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A dualidade como índice constitutivo do discurso

CAPÍTULO 3 – A ARGUMENTAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE ADESÃO AO DISCURSO

3.4 A dualidade como índice constitutivo do discurso

A dualidade configura um elemento essencial para a compreensão do construto social do século XIX presente em O Sexo Feminino. A jornalista apresenta em seus editoriais uma visão dual e opositiva da percepção de mundo, marcada pela oposição entre o bem e o mal. Senhorinha se inscreve no lado do bem e da virtude, marcando, assim, a orientação de seu discurso para o progresso e para os benefícios da instrução feminina. Detalharemos com mais cuidado a posição da jornalista ao analisarmos o seu ethos, no capítulo seguinte. Fato é que esta oposição bem x mal, passado x futuro, vício x virtude se mostra presente em todos os editoriais. Trata-se de um elemento argumentativo e estratégico que conduz o leitor a reservar à jornalista e ao jornal a responsabilidade de materializarem o bem e o justo. Especialmente no editorial de 27 de fevereiro de 1876 (Anexo 4), essa construção é recorrente e se sobressai no texto. Nele são criados momentos discursivos opostos: um que se refere ao passado e outro, ao presente, ou seja, ao momento em que o jornal estava sendo escrito e veiculado.

A construção elaborada é de um passado marcado pelas restrições à liberdade política e religiosa, pela condenação diante das manifestações de pensamento, pela

retenção do saber nas mãos de poucos, enfim, pelas injustiças: “Não estamos mais nos tempos em que o saber se achava encarcerado nos claustros...” (Anexo 4, linha 1). Em

contrapartida, o tempo presente descrito no discurso é o da liberdade, metaforicamente caracterizado pela luz. Este tempo representa o novo, a possibilidade e o direito de os

homens expressarem suas ideias em sociedade: “É a epocha da luz! Forão-se as trevas ...

todos os povos são livres, ou pugnam pela sua liberdade...” (Anexo 4, linha 7). Em outro momento, a jornalista expõe o contraste que ela percebe e instaura no discurso,

como verificamos no enunciado: “... todos os pensamentos se manifestam francamente e

esforçam-se por obter sua liberdade, fazendo resaltar por toda a parte o contraste que ha

entre o presente e o passado!” (Anexo 5, linhas 8-9). Desse modo, o próprio posicionamento assumido pela jornalista (manifestado também como um pensamento) participa desse embate entre passado e presente e, como abordaremos mais adiante, está marcado deiticamente pelo presente.

O primeiro editorial (Anexo 1), que inaugura O Sexo Feminino apresenta também a oposição entre o comportamento novo e o antigo: “Zombem muito embora os pessimistas do apparecimento de um novo órgão na imprensa [...] tapem os olhos indifferentes para não verem a luz do progresso...”. (Anexo 1, linhas 1-2, grifo da autora) Senhorinha e seu jornal se inscrevem no momento do novo, marcado pela luz e pelo progresso. Esses elementos são importantes para o entendimento do ethos elaborado por Senhorinha em seu discurso, como veremos mais detalhadamente.

O editorial de 7 de janeiro de 1874 (Anexo 2) apresenta ao leitor a oposição vício x virtude. A palavra vício não é colocada no texto explicitamente, porém, inferimos essa oposição, a partir da referenciação constante à necessidade de os filhos

serem virtuosos: “Uma mãi inspirará sómente virtude a seus filhos, não falará a seu

coração inutilmente, mas penetrar-lhes-h n‟alma sons sublimes que se erguerão até á

Divindade” (Anexo 2, linhas 5-6, grifo nosso). A figura materna torna-se a responsável

por não permitir que os filhos se direcionem para o caminho dos vícios, conduzindo-os apenas para a virtude, para a divindade. Nesse contraste entre o bom, o divino, o correto e o vício, o mal não está explicitamente marcado no texto, mas está subentendido a partir da afirmação da necessidade de se ensinar virtude aos homens para que eles sejam bons. Podemos inferir que se a mãe não ensinar os bons princípios aos seus filhos, não

lhes erguer até a divindade, a humanidade não será beneficiada com bons homens, conforme o editorial de 7 de janeiro de 1874 (Anexo 2).

A partir dessa oposição, a jornalista se insere no tempo presente (marcado deiticamente pelo hoje) e apresenta-se como a anunciadora deste novo tempo na história, especialmente na história das mulheres. Assumindo o pressuposto da nova realidade sócio-histórica do século XIX, Senhorinha assegura o problema da educação e insiste na necessidade de emancipação da mulher.

O ambiente construído no discurso dos editoriais analisados assemelha-se a uma conversa, um diálogo com o propósito de convencimento. O tom usado é forte e desafiador. As falas de Senhorinha são assertivas e diretas. A jornalista, em seu editorial, propõe ao leitor uma tomada de posição, tanto em relação ao lugar que ocupa na sociedade (se adere à modernidade e ao progresso, à luz do século XIX, ou se permanece na escuridão e no obscurantismo do passado), quanto em relação ao pensamento que tem diante da emancipação feminina, (se apoia a iniciativa ou se a rejeita, como o faz o redator do jornal Amor ao progresso, citado no editorial).

A dicotomia bem e mal pode ser observada com maior evidência no editorial de 6 de julho de 1889. O bem está diretamente ligado à verdade, ao esclarecimento e, consequentemente, à luz do novo século. Em oposição, estão os relatos das injustiças e do descaso dos quais as mulheres são vítimas, atitudes essas associadas ao passado. No tempo das luzes não se admite que tais atitudes sejam tomadas, é incoerente que um homem do progresso ignore a presença e o valor da mulher na sociedade.

A jornalista faz uso de uma expressão para separar esses dois momentos discursivos: “Agora, porém que a taça transbordou, ousamos levantar nossas debeis vozes pedindo-vos, repitamos: - reparação dos vossos erros e de vossas injustiças” (Anexo 3, linhas 72-74, grifo nosso). A marca dêitica do agora define a separação entre o passado e o presente reafirmando, a partir do presente, a possibilidade de as mulheres se inserirem na sociedade e reivindicarem seus direitos. Neste trecho, Senhorinha assume o pronome nós e, ao mesmo tempo em que fala de si, engloba a voz das demais mulheres de sua época. A expressão a taça transbordou indica que a situação de indiferença com as mulheres não podia mais continuar. Ela pode funcionar também como indício dessa nova realidade, como um marco indicador de que a partir de então (do momento da enunciação), o curso da sociedade será outro, caracterizado pela liberdade, pela abertura do ensino às mulheres e por sua consequente valorização enquanto educadora.

Notamos a oposição temática entre progresso e regresso, manifestada linguisticamente no trecho seguinte:

Innumeros exemplos a historia nos dá de que Deos tem concedido benevolo destino a muitos homens que forão educados por suas mãis, e debalde tentarão os retrogrados negar a influencia benéfica que

uma mãi sensivel sem fraqueza, e religiosa sem rigidez, tem exercido sobre o caracter de seus filhos (Anexo 2, linhas 1-4, grifo nosso)

Uma evidência do progresso é, portanto, reconhecer que a mãe é capaz de trazer bons ensinamentos aos seus filhos. Assim, são chamados de retrógrados aqueles que desconsideram essa influência. Percebemos novamente a inscrição do bem e do mal no discurso, uma vez que o destino benévolo é concedido aos homens que foram educados por suas mães, sendo esta afirmação acompanhada de sua oposição indireta de que os homens que não receberam a digna educação de suas mães não possuem um destino tão frutuoso.

A dualidade apresentada por Senhorinha em seu discurso conjuga com o racionalismo do pensamento cartesiano, que propõe, a partir da relação entre substância finita de um lado, e entre espírito e matéria do outro, a divisão de elementos que se opõem na configuração do universo. Em seu estudo sobre a historicidade e a compreensão sobre o corpo, Grosz esclarece o dualismo instituído por Descartes: “... é a suposição de que há duas substâncias distintas, mutuamente exclusivas e mutuamente exaustivas, a mente e o corpo, cada uma das quais habita seu próprio domínio

autocontido. Tomadas em conjunto, as duas tem características incompatíveis”

(GROSZ, 2000, p.54). A ideia da dualidade corpo e mente (cartesianismo) parece ser recuperada no discurso dos editoriais da jornalista, através de outros elementos que se opõem: vício e virtude, mal e bem, velho e novo. Trata-se de mais uma evidência da proposta da racional emancipação feminina, pois Senhorinha ancora seu discurso no pensamento racionalista, progressista e cartesiano.