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A constitucionalização e o debate na Constituinte de 1987/1988

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CAPITULO II – A QUESTÃO FUNDIÁRIA NAS DISPUTAS POLÍTICO-JURÍDICAS

2.2. As questões indígena e quilombola

2.2.1. A constitucionalização e o debate na Constituinte de 1987/1988

Nas revistas da CRB e da CNA consultadas entre 1955 e 1973 a temática indígena não ocupa espaços de debate ou discussão, apesar de já na época haver órgãos e legislações de proteção ao índio149. Como já se viu no capítulo 1, a argumentação das Confederações patronais sobre a questão fundiária estava voltada ao combate de propostas de reforma agrária que pudessem significar uma efetiva redistribuição de terras.

Essa pressão contra as tentativas de reforma agrária tomou grandes proporções em 1985, com o anúncio do Plano Nacional da Reforma Agrária, e ao longo da Constituinte de 1987/88. Na Constituinte, a pressão conservadora se concentrou sobre a previsão constitucional do direito de propriedade e da política de reforma agrária. Entretanto, a CNA, no período pós-Constituinte, em especial a partir das tentativas de efetivação dos dispositivos relacionados às terras indígenas e quilombolas, também voltou sua artilharia contra esses grupos e os órgãos responsáveis pela execução de tais políticas.

A literatura que tratou dos debates constitucionais referentes a essas temáticas não deixa entrever nenhuma atenção do setor patronal às questões indígenas e quilombolas, provavelmente pela ausência de interferência de políticas anteriores que afetassem de alguma forma a grande propriedade fundiária.

Portanto, trataremos de forma breve da constitucionalização dessas duas questões, que foram debatidas na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, subordinada à Comissão da Ordem Social (art. 15, VII, RIAN). A referida Subcomissão, de acordo com Evangelista (2008: 54) “deveria contar com 21 componentes, mas devido à preferência por outros temas, ela só contou com 18 componentes, mostrando como afirmavam os constituintes em sua primeira reunião ordinária, o pouco prestígio dos temas nela incluídos”.

Ainda conforme Evangelista, durante as audiências públicas na Subcomissão que foram destinadas ao tratamento da questão indígena, houve convergência entre os grupos indígenas “nos destaques e nos principais pontos abordados e reivindicados”, dentre os quais:

o reconhecimento da posse da terra, a demarcação, o usufruto das riquezas naturais e do subsolo, da inalienabilidade das terras indígenas, das invasões, preservação ambiental, o reconhecimento da formação pluriétnica da nação, o reconhecimento da língua indígena como instrumento da educação, a extensão dos direitos políticos (EVANGELISTA, 2004: 57).

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Dentre os avanços verificados no anteprojeto da Subcomissão de Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minoriasem relação à legislação indigenista à época vigente, como o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73), está a centralidade da demarcação, reconhecimento e proteção do direito à terra “no sentido que qualquer outra garantia (reprodução física, cultural, diversidade etc) era dependente desta para se realizar”, proibindo, por exemplo, “no caso de remoção dos índios”, a “utilização dessa terra indígena para qualquer outro fim. A terra indígena não deveria ter outra utilização que não o usufruto exclusivo dos índios” (EVANGELISTA, 2004: 60).

Há uma tradição legal de reconhecimento do “direito a terra aos povos indígenas desde o período colonial” e “também nas Constituições desde 1934, mesmo quando esse direito era desrespeitado” e “quando instalado um autoritarismo acirrado, quando nasce o Estatuto do Índio, em 73, esse direito foi garantido”. (EVANGELISTA, 2004: 60).

A diferença da Constituição de 1988 em relação às proteções legais e constitucionais anteriores seria “a perspectiva pluriétnica da formação social brasileira sendo reconhecidas as populações indígenas com suas organizações, usos, costumes, línguas e tradições superando o viés integracionista e homogeneizador”150

(EVANGELISTA, 2004: 60-61).

Evangelista (2008), entretanto, deixa entrever a atuação de setores conservadores que provocaram recuos em relação à proposta inicial aprovada na subcomissão, tanto nas comissões da ordem econômica e de sistematização, quanto no projeto de Constituição aprovado.

O debate na Comissão de Sistematização, como já visto, coincidiu com a articulação do “Centrão”, apoiado pelas elites empresariais e pelo governo federal para alterar o Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte151, a fim de facilitar a aprovação de emendas ao texto aprovado na Comissão de Sistematização. Apesar de conseguirem a mudança regimental, tiveram que negociar a aprovação dessas emendas com os líderes partidários, pois a manobra regimental não a garantia.

Porém, algumas conquistas dos grupos conservadores para atender “interesses nacionais e internacionais nas riquezas minerais” foram observadas já no anteprojeto da Comissão de Sistematização que diferenciou-se do apresentado pela Subcomissão ao retirar o “monopólio da União da exploração de riquezas em terras indígenas” e o “condicionante para realizar tal exploração, como por exemplo a inexistência de reservas do minério em outras partes do território, mantendo apenas a condição de ser interesse nacional”, embora tenha mantido “a necessidade de aprovação do Congresso Nacional e das comunidades afetadas para realização da exploração” (EVANGELISTA, 2004: 66). Pois “a manutenção como único condicionante do interesse nacional pouco diz e define para impedir que as terras indígenas se tornem alvo de mineradoras” (EVANGELISTA, 2004: 66-67).

Evangelista revela o surgimento, no primeiro substitutivo da Comissão de Sistematização, mantido no Anteprojeto de Constituição (B), de outra previsão prejudicial aos direitos indígenas: a adoção de “uma categoria inexistente na legislação, utilizado apenas no período colonial”, para o esbulho de terras indígenas: “o de extintos aldeamentos indígenas”,

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Essa visão dos anos 1950 teria também se modificado “em normas internacionais, como o exemplo da Convenção nº 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 05 de junho de 1957, que postula a proteção das populações tribais ou semitribais conjuntamente com um processo de integração progressiva na vida nacional, e revisada pela Convenção nº 169 que reconheceu ‘as aspirações desses povos a assumir o controle de suas instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram’” (EVANGELISTA, 2004: 61).

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De acordo com Evangelista (2004: 63), os setores empresariais estariam “insatisfeitos com a aprovação de direitos sociais, a tendência estatizante e nacionalista do projeto” e o Governo “com a opção parlamentarista e da fixação do mandato de presidente de quatro anos”.

que “fariam parte dos bens do Estado (art. 28, inciso V)”, o que se provavelmente se configuraria em

outra estratégia de desconsiderar a existência indígena e de legitimar a posse dessas terras para fazendeiros, como é exemplo da certidão negativa emitida pela FUNAI apresentada aos constituintes por Nelson Saracura – Pataxó - BA, na audiência do dia 05 de maio. Na referida certidão a Órgão Indigenista Federal afirma não existir índios no sul da Bahia (EVANGELISTA, 2004: 67-68).

De fato, a categoria “aldeamentos extintos” foi mobilizada pela CNA para questionar a demarcação de terras indígenas, buscando limitá-las, através de uma Proposta de Súmula Vinculante (PSV) que buscava ampliar uma interpretação restritiva ao direito dos indígenas oriunda do julgamento sobre o decreto demarcatório da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, como veremos em mais detalhes adiante.

O texto final da Constituição de 1988 tratou da questão indígena no Capítulo VIII (Dos Índios), do Título VIII (Da Ordem Social). Reconheceu “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, atribuindo à União a competência para “demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231). Considerou “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” tanto “as por eles habitadas em caráter permanente” quanto “as utilizadas para suas atividades produtivas” e “as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art. 231, § 1º).

Previu ainda que o direito dos indígenas ao “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos” existentes em suas terras (art. 231, § 2º), podendo ser realizado o “aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas”, mas apenas se autorizadas pelo “Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei” (art. 231, § 3º). Determinou também a impossibilidade de alienação e disposição sobre terras indígenas, bem como da prescrição dos direitos (art. 231, § 4º). A remoção dos grupos indígenas de suas terras foi vedada, excetuando-se “em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional” (art. 231, § 5º). Além disso, a Constituição de 1988 declarou serem “nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras” tradicionalmente ocupadas pelos índios

ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé (art. 231, § 6º).

No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, foi determinado ainda o “prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição” para que a União concluísse “a demarcação das terras indígenas” (art. 67, ADCT).

Em adequação aos dispositivos constitucionais mencionados, foi editado, durante o governo de Fernando Collor, o Decreto no. 22, de 04 de fevereiro de 1991, que dispôs sobre o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas152, prevendo, entre outras questões, a participação dos grupos indígenas interessados em todas as fases, bem como a “revisão das terras indígenas consideradas insuficientes para a sobrevivência física e cultural

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dos grupos indígenas” pelo órgão de assistência ao índio, no prazo de um ano (art. 7º); prazo este aumentado pelo Decreto 608, de 20 de julho de 1992, para 05 de outubro de 1993. Já na era FHC, esses Decretos foram revogados pelo Decreto 1.775, de 08 de janeiro de 1996, que desde então passou a regular a matéria e encontra-se vigente.

A partir desses marcos legais, algumas tentativas de demarcação de territórios indígenas esbarraram, na década de 1990, nos interesses da classe dominante rural, incorporados pela CNA.

O direito das “comunidades remanescentes de quilombos” foi reconhecido no artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988. Esse artigo, de acordo com Arruti (2006: 67), além de reconhecer, também criou essa “categoria política e sociológica”.

O debate sobre negros e necessidade de reparação histórica, durante a Assembleia Nacional Constituinte, de acordo com Lopes (2010: 43), polarizou-se

entre a reparação no campo da cultura e da concessão de terras. A primeira apontava a necessidade de preservação das culturas negra e indígena através do tombamento de patrimônios histórico-culturais, com a alocação de verbas para o estímulo das manifestações culturais; a segunda, a concessão da propriedade da terra às comunidades identificadas como oriundas de antigos mocambos e quilombos.

A formulação inicial da proposta, de autoria de Carlos Alberto Caó (PDT), que representava, junto com Benedita da Silva (PT), o movimento negro do Rio de Janeiro na Constituinte, determinava a inserção de artigo que declarava “a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades negras remanescentes de quilombolas, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” e o tombamento das terras e documentos históricos relacionados aos quilombos no Brasil (Transcrito em Silva, 1997, apud ARRUTI, 2006: 68).

Sobre essa proposta, foram apresentadas emendas, entre as quais uma de autoria de Aluízio Campos (PMDB/PB) no sentido de assegurar apenas a “posse legítima das terras ocupadas, durante mais de dez anos ininterruptos...”, aproximando-se do estatuto dos indígenas somado a uma espécie de “usucapião especial” (ARRUTI, 2006: 68-69). Outra “emenda modificativa”, rejeitada, foi proposta pelo Deputado Eliel Rodrigues (PMDB/BA), no sentido de suprimir a parte que conferia a propriedade das terras e alterar a redação relativa ao tombamento para que figurasse apenas sobre “as terras das comunidades negras remanescentes dos antigos quilombos, bem como todos os documentos referentes à sua história no Brasil” (Transcrito em SILVA, 1997 apud ARRUTI, 2006: 69), de forma a agregar o termo “antigo” e limitar “o reconhecimento aos direitos culturais” (ARRUTI, 2006: 69).

A proposta inicial foi desmembrada no texto final da Constituição: a previsão de tombamento dos documentos relativos à história dos quilombos foi alocada no capítulo relativo à cultura (de caráter permanente) e o dispositivo relacionado à questão fundiária foi relegado ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), ou seja, ao corpo transitório (ARRUTI, 2006: 70; LOPES, 2010: 44). Isto evidenciava “que o campo da cultura era, até então, o próprio limite permitido ao reconhecimento público e político dessa temática”, o que apenas se transformaria com a captura do artigo 68 da ADCT pelo movimento social (ARRUTI, 2006: 70).

Enquanto a reparação no campo da cultura foi fixada no artigo 215 da Constituição Federal de 1988, a questão territorial quilombola foi tratada no artigo 68 do ADCT, que dispôs o seguinte: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

disputas em torno da redação final dos artigos constitucionais relativos às políticas de reparação aos negros no Brasil, a definição do conceito constitucional tornou-se um dos principais pontos de tensão nas disputas fundiárias referentes aos territórios quilombolas e no contexto de elaboração dos laudos antropológicos, expressando-se de diversas maneiras nos processos judiciais, na imprensa, no Congresso Nacional e em trabalhos acadêmicos, tornando-se objeto de embates entre significações e valores opostos em cada um destes campos. A interpretação do texto do artigo constitucional configura-se, portanto, uma dimensão do conflito envolvendo as comunidades quilombolas pela disputa da terra, conflito este que abrange dinâmicas decorrentes de sua cristalização nos textos legais.

Exemplo desses embates foi a oposição enfrentada na Câmara e no Senado Federal e a demora para que o art. 68 fosse regulamentado (LEITE, 2008; [on line]). A primeira regra infraconstitucional sobre o tema surgiu no governo Fernando Henrique Cardoso, com a edição da Portaria 307, do INCRA, em 1995, que determinava a demarcação e titulação das terras das comunidades quilombolas. Alguns anos mais tarde, a Medida Provisória 1.911-11, de 26 de outubro de 1999, que alterava dispositivos sobre a organização da Presidência, atribuiu ao Ministério da Cultura a aplicação do artigo 68.

Os procedimentos que deveriam ser adotados para a titulação das terras quilombolas, entretanto, foram primeiro abordados no Decreto 3.912, de 10 de setembro de 2001, ainda no âmbito do Ministério da Cultura e da Fundação Cultural Palmares (FCT). Este decreto, que restringiu o reconhecimento da propriedade apenas sobre terras ocupadas por quilombolas desde 1888 até 05 de outubro de 1988, foi revogado posteriormente pelo Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, do governo Lula, que passou a regulamentar a matéria na esfera dos órgãos fundiários. Na mesma data, o Decreto 4883 transferiu do Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário a competência para delimitar e demarcar as terras de remanescentes de comunidades quilombolas.

2.2.2. As preocupações da CNA quanto à demarcação de territórios indígenas e à

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