo e não sua fala em si. Conforme afirma Maingueneau (2004, p.149, grifo do autor) “Com o discurso indireto o enunciador citante tem uma infinidade de maneiras para traduzir as falas citadas, pois não são as falas exatas que são relatadas, mas sim o conteúdo do pensamento”. Dessa maneira, o exemplo do filósofo reafirma a proposta de emancipação feminina pela educação, uma vez que mostra a capacidade da mulher de intervir positivamente na educação dos filhos e fazer deles bons homens para a sociedade. A fala atribuída ao filósofo traz um efeito de sentido de verdade, de confirmação do que está sendo dito. Como afirma Maingueneau, o discurso citante reitera a fala do enunciador e proporciona a adesão do leitor à proposta empreendida pelo ato enunciativo.

aquele que propõe de modo convincente, a interpretação de um texto literário, filosófico, religioso... indica pragmaticamente – e ao mesmo tempo – que é competente, que ocupa legitimamente o lugar que a instituição lhe confere, que o texto comentado é rico de sentido, que os discursos literário, filosófico, religioso são realmente discursos portadores de mensagens essenciais e que seu comentário sobre tais

discursos é capaz de lhe conferir uma identidade” (MAINGUENEAU,

2008a, p.204).

Tendo em vista essa percepção do discurso citado e do discurso comentado, Senhorinha Diniz parece buscar despertar em seu leitor a segurança de quem conhece o campo discursivo da ciência e da filosofia, a partir da citação de Kant.

Outra voz presente no discurso de Senhorinha decorre do uso da citação do trecho de uma frase popularmente conhecida. O ditado popular é tido como a expressão do conhecimento e da experiência popular. Ele compõe uma parte importante de uma cultura e geralmente carrega consigo um valor de verdade, formas cristalizadas pela comunidade. O ditado popular é considerado como a “voz do povo” e a “voz da

verdade” e adquire importância particular por ser reconhecido e aceito pela comunidade

discursiva em questão. Quando ele é usado por Senhorinha, o ditado popular torna-se, de certa forma, parte constitutiva do discurso dela, em uma espécie de espelhamento ou adesão e, assim, sua própria fala a ele vinculada torna-se mais facilmente reconhecida e acolhida pelo destinatário. Assim caracteriza-se o uso do dito popular citado em 22 de

julho de 1875: “... é tamanha a sua importância [da mulher] que segundo a sabedoria pratica dos povos, tem-se dito, e se repete ainda hoje: - Ce que la femme veut, Dieu le veut” (Anexo 3, linhas 104-105, grifo da autora). A citação coloca em cena certa proximidade entre a mulher e Deus que a torna quase divina, digna de ser reconhecida pelos homens na terra, pois já é reconhecida por Deus no céu.

O filósofo Camille Flamarion, citado no discurso do editorial de 2 de junho de

1889, é mais um que contribui para sustentar a fala de Senhorinha: “Sabemos que esta

questão é de grande momento e de alcance serio para ambos os sexos, mas uma vez

resolvida, estará comprida a phrase de Flamarion: “A verdadeira liberdade consiste na soberania da intelligencia” (Anexo 5, linhas 19-20). Percebemos que a afirmação da

jornalista só faz sentido com a citação do filósofo. A própria escolha do francês como citante contribui para a validade do enunciado, evidenciando o conhecimento da literatura francesa e do pensamento desenvolvido pelos filósofos. Assim, a citação em francês contribui para a construção de um ethos também de modernidade, considerando que a jornalista tem domínio da língua e tem acesso à literatura da França, um país que lutava pela emancipação e que foi o celeiro do Iluminismo e dos ideias de liberdade e igualdade. Desse modo, Senhorinha legitima seu discurso e mostra seu ethos de mulher inteligente, culta, letrada, o que marca sua imagem e a autoriza a dizer o que diz.

No editorial de 27 de fevereiro de 1876 (Anexo 4), Senhorinha sustenta seu discurso baseada na argumentação empreendida pelo proprietário do periódico Amor ao progresso, Eugênio Octavio de Carvalho. O escritor coloca em xeque, em seu periódico, a validade do discurso de emancipação feminina. Senhorinha aproveita, pois, o espaço de comunicação entre os periódicos, e retoma os argumentos de Eugênio com o intuito de revidá-los. O que se segue no discurso da jornalista é o embate das ideias sobre emancipação da mulher, que marca os dois pontos de vista opostos existentes no século XIX a respeito do assunto. Senhorinha usa o discurso de outrem para marcar e reafirmar o seu próprio discurso, o que evidencia outra voz presente no discurso editorial de O Sexo Feminino.

A citação do filósofo Hume aparece no editorial também com o intuito de embasar o discurso de Senhorinha: “Diz Hume – Sempre que uma verdade nova quer iluminar o mundo, seu propagador encontra o Golgotha; nós, certamente, encontraremos

esse Golgotha!!...”(Anexo 5, linhas 33-34). O enunciado apresentado no discurso é

assumido como verdadeiro e transposto para a realidade discutida: a atuação do jornal e da jornalista na luta a favor das mulheres. Neste momento, a estratégia patêmica de

aproximar essa fala ao discurso religioso (que discutiremos mais adiante), parece pretender a adesão do leitor, através de sua compaixão. Se a voz que assume O Sexo Feminino é a mesma voz do Cristo injustiçado que sofreu o martírio na cruz e no monte da crucificação (Golgotha), há, indiretamente, duas posições a serem tomadas pelo leitor: a concordância com a crucificação do mártir (e neste caso, das ideias da jornalista), e o reconhecimento da verdade empreendida por ela, qual seja a necessidade de as mulheres se emanciparem.

A leitura e a análise dos editoriais nos mostram a intenção discursiva da jornalista em validar sua luta de emancipação e evidenciar a verdade a qual ela defende. Por isso, o discurso citado e até mesmo o comentário a respeito do discurso do outro cumprem o papel de sustentar a fala da jornalista e trazer o efeito de verdade para a sua fala. A própria escolha dos nomes citados no discurso revela o campo discursivo e intelectual que compõe a fala de Senhorinha, ela referenda seu discurso em estudiosos, filósofos e pensadores que defendem a causa feminina, o progresso e a modernidade.