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Os ethé inseridos no discurso jornalístico

CAPÍTULO 4 – A CONSTRUÇÃO ETHÓTICA DE SENHORINHA DINIZ: IMAGINÁRIOS DE SI E DOS

4.1 Os ethé inseridos no discurso jornalístico

Nossa proposta, nesse capítulo, é analisar os ethé da jornalista, Senhorinha Diniz, além dos das demais mulheres e homens da sociedade brasileira no século XIX. Juntamente com essas imagens discursivas, outros ethé se formam no discurso, como o do próprio periódico da jornalista (ethos institucional). Os capítulos anteriores foram importantes para visualizarmos a construção do tempo, do espaço e a representação social da sociedade em questão, através dos usos argumentativos encontrados nos editoriais, dentre outras questões. Há, nos editoriais em geral (e, evidentemente, nos de Senhorinha), a co-construção de imagens discursivas. No caso do nosso corpus, a jornalista constrói a sua imagem e a das demais mulheres e homens de sua época, ao falar de si, deles e para eles. No jornal, especialmente nos editoriais, verificamos a imagem da jornalista que se fundamenta também na própria função do periódico. A partir dos ethé dos homens, em uma espécie de contraponto, de oposição, Senhorinha fundamenta seu próprio ethos. E não é somente a imagem dela que se constrói no universo dos contrários, as imagens co-construídas das mulheres em geral também: o sexo masculino é mostrado como indiferente à emancipação e aos direitos das mulheres; o sexo feminino é descrito, narrado como fragilizado e envolvido pela luta a favor da emancipação. Propomo-nos, assim, a avançar um pouco mais para verificarmos como a argumentação contribuiu para a formação dos ethé encenados no discurso.

A encenação discursiva possibilita ao destinatário a construção da imagem do sujeito enunciador, construída através das marcas deixadas por ele no discurso, sejam elas implícitas ou explícitas. A imagem de si projetada no discurso “... diz respeito à imagem daquele que fala e que é igualmente suscetível de tocar o auditório pela

possível identificação deste à pessoa do orador” (CHARAUDEAU, 2006, p.82). Para o

linguista, essa imagem está diretamente relacionada às intenções do sujeito de fala e à construção do imaginário elaborada pelo enunciador, e pode, desse modo, corresponder ou não à imagem do sujeito real. Em contrapartida, Amossy (2005a, p.9) considera que não é necessária uma identificação da imagem ethótica com o orador, ou locutor para que a imagem discursiva dele seja construída:

Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu auto-retrato, detalhe suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências Linguísticas e enciclopédicas, suas crenças

implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa.

Dessa forma, entendemos que as escolhas lexicais, o modo de enunciação e o direcionamento estratégico e discursivo dados pelo enunciador e inscritos no texto podem funcionar como elementos de identificação do ethos. O modo de ser é explicitado pelo como se diz (e não apenas pelo que se diz), o que contribui também para a caracterização do ethos: “... a ideia de ethos implica, portanto, assumir que não se diz, explicitamente, como ou o que se é, mas mostra-se, por meio de atitudes (físicas ou

discursivas), como e o que se é”. (MORAES, 2008, p.109). Em O Sexo Feminino,

notamos que em alguns momentos a jornalista fala de si, assumindo a coletividade (nós) para ressaltar o que ela tem feito através do periódico, o lugar que ela ocupa na luta a

favor da emancipação feminina: “Temos lutado por propagal-a, e sem fatigarmo-nos,

lutaremos até attingir nosso desideratum” (Anexo 5, linhas 31-32). Já em outros casos, não é necessário que ela explicite seus feitos ou que fale de si mesma; a própria ordenação discursiva pode contribuir para a visualização do seu ethos: “Pelo rigor de injustos artigos do nosso codigo civil, a mulher morre continua e moralmente, apezar de incansavel nos sacrificios que faz pelo homem, morre sim, e na mais rigorosa escravidão!” (Anexo 6, linhas 8-10, grifo da autora). Nesse trecho, apesar de a jornalista não dizer explicitamente quem ela é, o modo como ela aborda a situação feminina a insere no nível discursivo da justiça, da alteridade e da persistência na defesa da mulher. Ao analisarmos o discurso dos editoriais em O Sexo Feminino, notamos que a encenação discursiva permite ainda vislumbrar a situação comunicativa na qual os

sujeitos estão envolvidos e as intenções do enunciador. Dessa forma, “a análise do ethos

discursivo integra-se assim, ao estudo da interlocução que leva em conta os participantes, o cenário e o objetivo da troca verbal”. (AMOSSY, 2005b, p.122). Por isso, revisitar o discurso feminino do século XIX pode contribuir para que recuperemos não só este ato discursivo monologal no periódico, mas também os participantes da cena enunciativa, homens e mulheres que dialogam e trazem à tona, por meio do discurso, a realidade sócio-histórica do século em que viveram.

A maneira de dizer, o uso dos modos enunciativos, a enunciação e os sujeitos envolvidos são elementos importantes na construção da imagem do enunciador, uma vez que o enunciatário também se depara com essas informações e cria um imaginário social a respeito do sujeito que expõe seu discurso. Assim, é possível construir a

interação entre os sujeitos e recuperar o sentido do ato de linguagem e do discurso enunciado.

Nessa inter-relação, “... o orador adapta sua representação de si aos esquemas coletivos que ele crê interiorizados e valorizados por seu público-alvo”. (AMOSSY, 2005b, p.126). Senhorinha recupera em seus editoriais valores partilhados em sociedade, como a crença religiosa, a importância da mulher enquanto mãe e orientadora de seus filhos e o próprio valor da ciência e do progresso. Essas representações tomam forma na cena discursiva e no relacionamento entre os sujeitos.

Assim, “... a função da imagem de si e do outro, construída no discurso se manifesta

plenamente nessa perspectiva interacional. Dizer que os participantes interagem é supor que a imagem de si construída no e pelo discurso participa da influência que exercem

um sobre o outro”. (AMOSSY, 2005a, p.12). Aciona-se, então, não só o universo de

saberes partilhados entre os sujeitos envolvidos no discurso, mas também esse misto de imagens construídas a partir do que o discurso encena.

As imagens construídas do homem e da mulher do século XIX estão vinculadas entre si, da mesma maneira que as imagens de Senhorinha e do jornal, em certa medida, também se confundem. A jornalista fala de si no jornal e, ao mesmo tempo, ao argumentar sobre a importância do periódico, valida a importância dela mesma enquanto proprietária e redatora. Quando a jornalista fala da representação das mulheres do século XIX, em alguns momentos, ela se inclui instituíndo a coletividade do pronome nós: “Sem que se effectue uma transformação completa no regimem actual de educação das nossas meninas, nada conseguiremos para o nosso desideratum” (Anexo 4, linhas 25-26). Já em outras situações, ela se distancia dessa representação, mostrando-se superior, mantenedora de uma visão ampliada a respeito do mundo:

“Mãis! Não se assuste a vossa fraqueza com o grandioso titulo de educadora! Não, nós

não queremos impor-vos estudos pedantescos, nem deveres austeros” (Anexo 2, linhas 13-14).

Cumpre destacar que a elaboração discursiva observada no editorial nos induz aos imaginários sociais presentes no século XIX. Recuperamos a imagem da mulher

dona de casa, mãe de família, valorizada por educar seus filhos: “Á mulher e não ao homem foi dada a missão magestatica de ser a mãi do genero humano”. (Anexo 6, linha

22). Tal perspectiva nos revela a importância do resgate histórico e discursivo dessa produção jornalística dos anos oitocentos, que faremos na sequência, ao abordarmos a elaboração dos ethé nesse discurso jornalístico do século XIX.